quinta-feira, 22 de junho de 2023

O OPERARIADO E O ANARQUISMO NA INDUSTRIALIZAÇÃO BRASILEIRA

  Na virada do século XIX para o século XX, a economia brasileira se apoiava, primordialmente, na exportação do café. Com a riqueza acumulada, muitos fazendeiros utilizaram  parte de seus lucros em outras atividades, entre eles, a implantação de fábricas nos centros urbanos. Além desses fazendeiros, diversos imigrantes chegaram ao Brasil e abriram fábricas no país.

  Nos primeiros anos da República, a maioria dessas fábricas era de pequeno e médio porte e produzia principalmente tecidos, calçados, chapéus, massas alimentícias. Em 1907, o Brasil contava 3.120 estabelecimentos industriais. Nessa época, o Rio de Janeiro concentrava o maior número de indústrias. Em 1920, quando já havia mais de 13 mil indústrias instaladas no país, São Paulo era o principal polo industrial brasileiro. O setor têxtil era o mais dinâmico.

  O operariado era composto basicamente de imigrantes - italianos, espanhóis, portugueses -, que, em geral, havia abandonado a vida nas lavouras. Eles recebiam salários baixos e trabalhavam sem proteção legal. Os donos das fábricas estabeleciam as próprias regras. As jornadas diárias de trabalho duravam, em média, de 10 a 14 horas. Garantias conquistadas posteriormente, como descanso semanal remunerado, férias ou aposentadoria, eram então inexistentes, tampouco havia indenização aos operários quando sofriam acidentes, o que era constante. O ambiente de trabalho era quase sempre insalubre, mal ventilado e precariamente iluminado, o que facilitava a propagação de doenças.

Interior da Companhia Tijuca de Tecidos no início do século XX

  Em um primeiro momento, parte do operariado organizado entusiasmou-se com a Proclamação da República, acreditando que ela inauguraria uma nova era de direitos políticos e sociais. A expectativa  positiva com o regime republicano foi seguida de uma grande desilusão, na medida em que ele não atendeu aos anseios do operariado. A maioria dos trabalhadores estava submetida a longas jornadas de trabalho, com poucas possibilidades de descanso e lazer. Esses trabalhadores moravam em habitações precárias, padecendo de problemas de transporte e de infraestrutura, ou, ainda, em residências submetidas ao controle patronal, no caso das vilas operárias. No caso de doença, invalidez ou desemprego, o trabalhador que não contasse com um fundo beneficente da empresa ou que não contribuísse por sua própria iniciativa para alguma forma de sociedade que fornecesse auxílios, via-se inteiramente desassistido em virtude da ausência de políticas sociais.

  O sistema eleitoral da Primeira República, com o voto aberto e o controle das eleições pelos partidos da situação, dificultava enormemente a participação dos trabalhadores na vida política. Parte da força que o anarquismo adquiriu no Brasil da Primeira República foi consequência desse ambiente de exclusão proporcionado por um modelo político oligárquico que não oferecia canais institucionais de reivindicação social. Além dos trabalhadores nacionais, em que a proporção de ex-escravos era considerável, havia ainda um crescente número de imigrantes proletarizados com direitos civis, políticos e sociais muito reduzidos. Nessas circunstâncias, havia incentivos para a ação direta por parte dos trabalhadores organizados politicamente. Desse modo, o sindicalismo revolucionário propagado pelos anarquistas teve grande influência no movimento operário, em particular no campo das lutas sociais, da organização dos trabalhadores e da agitação militante.

Operários e anarquistas marcham portando bandeiras negras pelas ruas de São Paulo durante a greve de 1917. O anarquismo social ou de massas sustenta que os anarquistas devem participar dos movimentos sociais de massa para radicalizá-los e transformá-los em alavancas para a transformação revolucionária.

  De modo geral, a organização dos trabalhadores foi uma característica marcante do Brasil durante a Primeira República, para a qual os anarquistas contribuíram. O volume de associações criadas tendia a ser particularmente visível em momentos de ascenso do movimento operário, quando condições econômicas favoráveis conferiam um maior poder de barganha ao operariado e os movimentos grevistas tinham maiores chances de sucesso.

  Na Primeira República, a força de trabalho masculina foi determinante no trabalho manufatureiro e industrial. Entretanto, a mão de obra feminina foi muito significativa nos ramos têxtil e de vestuário, chegando a ser majoritária em alguns lugares. As anarquistas brasileiras tomaram algumas iniciativas no sentido de criar associações, ligas e sindicatos por ofícios ou "núcleos femininos". Um a dessas associações foi o Gripo pela Emancipação Feminina, no Rio de Janeiro. As uniões de costureiras, surgidas em 1919 no Rio de Janeiro e em São Paulo, estiveram entre as poucas exceções de organizações sindicais organizadas e dirigidas exclusivamente por mulheres. As greves organizadas pelas categorias, onde a presença feminina era determinante geralmente, envolviam, além das reivindicações por melhores salários e pela redução da jornada de trabalho, denúncias de abusos sexuais e maus-tratos de mestres e contramestres.

  Em 1901, greves pela redução da jornada de trabalho ocorreram em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em 1903, uma importante greve da indústria têxtil ocorreu no Distrito Federal, entre agosto e setembro, reunindo também trabalhadores de outras categorias. Essa paralisação foi descrita, à época,  como o mais impo

Delegados do 1º Congresso Operário Brasileiro, realizado em abril de 1906, reunidos no Centro Galego, no Rio de Janeiro

  Em março de 1908, no Rio de Janeiro, dois anos após a realização do 1º Congresso Operário Brasileiro, foi fundada a Confederação Operária Brasileira, que se propunha a representar cerca de 50 associações operárias. A partir de 1908, houve um declínio  na atividade grevista, no contexto de uma repressão crescente e da deterioração da economia com o fim do ciclo de crescimento. A última greve importante do período ocorreu em janeiro de 1909, envolvendo os ferroviários da Great Western em Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas, reivindicando melhorias salariais.

  A eleição de Marechal Hermes da Fonseca, em 1910, trouxe algumas novidades ao quadro político tradicional e às relações entre Estado e movimento operário. Foi o primeiro candidato à presidência a mencionar em sua plataforma a existência de um problema operário a ser resolvido. Durante o seu governo, buscou diálogo com os reformistas, incorporando o líder reformista Sarandy Raposo, fundador da Confederação Sindicalista Cooperativista Brasileira (CSCB). Hermes também apoiou um endurecimento da Lei Adolfo Gordo (lei criada pelo Decreto nº 1641/1907, e que promovia a repressão aos movimentos operários de São Paulo no início do século XX. Essa lei, entre outras medidas, propunha a expulsão de estrangeiros envolvidos em greve). Em agosto de 1912, alguns sindicatos começaram uma nova onda de greves que perduraria até a recessão de 1914.

  Com a declaração da Primeira Guerra Mundial, os anarquistas passaram a se envolver na luta antimilitarista. Em março de 1915, a FORJ (Federação Operária do Rio de Janeiro) criou uma Comissão Popular de Agitação contra a Guerra.

Selo da Confederação Operária Brasileira (COB)

  O prolongamento da guerra contribuiu para propiciar, em 1916, uma recuperação da produção industrial. Na medida em que os produtos importados deixavam  de chegar aos portos brasileiros, as indústrias nacionais voltaram a empregar trabalhadores para atender ao crescimento da demanda. Porém, houve um considerável aumento do custo de vida, tendo em vista que diversos produtos eram exportados para os países em conflito. Os salários  permaneceram nos mesmos patamares dos anos anteriores à guerra. Os preços dos gêneros alimentícios  continuaram a subir durante os seis primeiros meses de 1917. A conjuntura favorável à  satisfação de reivindicações em virtude da retomada da atividade industrial conduziu o movimento operário  a um acelerado processo de reorganização nas sociedades de resistência desarticuladas durante a crise, resultando em uma onda grevista a partir de 1917. As principais agitações operárias de 1917 ocorreram na cidade de São Paulo.

  Em 1918 houve um certo arrefecimento dos movimentos grevistas, mas prosseguiu greves localizadas e, sobretudo, o esforço de ampliação e consolidação das organizações operárias iniciadas no ano precedente. A repressão e o impacto da Revolução Russa trouxeram aos militantes novas questões acerca das ações a serem empregadas para fazer avançar a intensidade que as mobilizações do ano anterior atingiram.

  Em 1919 houve uma retomada do movimento grevista, dessa vez enfrentando um patronato organizado em entidades de classe e melhor articulado com a repressão.

Fábrica guardada por milícia do governo durante a greve de 1917 em Porto Alegre

  Novos elementos passaram a influenciar a conjuntura política brasileira. Em 5 de julho de 1922, houve a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, dando início ao movimento tenentista, protagonizado pelos soldados das camadas médias da hierarquia militar descontentes com o regime.

  Em julho de 1924, o general reformado Isidoro Dias Lopes liderou uma revolta em São Paulo, em um movimento que contou com o apoio da força pública estadual, comandada pelo major Miguel Costa. No dia 8 de julho os revoltosos forçaram o governador Carlos de Campos e as tropas legalistas a fugirem da capital.

  A atitude dos anarquistas frente a Revolução de 1930 apresentou-se inicialmente como uma reação de indiferença. Devido ao caráter político-partidário do movimento, os anarquistas, que se afirmavam como apolíticos, viam nele uma simples troca de governantes que não afetaria a condição operária. Havia, porém, certa ambiguidade quando, acompanhando parcelas da população, apoiavam com entusiasmo a mudança social, ao mesmo tempo em que rejeitavam um apoio militante.

  Os anarquistas tiveram certa participação no movimento revolucionário de 1930, realizando reuniões e lançando manifestos aos revolucionários e à população. Após a revolução da Aliança Liberal, o movimento operário declarou uma série de greves  em São Paulo, iniciada pelos tecelões, que foram seguidos de várias outras categorias, reivindicando a reposição de descontos salariais impostos por causa da crise econômica.

Getúlio Vargas e outros líderes da Revolução de 1930, em Itararé, São Paulo, logo após a derrubada do governo de Washington Luís

  O governo de Getúlio Vargas lançou uma legislação trabalhista, procurando atrair o apoio do operariado, e criou o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, responsável por fazer cumprir a legislação trabalhista e por arregimentar a sindicalização oficial. Em março de 1931, foi lançada uma lei de sindicalização, que estabelecia o reconhecimento oficial de apenas um sindicato por categoria e proibiu a propaganda política e religiosa no interior dos sindicatos. Ao mesmo tempo, a repressão à imprensa e às manifestações operárias ainda eram correntes. Alegou-se, no Rio de Janeiro, a explosão de uma bomba no edifício da Polícia Central e, em São Paulo, um levante de jovens oficiais da Força Pública para impedir os comícios do 1º de maio em 1931. Também foram constantes perseguições aos periódicos anarquistas A Lanterna e A Plebe. Assim, paralelamente à recém-lançada legislação trabalhista, o Estado mantinha sua prática de controle e repressão para enfraquecer os grupos dissidentes, essencialmente anarquistas e comunistas.

  Além da atuação dos sindicatos, os anarquistas continuaram a empreender iniciativas culturais e no campo da educação. Em 1933, foi fundado o Centro de Cultura Social de São Paulo (CSS), localizado na capital paulista, na pretensão de constituir um espaço para a promoção de debates e discussões. Também em São Paulo, em 1934, foi refundada a Escola Moderna e foram promovidas, pelos anarquistas, aulas noturnas nos sindicatos.

Conferência anti-integralista realizada em 14 de novembro de 1933, no salão da União das Classes Laboriosas

  Durante a década de 1930, uma das principais preocupações dos anarquistas foi a ascensão do fascismo - no Brasil representado pela Ação Integralista Brasileira (AIB), fundada em 1932 -, e consequentemente, a tentativa de criar meios para promover a resistência antifascista.

  A partir de 1933, período marcado pela primeira marcha integralista realizada em São Paulo e pelo surgimento da Frente Única Antifascista (FUA) e do Comitê Antiguerreiro, os anarquistas intensificaram suas atividades em torno do antifascismo. Uma das primeiras iniciativas de alguns libertários foi a criação de um Comitê Antifascista, que passou a publicar uma série de manifestos na imprensa anarquista.

  Em 1934, os conflitos entre integralistas e antifascistas se intensificaram, culminando, no dia 7 de outubro, na Batalha da Praça da Sé. Durante o confronto, os anarquistas bateram-se violentamente contra os integralistas e a polícia. O conflito terminou com a debandada geral dos integralistas, que abandonaram suas camisas verdes pelas ruas do centro de São Paulo, para evitar mais agressões.

  Em decorrência da violenta luta entre antifascistas e integralistas, os anarquistas e os outros grupos de esquerda que tomaram parte no combate foram alvos de intensa perseguição.

Integralista ferido durante a Batalha da Praça da Sé, carregado por companheiros

  Em março de 1935, alguns setores tenentistas de esquerda e grupos políticos ligados aos comunistas e socialistas fundaram a Aliança Nacional Libertadora (ANL). O programa político da ANL, voltado a combater o latifúndio, o imperialismo e em defesa das liberdades, somado à luta que as suas seções em todo o país estavam desenvolvendo contra os integralistas, recebeu a admiração dos anarquistas.

  Em julho de 1935, a ANL convidou as diversas organizações antifascistas e operárias a participarem de um comício anti-integralista que iria ocorrer em São Paulo. Os anarquistas de A Plebe recusaram o convite e explicaram que, embora vissem de forma positiva a luta da ANL, não podiam compactuar com essa organização devido à sua coerência com os princípios libertários, e nunca assumiriam compromissos com uma organização política. A mesma posição foi apresentada pela Federação Operária de São Paulo (FOSP), que relatou que os seus princípios antipolíticos a impediam de firmar qualquer espécie de compromisso com a ANL ou qualquer outra organização política.

  De modo geral, os anarquistas deram apoio à ANL, mas não adesões, pois havia a desconfiança com relação à presença de Luís Carlos Prestes, aclamado como presidente de honra da ANL. Mesmo não ocorrendo a adesão, os anarquistas demonstraram solidariedade para com a ANL, quando esta foi posta na ilegalidade pelo governo Vargas, em julho de 1935, e as suas seções e os militantes foram amplamente reprimidos.

Cartaz da ANL convidando a população para um comício

  Com o fim do Estado Novo em 1945 e a posterior democratização do país, os anarquistas acreditavam que aquele seria o momento para uma articulação mais orgânica, formando organizações políticas específicas e fundando novos periódicos, numa tentativa de imprimir uma maior participação na vida política brasileira.

  Entre 1945 e 1964, os anarquistas brasileiros realizaram quatro congressos: 1948, 1953, 1959 e 1963, respectivamente.

  O Congresso Anarquista de 1948 salientou a necessidade dos militantes libertários ingressarem nos sindicatos de suas respectivas profissões, procurando intervir na vida orgânica dos mesmos e formando grupos de defesa ou resistência sindical, com base no sindicalismo revolucionário.

  Além das práticas no campo sindical e cultural, entre 1945 e 1964 os anarquistas prestaram apoio ativo aos exilados políticos da Espanha e Portugal.

  Esse período ficou caracterizado também como movimento sindical populista, devido principalmente a aliança entre aliados de Getúlio Vargas e partidos de esquerda.

Inauguração da fábrica da General Motors em São José dos Campos (SP) pelo presidente Juscelino Kubitschek, em 1959

  Logo após o golpe de 1964, os anarquistas trataram de livrar-se do material comprometedor que poderia estar nas atas de reuniões e no espaço físico do CEPJO. A atuação anarquista, pelo menos até 1968, foi marcada pela discrição das atividades dos centros culturais e da sua modesta imprensa, que serviam como ponto de contato para que os militantes pudessem continuar se articulando.

  A maior parte da base militante e de apoio das esquerdas durante a década de 1960 era constituída por jovens do meio estudantil. Os estudantes fundaram o Movimento Estudantil Libertário (MEL) em 1967.

  Com o decreto do AI-5, vários militantes foram presos e a sede do CEPJO foi invadida por agentes da Aeronáutica.

  Em janeiro de 1971, o delegado da polícia e o chefe do DOPS emitiu um mandato de busca e apreensão de livros, jornais e escritos considerados subversivos. Os agentes também buscavam informações sobre uma suposta "organização anarquista".

Estudante sendo preso durante uma manifestação estudantil no início da década de 1970

  Os últimos anos da década de 1970 viram o surgimento de um novo movimento sindical dos operários brasileiros, influindo na abertura democrática e na história do Brasil nas décadas subsequentes. O Novo Sindicalismo aflorado nos anos de 1978 e 1980, resultou na criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 1983, e da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), em 1986, além de constituir as bases para a formação do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980.

  O movimento grevista, que foi o ápice do Novo Sindicalismo, iniciou-se em 12 de maio de 1978 nas fábricas de caminhões da Saab-Scania, em São Bernardo do Campo (SP), quando cerca de 2 mil metalúrgicos cruzaram os braços pela reivindicação de 20% de aumento salarial. No contexto de arrocho dos salários e de fim do crescimento verificado durante o Milagre Econômico no Brasil, o movimento se alastrou para outras empresas, como a Ford, Mercedes-Benz e Volkswagen.

  Em 1979, uma nova onda grevista surgiu nas cidades paulistas de Osasco e Guarulhos, além de outras localidades, mas contando desta vez com outras categorias profissionais além dos metalúrgicos, como professores, bancários, funcionários públicos, jornalistas, operários da construção civil, médicos, lixeiros e outras categorias.

Luís Inácio Lula da Silva, então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, discursando em uma greve de metalúrgicos do ABC Paulista, em maio de 1979

  Em 1980, uma nova greve ocorreu em São Bernardo do Campo, durando 41 dias e mobilizando 300 mil metalúrgicos. No Brasil não havia greves desta dimensão desde 1968 e tampouco haviam sido organizadas contra a vontade das antigas direções sindicais.

  Na greve de 1980, a população se solidarizou com os grevistas, arrecadando recursos para os fundos de greve e alimentos. Mesmo com o governo enfraquecido, a repressão aos manifestantes foi dura, com mortes e intervenções nos sindicatos mais ativos, como o dos bancários de Belo Horizonte e Porto Alegre, e o dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Foi neste ano também que Lula foi preso, enquadrado pelo regime militar na Lei de Segurança Nacional.

  As consequências das greves foram o enfraquecimento ainda maior do regime militar e o surgimento de um polo aglutinador das forças de esquerda, fragmentadas durante a ditadura, em torno da CUT e do PT, que se tornariam elementos de organização extremamente influentes nas três décadas posteriores.

Metalúrgicos do ABC Paulista em greve em março de 1979

  O fim do regime militar e a abertura política propiciou no meio anarquista uma série de discussões novas e reformuladas sobre o neoliberalismo, o sindicalismo e pautas identitárias, como as questões de gênero, sexualidade e étnico-raciais. Com o fim da ditadura militar, os anarquistas do Rio de Janeiro fundaram o Círculo de Estudos Libertários (CEL - posteriormente CELIP - Círculo de Estudos Libertários Ideal Peres), no ano de 1985. Dentro desse espaço desenvolveram-se diversos coletivos e grupos anarquistas ainda na década de 1980 e início da década de 1990.

  No meio sindical, tentou-se uma rearticulação da antiga COB, iniciativa levada a cabo pelos militantes organizados nesses espaços e pelo periódico O Inimigo do Rei, com uma proposta anarcossindicalista.

  Na década de 1990, o anarquismo tentava se expandir e adentrar mais sistematicamente nos movimentos sociais. Nesse sentido, o grupo Mutirão, que editava um periódico de mesmo nome, defendia a articulação do anarquismo com os movimentos de luta sindical e pela terra.

  Durante os protestos de 2013 no Brasil, muitos manifestantes se identificaram, de alguma forma, com o anarquismo. Os protestos tiveram como ponto inicial uma manifestação articulada no dia 6 de junho pelo Movimento Passe Livre (MPL) e por organizações estudantis contra o aumento de vinte centavos nas tarifas de ônibus, de metrô e de trens na cidade de São Paulo.

Protesto contra o aumento das passagens em 2013

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ANTUNES, Ricardo. A rebeldia do trabalho. O confronto operário no ABC Paulista: as greves de 1978/1980. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1992.

BATALHA, Cláudio. O movimento operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

DULLES, John W. F. Anarquistas e Comunistas no Brasil, 1900-1935. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

PINHEIRO, Paulo Sérgio; HALL, Michel M. A Classe Operária no Brasil. Vol. I - O Movimento Operário. São Paulo: Alfa Ômega, 1979.

RODRIGUES, Edgar. Alvorada Operária: Os Congressos Operários no Brasil. Rio de Janeiro: Mundo Livre, 1979.

quarta-feira, 7 de junho de 2023

O ILUMINISMO DE ROUSSEAU

   Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), suíço que viveu na França no século XVIII, de certo modo seguiu a tendência iniciada no século anterior, criticando o absolutismo real e fundamentando sua teoria com base no pacto social que legitima o governo. No entanto, a novidade do conceito de vontade geral constituiu uma diferença significativa.

  O século XVIII ficou conhecido como o Século das Luzes, em razão do desenvolvimento do Iluminismo, Ilustração ou Aufklärung (em alemão, "Esclarecimento"). Como as designações sugerem, havia um otimismo em reorganizar o mundo humano por meio das luzes da razão.

  Desde o Renascimento desenrolava-se a luta contra o princípio da autoridade, cujo objetivo era o reconhecimento da capacidade do ser humano de orientar-se por si mesmo sem a tutela religiosa. Livre de qualquer controle externo, sabendo-se capaz de procurar soluções para seus problemas com base em princípios racionais, o ser humano estendeu o uso da razão a todos os domínios: político, econômico, moral e até religioso.

  A filosofia do Iluminismo também sofreu a influência da Revolução Científica levada a efeito por Galileu Galilei (1564-1642) no século XVII. O método experimental recém-descoberto aliou-se à técnica, o que fez surgirem as chamadas ciências modernas. Posteriormente, a ciência foi responsável pelo aperfeiçoamento da tecnologia, provocando no ser humano o desejo de conhecer melhor a natureza a fim de dominá-la.

Galileu Galilei - astrônomo, físico e engenheiro florentino

  Na França, a Enciclopédia, extensa obra que pretendia  reunir todo o conhecimento produzido pela humanidade até então, foi um marco do movimento iluminista. Seu subtítulo - "Dicionário analítico de ciência, artes e ofícios" - revela o crescente interesse pelas artes e pelos ofícios naquela época, o que representou a valorização do artesão e do trabalho. Organizada por Denis Diderot (1713-1784) e Jean le Rond D'Alembert (1717-1783), contou com mais de cem colaboradores, entre eles figuras importantes como Montesquieu (1689-1755), Voltaire (1694-1778), Rousseau, Condorcet (1743-1794) e D'Holbach (1723-1789). Nesse grande projeto enciclopédico, destaca-se a esperança depositada nos benefícios do progresso da técnica e no poder da razão de combater o fanatismo, a intolerância (incluindo a religiosa), a escravidão, a tortura e a guerra.

Enciclopédia, ou dicionário racional das ciências, artes e profissões. Uma grande obra que compreendeu 35 volumes, 71.818 artigos e 2.885 ilustrações

  Rousseau, de certo modo contrariando o espírito iluminista, fez uma crítica severa ao modo como eram desenvolvidas as ciências e as artes nas sociedades de seu tempo, que, segundo ele, contribuíram para corromper os costumes. Foi esse o tema de sua obra Discurso sobre as ciências e as artes, vencedora de um concurso realizado pela Academia de Dijon, sendo que Rousseau respondeu negativamente ao desafio proposto pela instituição: o restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para purificar os costumes?

Edição original sobre a obra de Rousseau Discurso sobre as ciências e as artes

O bom selvagem e o contrato social

  Rousseau, examinou o estado da natureza, e concluiu que os indivíduos teriam vivido sadios, cuidando de sua própria sobrevivência, até o momento em que surgiu a concepção de propriedade privada e uns passaram a se beneficiar da exploração de outros, gerando desigualdade e miséria.

  Inicialmente, Rousseau criou a hipótese de um homem que teria vivido tranquilamente antes de socializar-se, até ser introduzida a desigualdade, que corrompeu o indivíduo, esmagado pela violência das relações sociais. Esse homem hipotético foi designado pelo filósofo como "bom selvagem". Tratava-se, portanto, de um enganoso pacto social que colocava as pessoas sob grilhões. Há que se considerar a possibilidade de outro contrato verdadeiro e legítimo, pelo qual o povo estaria reunido sob uma só vontade. Para ser legítimo, o contrato social deveria se originar do consentimento necessariamente unânime: cada associado se alienaria totalmente ao abdicar, sem reservas, de todos os seus direitos em favor da comunidade. Como todos abdicariam igualmente, nenhuma parte perderia nada.

Capa original da obra O contrato social, de Jean-Jacques Rousseau

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FORTES, Luiz Roberto Salinas. Rousseau: o bom selvagem. São Paulo: Humanitas; Discurso, 2007.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes, tradução de Hugo Barros. Lisboa: Edições 70, 2019.

ROUSSEAU, J.-J. O contrato social e outros escritos. São Paulo: Cultrix, 1971.

terça-feira, 30 de maio de 2023

MESOPOTÂMIA: TERRA ENTRE RIOS

  Mesopotâmia, também conhecida como "terra entre rios", é a área do sistema fluvial Tigre-Eufrates, o que nos dias modernos corresponde a aproximadamente à maior parte do Iraque e do Kuwait, além de partes orientais da Síria e de regiões ao longo das fronteiras Turquia-Síria e Irã-Iraque.

  Amplamente considerado como um dos berços da civilização pelo mundo ocidental, a Mesopotâmia da Idade do Bronze abrigava a Suméria, além dos impérios Acadiano, Babilônico e Assírio, todos nativos ao território do atual Iraque. Na Idade do Ferro foi controlada pelos impérios Neoassírio e Neobabilônico. Os povos sumérios e acádios (incluindo assírios e babilônicos) dominaram a região desde o início da história escrita (c. 3.100 a.C.) até a queda da Babilônia (539 a.C.), quando foi conquistada pelo Império Aquemênida. Foi conquistado por Alexandre, o Grande, em 332 a.C. e, após sua morte, tornou-se parte do Império Selêucida, de cultura grega.

  Por volta de 150 a.C., a Mesopotâmia estava sob o controle do Império Parto. A região tornou-se um campo de batalha entre os romanos e partos, com partes da Mesopotâmia passando sob o efêmero controle do Império Romano. Em 226 d.C., foi dominado pelos persas sassânidas e permaneceu sob o domínio persa até à conquista muçulmana da Pérsia no século VII do Império Sassânida. Vários estados mesopotâmicos nativos, neoassírios e cristãos existiram entre o século I a.C. e III d.C.

Mapa da região da Mesopotâmia

Aspectos geográficos da Mesopotâmia

   A palavra "Mesopotâmia" tem origem na língua grega e significa "entre rios". a região conhecida por esse nome está localizada entre dois grandes rios - o Tigre e o Eufrates -, e essa proximidade favoreceu o desenvolvimento das primeiras civilizações conhecidas.

  O clima e o relevo da região da Mesopotâmia não são homogêneos: há grande diversidade de paisagens, compostas de áreas de pântanos, estepes, planícies férteis e planaltos com clima ameno. Ao sul, o território apresenta um clima hostil para a produção agrícola, com chuvas escassas e temperaturas altas. Ao norte, as chuvas são mais frequentes e as temperaturas mais amenas, o que permitiu que a agricultura se desenvolvesse mais facilmente.

  Além disso, todo ano, entre os meses de abril e maio, o derretimento da neve nas montanhas localizadas ao norte da região provoca grande aumento do volume das águas dos rios Tigre e Eufrates. As águas vindas das regiões altas carregam material orgânico para o leito dos rios e, quando os rios retornam ao seu volume normal, o solo de suas margens fica mais fértil, favorecendo o cultivo agrícola.

  Ao explorar o fenômeno periódico das cheias dos rios, os povos que ocuparam essa região realizaram grandes obras hidráulicas, como a construção de diques, barragens e canais entre o rio e a lavoura para conter e armazenar as águas e direcioná-las para as áreas não atingidas pelas inundações, ampliando, assim, sua área de cultivo agrícola. Essas obras hidráulicas permitiram o aumento da produtividade agrícola e, consequentemente, da oferta de alimentos, promovendo o crescimento populacional. Com maior número de pessoas, as aldeias se transformaram em cidades e sua organização social se tornou cada vez mais sofisticada, o que possibilitou a formação de sociedades complexas na Mesopotâmia.

Mesopotâmia no século III a.C.

A ocupação da Mesopotâmia

  Os primeiros grupos humanos, que se instalaram na região da Mesopotâmia entre 12.000 e 6.000 a.C., eram seminômades. À medida que foram desenvolvendo a agricultura, esses grupos passaram a se fixar próximo aos cultivos, tornando-se sedentários e formando aldeias, que mais tarde deram origem a cidades.

  Diversos povos - como sumérios, acádios, amoritas, assírios e caldeus - migraram e ocuparam a região da Mesopotâmia, muitas vezes entrando em conflito pelo domínio das terras e pelo acesso à água, o que levou à formação de grandes impérios.

  Os vestígios arqueológicos disponíveis indicam que o povo sumério foi um dos primeiros a se desenvolver na Mesopotâmia, estabelecendo-se no sul, na região chamada de Súmer, por volta de 4.000 a.C.

  Os sumérios se organizavam em cidades-Estado, que apresentavam elevado grau de urbanização, com bairros residenciais, construções monumentais usadas como templos religiosos, ruas, estabelecimentos comerciais, exército e um sistema de administração pública. A cidade suméria de Uruk foi uma das maiores da Mesopotâmia.

Ruínas da cidade suméria de Uruk, no atual território do Iraque

  Os sumérios também desenvolveram a mais antiga forma de escrita conhecida, a escrita cuneiforme, assim chamada porque as inscrições eram feitas com uma ferramenta chamada cunha, que consiste em uma haste de metal ou madeira com uma das extremidades em ângulo agudo utilizado para marcar um suporte, no caso, placas de argila úmida. Politeístas, assim como outros povos da Antiguidade, os sumérios acreditavam que a escrita era um presente dos deuses.

Escrita cuneiforme

Organização política e social

  Os templos e os palácios eram estruturas fundamentais das sociedades mesopotâmicas. Os templos consistiam em complexos agrário-artesanais onde eram administrada a produção agrícola e promovido o comércio. Ao lado dos templos existia o palácio habitado pelos governantes e pela nobreza, funcionando como estrutura política e econômica. As terras dos templos e dos palácios eram arrendadas aos camponeses, que recebiam rações e cereais em troca de seu trabalho. Também havia as terras administradas pelos sacerdotes dos templos e pelos governantes e pela nobreza dos palácios.

  A maioria da população era formada por camponeses, que constituíam a base das sociedades mesopotâmicas. Os escravos, tanto os prisioneiros de guerra quanto os endividados, eram minoria.

  Os governantes mesopotâmicos, reis e imperadores, ocupavam o lugar de intermediários entre o mundo divino e o humano, sendo considerados protetores dos súditos e responsáveis por manter a boa vontade dos deuses. Assim, seus deveres eram de ordem administrativa e religiosa.

Nota de venda de uma casa, Xurupaque

  À medida que cresciam as disputas entre os diferentes povos da região por acesso à água e às terras, o poder dos reis foi se tornando mais bélico e administrativo do que religioso: eles passaram a ser supremos comandantes militares, capazes de realizar grandes conquistas, proteger a cidade dos invasores e ampliar a produção agrícola.

  Responsáveis pelos cultos às divindades, os sacerdotes eram considerados canais de comunicação com o mundo sobre-humano. Na religião mesopotâmica, politeísta, os deuses eram considerados "donos" das terras, e os sacerdotes, seus administradores. Com isso, os sacerdotes exerciam grande domínio sobre as demais camadas sociais, e os templos possuíam terras e outras riquezas.

  Os mesopotâmicos construíam edifícios chamados zigurates para serem usados como templos religiosos, depósitos de cereais (para os períodos de baixa produtividade agrícola e para o comércio) e locais de observação astronômica. Em formato de pirâmides, possuíam vários andares e plataformas sobrepostas umas às outras, que podiam ser acessadas por grandes escadarias. As observações astronômicas deram origem a calendários que auxiliavam na organização das atividades agrícolas.

Zigurate de Ur

Economia

  A agricultura era a principal atividade econômica dos povos mesopotâmicos. Eles realizavam a agricultura de vazante, nas margens alagadas durante as cheias dos rios Tigre e Eufrates, e a agricultura de irrigação por meio de obras de engenharia hidráulica que conduziam as águas dos rios para os terrenos secos, não atingidos pelas cheias.

  Os cultivos agrícolas que ocupavam os grandes campos da Mesopotâmia eram os cereais, como trigo e cevada, com os quais se produziam pães e cervejas, além de gergelim, cebolas, ervilhas e feijões. Em pequenos terrenos chamados jardins ou pomares, que ficavam junto dos templos e palácios, também eram cultivadas frutas como romã, figo e tâmara.

Figurinha mostrando a agricultura suméria com os canais de irrigação

  Os registros deixados pelos mesopotâmicos indicam que o cultivo de tâmara, que cresce em clima quente e terrenos irrigados, foi de grande importância econômica para a região. É provável que os sumérios tenham desenvolvido técnicas de polinização artificial, conduzindo manualmente o pólen entre as plantas machos e fêmeas das tamareiras para aumentar sua produtividade. Além de o fruto da tamareira ser alimento nutritivo utilizado na alimentação humana e do gado, as outras partes da planta também tinham muitos usos: suas folhas, fibras e madeira eram empregadas como material de construção e na fabricação de objetos, como cestas, colchões e cordas.

  A importância da tamareira para os mesopotâmicos aparece em diversos documentos, como na arquitetura (em elementos decorativos das construções), na legislação e na religião. O Código de Hamurábi, que era um conjunto de leis sobre diversos aspectos da vida cotidiana na Mesopotâmia, estabelecia uma multa para quem cortasse uma palmeira de tâmara e ordenava que os produtores ficassem vigilantes sobre podas e polinização. Cultuada por diversos povos da Mesopotâmia e relacionada à fecundidade e à prosperidade, a deusa Ishtar (ou Inanna), era associada à palmeira de tâmara.

Deusa Inanna num selo acadiano, 2.350-2.150 a.C. Ela está equipada com armas nas costas, tem um capacete com chifres e está pisando em um leão

  Além da agricultura, os mesopotâmicos também se dedicavam à criação de animais, como ovelhas, cabras, porcos e aves, utilizados para fornecer leite, ovos, lã, gordura animal e couro ou diretamente como alimento. O consumo de carne bovina era restrito e geralmente ocorria em festivais sagrados. Por isso, os bovinos eram mais utilizados para tração no transporte e no preparo da terra para agricultura.

  Apesar da relativa abundância de produtos agropecuários, a Mesopotâmia dependia do comércio de longa distância com outros povos para ter acesso a madeira, marfim, pedras preciosas e, sobretudo, metais, matéria-prima para a fabricação de ferramentas agrícolas e armas para as frequentes guerras. Além disso, com ouro, prata e pedras preciosas eram confeccionados os objetos de luxo que a elite ostentava para demonstrar seu poder.

Produção de metais no Antigo Oriente Médio

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

KRAMER, S. N. Mesopotâmia: berço da civilização. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1967.

McNEILL, William. História Universal: um estudo comparado das civilizações. Tradução de Leonel Vallandro. São Paulo: ed. da Universidade de São Paulo, 1972.

NETTO, A. Mesopotâmia e seus povos. Museu de Topografia Prof. Laureano Ibrahim Chaffe. Departamento de Geodésia - UFRGS. Porto Alegre, 2009.

PETIT, Paul. As primeiras civilizações. São Paulo: Atual, 1987.

terça-feira, 23 de maio de 2023

O SUDÃO CENTRAL: HAUÇÁS E IORUBÁS

  Reinos hauçás foram um conjunto de cidade-Estado independentes iniciados pelos Hauçás, situadas entre os rios Níger e o lago Chade (atual norte da Nigéria). Ficavam entre os reinos do Sudão Ocidental da Antiga Gana e Mali, e os reinos do Sudão oriental de Canem-Bornu.
  Entre os séculos VI e VIII, os hauçás se estabeleceram nas regiões que correspondem atualmente ao norte da Nigéria e ao sudeste de Níger. Para evitar os ataques e saques dos inimigos, fundaram sete cidades, que eram, também, fortalezas. O governo era eleito por um conselho de notáveis.
  De acordo com a lenda de Baiajida, as cidades-Estados Hauçás foram fundadas pelos filhos e netos de Baiajida, um príncipe cuja origem difere pela tradição, mas o cânone ofiical o registra como a pessoa que se casou com Daurama, a última Cabara de Daura, e anunciou o fim das monarcas matriarcais que outrora governaram o povo Hauçá.
Principais cidades dos reinos hauçás. As fronteiras modernas estão em vermelho
  De acordo com a versão mais famosa da lenda, a história das cidades-Estados hauçás começou com um príncipe de Bagdá chamado Abu Iázide. Quando ele chegou a Daura, foi a casa de uma velha e pediu a ela que lhe desse água, mas ela lhe contou a situação difícil da terra, pois o único poço em Daura, cusugu, era habitado por uma cobra chamada Sarqui, que permitia aos cidadãos de Daura buscarem água apenas às sextas-feiras. Como "Sarqui" é a palavra em Hauçá para "Rei", essa pode ter sido uma metáfora para uma figura poderosa. Baiajida matou Sarqui, e por causa desse feito, a rainha casou-se com ele por sua bravura.
  Depois de seu casamento com a rainha, as pessoas começaram a chamar de Baiajida, que significa "ele não entendia (a língua) anteriormente". Baiajida teve um filho com a rainha Daurama, chamado Bauó, e outro filho com Baquaria, criada da rainha, chamado Carbagari.
Uma família hauçá, em 2022
  Os Reinos Hauçás começaram como sete cidades-Estados fundadas, de acordo com a lenda Baiajida, pelos seis filhos de Bauó e ele próprio. Essas cidades incluíam apenas reinos habitados por falantes da língua hauçá. As sete cidades-Estados eram: Daura, Cano, Catsina, Zária, Gobir, Rano e Hadeja.
  Algumas cidades chegavam a ter de 30 mil a 60 mil habitantes e tornaram-se pontos importantes de comércio, sobretudo de artesanato, tecidos, calçados e artigos de metal.
  No século XIV, Cano havia se tornado a cidade-Estado mais poderosa e se tornou a base do comércio transaariano de sal, tecido, couro e grãos. Essa cidade é considerada o centro comercial e cultural dos hauçás.
  Em termos de relações culturais com outros povos da África Ocidental, os hauçás são culturalmente e historicamente próximos dos fulas, songais, mandês e tuaregues, bem como outros grupos afro-asiáticos e nilo-saariano.
Cano, na Nigéria, é considerada o centro comercial e cultural dos hauçás
  Mais para o oeste da África, onde hoje ficam Nigéria e Benin, encontravam-se povos de língua iorubá. Eles estavam distribuídos em sete cidades, cuja riqueza vinha do comércio e dos impostos cobrados dos comerciantes. Ilé Ifé era governada pelo grande sacerdote. Todas as cidades tinham um governo eleito e formado por um conselho de Estado, com mandato por período determinado. Eles tinham a responsabilidade de conservar os costumes tradicionais e zelar pela segurança das cidades.
  Os iorubás constituem um dos maiores grupos étnico-linguísticos da África Ocidental, com mais de 30 milhões de pessoas em toda a região. Trata-se do segundo maior grupo étnico da Nigéria, correspondendo em torno de 21% da sua população total.
Porcentagem nativa de iorubás na Nigéria, Benin e Togo
  A partir do século VII a.C., os povos africanos que viviam em Iorubalândia, não foram inicialmente conhecidos como iorubá, embora eles compartilhassem um grupo de etnia e língua comum.
  A história oral registrada sob o Império de Oió deriva o iorubá como um grupo étnico da população do reino mais antigo do Ilé-Ifé. Arqueologicamente, o povoado de Ifé pode ser datado do século IV a.C., com estruturas urbanas aparecendo no século XII.
  O Império de Oió e seu Obá, conhecido como Alafim de Oió, era ativo no comércio de escravos durante o século XVIII. O iorubá muitas vezes exigiu escravos como uma forma de homenagem das populações, objeto que, por sua vez, às vezes faziam guerras contra outros povos para capturar os escravos necessários.
  A maioria das cidades-Estados foram controladas por Obás (ou soberanos reais com vários títulos individuais) e os conselhos compostos por Oloiês.
  Os iorubás deixaram uma presença importante no Brasil, particularmente muito significativa na Bahia.
Pessoas iorubás, em 2021
FONTES:
WIKIPÉDIA. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Reinos_hauçás. Acesso em: 22/05/2023.
WIKIPÉDIA. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/iorubás. Acesso em: 22/05/2023.

segunda-feira, 15 de maio de 2023

O AGNOSTICISMO


   O agnosticismo é um termo proveniente do grego "agnostos" e significa "negação ao conhecimento", no entanto, para os adeptos dessa linha de pensamento, a postura devida de quem o segue não significa estar simplesmente fechado ao conhecimento ou aos referenciais das coisas, mas sim em uma posição dialética de conteúdos definidos. Eles formulam sua opinião com base em observações e convicção filosófica, ética, social e política, tudo sob um ponto de vista racional.

  O agnosticismo é uma crença de que a capacidade humana é incapaz de saber se existem ou não divindades, pois elas são muito além da compreensão humana. Para uma pessoa agnóstica, é impossível saber se existem ou não divindades, pois elas transcendem a realidade e a lógica. Em alguns sentidos, o agnosticismo é o meio entre o ateísmo e o teísmo; nesse sentido, um agnóstico nem desacredita ou acredita em divindades e muito menos afirma que Deus (es) existe ou não.

  A teoria denominada agnosticismo admite seres inacessíveis ou incognoscíveis ao entendimento humano as ideias propostas pela metafísica, entre elas, a da existência divina. A posição assumida por agnósticos, no entanto, pode provocar estranheza, uma vez que a maioria das pessoas possui alguma crença religiosa.

  De modo geral, o agnóstico abstém-se de concluir se Deus existe ou não, alegando falta de evidências e a impossibilidade racional de conhecê-lo. Ele não crê nem descrê. O filósofo francês André Comte-Sponville se referiu a essa postura com certa ironia:

  "Se essa posição é mais correta que outras é o que nenhum saber garante. É preciso crer nela, e é por isso que o agnosticismo também é uma espécie de fé, só que negativa: é crer que não se crê".

Charge ironizando o agnosticismo

  Nesse tópico, é pertinente mencionar Immanuel Kant (1724-1804), autor de grande expressão filosófica do iluminismo alemão. Na obra Crítica da razão pura, ao julgar a capacidade da razão para conhecer, Kant concluiu que todo conhecimento depende em parte dos dados da experiência. Assim, os conceitos metafísicos - como as ideias de alma, mundo e Deus - não são acessíveis à razão por não pertencerem ao âmbito de nossa experiência possível. Kant se absteve, então, de argumentar sobre esses conceitos, porque tanto é possível defender a existência de Deus como negá-la, sem que se chegue a uma conclusão.

  Seria apressado, porém, qualificar a posição kantiana como agnóstica, uma vez que o filósofo apenas criticava a metafísica ao negar a possibilidade de conhecer aquelas verdades pela razão (as ideias de alma, mundo e Deus). Tanto é que, em outra obra, a Crítica da razão prática, os conceitos mencionados são recuperados como postulados, ou seja, como pressupostos que permitem explicar a lei moral e seu exercício.

Principais correntes do agnosticismo

  • Agnosticismo teísta - vertente voltada especificamente para a questão sobre a existência de divindades, engloba tanto o teísmo, quanto o agnosticismo. Um agnóstico teísta acredita na existência de pelo menos uma divindade, mas diz respeito à base desta proposição como "algo desconhecido ou inerente incognoscível".
  • Agnosticismo ateísta - também voltada para a questão da existência de divindades, engloba o ateísmo e o agnosticismo. Ateus agnósticos entendem que o conhecimento sobre a existência de uma divindade ou é incognoscível, ou ainda é desconhecida, porém, manifestam opinião pessoal de não acreditar na existência de divindades.
  • Agnosticismo forte - é o estilo de agnosticismo adequado às dúvidas que não podem ser respondidas, independentemente de quantas provas coletemos, uma vez que a própria ideia de "prova" não pode ser aplicada. A dúvida existe em uma dimensão além de que as provas podem alcançar. Agnósticos fortes quanto à existência de divindades defendem, portanto, a ideia de que a compreensão ou conhecimento sobre deuses ou o sobrenatural se encontra - e sempre se encontrará - completamente fora das possibilidades humanas. Agnósticos permanentes por princípio não manifestam uma opinião pessoal quanto à existência ou não do sobrenatural.
  • Agnosticismo empírico - a ideia de que a compreensão e conhecimento do divino ou sobrenatural não é, até ao momento, possível. Admite a possibilidade do aparecimento de novas evidências e provas sobre o assunto.
  • Agnosticismo apático - a ideia de que, apesar da impossibilidade de provar a existência de deuses ou sobrenatural, a existência destes não teria qualquer influência negativa ou positiva na vida das pessoas, na Terra ou no Universo em geral.
  • Ignosticismo - embora se questione a compatibilidade deste grupo com o agnosticismo ou ateísmo, há quem o considere como um grupo agnóstico. Esse grupo baseia-se no fato de que primeiramente é preciso definir Deus, para apenas posteriormente discutir sua existência. Para cada definição de Deus, pode haver uma discussão diferente e diferentes grupos de ateus, ateístas e agnósticos referentes àquela definição particular.
  • Agnosticismo modelar - ideia de que questões metafísicas e/ou filosóficas não podem ser verificadas nem validadas, mas que um modelo maleável pode ser criado com base no pensamento racional. Esta vertente agnóstica não se dedica à questão da existência ou não de divindades.

Esquema clássico do conhecimento: é possível afirmar, geneticamente falando, a existência de crenças verdadeiras sem necessariamente afirmar que constituam conhecimento; entretanto, nunca se pode afirmar se uma crença específica é verdadeira ou falsa sem que haja justificativa (o que a transformaria em conhecimento).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

COMTE-SPONVILLE, A. Dicionário filosófico. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Col. Pensamento humano. Tradução e notas de Fernando Costa Mattos. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Tradução Valério Rohden. Ed. Bilíngue. São Paulo: Martins Fontes, 2003.


quarta-feira, 10 de maio de 2023

A AVICULTURA NO BRASIL

  A avicultura é um ramo da zootecnia dedicado à criação de aves para a produção de alimentos, especialmente carnes e ovos. Esse ramo representa um dos grandes pilares da economia brasileira, movimentando capital e gerando empregos. Nesse setor, o Brasil é um dos maiores exportadores mundiais de aves e ovos. O país é o maior exportador mundial de carne de frango e o sexto maior exportador de ovos do mundo.

  Dentre os fatores que contribuem para a produção de aves no Brasil, estão: clima favorável, abundância reservas hídricas, disponibilidade de terra cultivável para a produção de grãos, mão de obra abundante, tecnologia para o desenvolvimento da avicultura em clima tropical e grande mercado consumidor.

  A avicultura se divide em algumas áreas, como a avicultura de corte e a avicultura de postura.

Avicultura de corte

  A avicultura de corte é o nome dado a criação de aves que serão levadas ao abate com o objetivo de comercialização da sua carne. Atualmente, essa é uma das atividades agropecuárias mais desenvolvidas. Com cerca de 40 dias as aves já estão prontas para o abate, diferente do início da atividade no Brasil, que levava cerca de 6 meses para alcançar o peso de abate.

Frangos de corte

Avicultura de postura

  A avicultura de postura se destina a criação de galinhas para a produção de ovos, também conhecidas como poedeiras. A produção pode se dividir entre ovos para a reprodução e para o consumo. A diferença que se faz entre uma e outra é a presença do galo.

  Na produção de ovos para reprodução, se faz necessário a presença do galo para que sejam "galados", ou seja, fertilizados. Já na produção de ovos para o consumo, a presença do galo é dispensável, porque os ovos estéreis se conservam melhor.

Criação de galinhas no sistema de granja para a produção de ovos

Histórico da criação de aves no Brasil

  As primeiras aves que chegaram ao Brasil foram trazidas pelas caravelas de Pedro Álvares Cabral, em 1500. As aves, originárias da Ásia, eram mestiças, produtos do cruzamento ao longo de séculos. A criação de aves se desenvolveu primeiramente nas cidades litorâneas de forma rústica.

  Com a interiorização da colonização, sobretudo por conta do ciclo do ouro, a produção comercial começou a ganhar força. No final do século XIX, Minas Gerais se destacou como o maior produtor nacional de aves.

  Os primeiros aviários de raças puras, chamados de basse-cour, foram instalados no Rio de Janeiro, dando um novo impulso para a criação de frangos no Brasil. Em 1895, o aviário Leste Basse-Cour, realizou pela primeira vez um estudo para selecionar a raça de maior interesse econômico para os criadores brasileiros entre as aves importadas.

Figurinha mostrando o sistema basse-cour na França, em 1695

  Na década de 1930, a avicultura comercial contava com diversas iniciativas privadas, principalmente na Região Sudeste, e o desenvolvimento da atividade foi acelerado com a chegada dos imigrantes japoneses.

  Os avanços da genética proporcionaram um novo impulso à criação de frangos no Brasil a partir dos anos 1950, quando foram desenvolvidos também vacinas, equipamentos e nutrição específicos para a avicultura. No início da década seguinte, as grandes agroindústrias avícolas ganharam estrutura.

  A consolidação da avicultura nacional se consolidou a partir da década de 1970, com a entrada de empresas processadoras no mercado que proporcionaram transformações tecnológicas, técnicas de produção intensiva e desenvolvimento de genética adaptada.

  Na mesma época, Santa Catarina ganhou destaque com a introdução do Sistema de Integração Vertical, uma parceria entre frigoríficos e produtores. O novo modelo proporcionou ao avicultor o apoio da indústria para o fornecimento dos principais insumos e assistência técnica, garantindo maior produtividade, qualidade e biossegurança.

Modelo do Sistema de Integração Vertical na avicultura

A produção moderna de frangos no Brasil

  Dentro do complexo brasileiro de carnes, a avicultura é considerada por muitos como a atividade mais dinâmica. O desenvolvimento dessa atividade ocorreu a partir do final da década de 1950, nos estados da Região Sudeste, principalmente em São Paulo. As primeiras matrizes destinadas à criação no sistema de granja foram importadas e desembarcaram no extinto estado da Guanabara e, em seguida, Rio de Janeiro, São Paulo e, em um segundo momento, Santa Catarina. Na década de 1970, período em que houve profunda reorganização do complexo de carnes no Brasil, a atividade passou a ser liderada pelos estados de Santa Catarina e Mato Grosso, devido principalmente à grande produção de grãos de milho e soja.

  Considerado um dos grandes produtores de frango do mundo, o Brasil tem uma cadeia que gera cerca de 1 milhão de empregos relacionados apenas a produção de frangos de corte. Sobre a produção de ovos, o cenário também não é muito diferente.

O avanço da tecnologia vem permitindo uma maior produção de frangos no Brasil

  Em 2022, segundo o IBGE, foram abatidos no Brasil um total de 1.564.983.384 frangos, onde mais da metade dessa produção foi exportada, o que torna o país o maior produtor e exportador mundial de frangos. A grande produção e o consumo de carne de frango, fez com que essa atividade se tornasse extremamente importante para a economia do país, seguindo rígidos padrões internacionais e cumprindo pré-requisitos técnicos muito específicos. Além disso, surgem cada vez mais estratégias nutricionais que, além de melhorarem os aspectos nutricionais das aves, refletem nos resultados da produção.

  Os principais importadores de carne de frango do Brasil em 2022, segundo o IBGE, foram: China, Emirados Árabes Unidos, Japão, Arábia Saudita, África do Sul, Filipinas, Coreia do Sul, Países Baixos, México e Singapura.

  Em 2022, segundo o IBGE, os maiores produtores de frangos do Brasil foram: Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, São Paulo, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pernambuco e Bahia.

Avícola no Paraná. O estado é o maior produtor nacional de frangos

Desafios e oportunidades

  Entre os principais desafios da avicultura no Brasil atualmente, está a necessidade de adequação dos sistemas de produção às novas exigências de bem-estar animal. Esse conceito envolve uma forma ética e humanitária de atuação e diz respeito à crescente conscientização sobre a importância de ajustar os sistemas de criação de forma a respeitar os animais em suas necessidades fundamentais. Esse é um reflexo de uma mudança de pensamento no mercado.

  É importante ter ciência de que a preocupação com o bem-estar animal deve ser conciliada à produção e à manutenção dos índices produtivos, promovendo a produtividade sem comprometer as bases da sustentabilidade.

  Para tal, os processos de produção da avicultura brasileira devem seguir rígidos protocolos e uma legislação clara, que norteia tudo o que envolve o setor. Somente assim, é possível manter bons níveis de produtividade sem comprometer significativamente o bem-estar animal.

  A avicultura brasileira se mantém competitiva ao respeitar rígidas normas e diretrizes produtivas. Respeitar as rotinas de manejo, as práticas de sanidade, o isolamento das granjas e os protocolos de biossegurança são alguns dos pontos que garantem a correta adequação dos processos produtivos.

Avícola em Santa Catarina. O estado é o segundo maior produtor nacional de frangos

FONTES:

IBGE. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/explica/producao-agropecuária. Acesso em: 10/05/2023.

NutriAves. Disponível em: https://www.nutriavesdistribuidora.com.br/historia-da-avicultura-no-brasil. Acesso em: 09/05/2023.

Wikipédia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Avicultura. Acesso em: 09/05/2023.

quarta-feira, 3 de maio de 2023

A DISPUTA ESTADOS UNIDOS X CHINA

   China e Estados Unidos são atualmente as duas maiores economias do mundo. Os países apresentam um longo histórico de tensões diplomáticas e disputas comerciais, as quais se acirram a partir da ascensão econômica da China e de uma potencial ameaça à hegemonia econômica estadunidense. Recentemente, os países se viram imersos em uma guerra comercial pela taxação de produtos importados e disputas de alegações de espionagem.

Origem do conflito China X EUA

  Os momentos de tensão e conflitos nos campos diplomático e econômico têm suas raízes em meados do século XX. Na China, o ano de 1949 foi marcado pela ascensão de Mao Tsé-Tung ao poder e à fundação da atual República Popular da China (RPC), tendo adotado um governo de regime socialista. Tal feito ocorreu mediante a vitória do Partido Comunista na Revolução Chinesa.

  O contexto mundial era o do pós-Segunda Guerra Mundial e da disputa entre Estados Unidos e União Soviética, a chamada Guerra Fria. Durante a Revolução Chinesa, os Estados Unidos haviam demonstrado apoio aos nacionalistas chineses, que saíram derrotados na revolução e se refugiaram na ilha de Formosa (que passou a ser chamada de Taiwan), enquanto que os comunistas, vitoriosos, receberam apoio da União Soviética.

  Uma das questões levantadas sobre as relações entre taiwaneses e norte-americanos era o Acordo de Tapei, que tinha como partes Estados Unidos e Taiwan, e foi assinado em 2 de dezembro de 1954. O impasse entre China e Taiwan remonta o século XVII, quando a ilha foi governada pelos chineses, durando cerca de dois séculos. Desde então, a China reivindica Taiwan como parte do seu território, considerando a ilha uma província rebelde. Os taiwaneses não reconhecem esse status e se declaram um país independente.

Mapa destacando China e Taiwan com suas respectivas bandeiras

  Na década de 1960, a China rompeu relações com a União Soviética, incitando tensões na região de fronteira entre os territórios soviético e chinês. Isso levou o governo da China a se reaproximar dos Estados Unidos, buscando retomar certa harmonia entre eles. O novo momento de relações entre norte-americanos e chineses foi representado pela visita do então presidente norte-americano, Richard Nixon, à China, em 1972.

  Estados Unidos e China retomaram suas relações oficialmente no ano de 1978, mediante a asseguração de que o Acordo de Taipei seria considerado sem validade a partir de então e do reconhecimento de que Taiwan era parte do território chinês. Apesar de o sistema socialista chinês ter se mantido, esse período foi marcado pelas reformas econômicas que visavam à abertura de mercado. Para os Estados Unidos, essas reformas significavam a expansão da dinâmica capitalista pelo planeta.

  Com a queda do bloco soviético, o socialismo de mercado chinês continuou sendo visto como um importante aliado na sustentação e na expansão do capitalismo global. No final da década de 1990, por exemplo, a crise econômica que afetou muitos países da Ásia fortaleceu a importância regional da China. O país era visto como um ponto de apoio para a expansão do modelo econômico neoliberal defendido pelos Estados Unidos.

George W. Bush (então presidente dos EUA) e Hu Jintao (então presidente da China) se cumprimentam em Zhongnanhai, em 2008

  Essa configuração, porém, começou a mudar no final dos anos 2000. Nessa época, a economia chinesa se modernizava rapidamente, o que tornava suas exportações mais competitivas. Além disso, a China ocupa uma posição estratégica na Ásia, podendo influenciar as dinâmicas políticas de muitos países da região. Diante desse contexto, a China estava se tornando uma potência regional que ameaçava a influência estadunidense em muitos países.

  Essa combinação de grande expansão econômica e fortalecimento político fez com que o governo dos Estados Unidos passasse a observar o país não mais como um aliado, mas como um grande concorrente. Dessa forma, as disputas entre os Estados Unidos e a China ganharam cada vez mais importância no contexto global, pois as duas nações buscam a hegemonia no mundo contemporâneo e visam ampliar sua influência política, cultural e econômica no mundo.

Encontro na Casa Branca em 2011 do presidente dos Estados Unidos, Barak Obama, e o presidente da China, Hu Jintao

Governo Trump e o crescimento das tensões

  Ao final do governo de Barak Obama (2009-2017), os Estados Unidos já se posicionavam de forma crítica diante do avanço econômico da China. Essa situação seguiu uma intensa radicalização após a posse de Donald Trump como presidente do país, em 2017. Seu governo foi marcado por uma série de ações visando transformar a China em uma das principais ameaças ao desenvolvimento dos Estados Unidos.

  Por meio de declarações agressivas em suas redes sociais e intenso uso de propaganda, Trump e seus aliados fortaleceram a desconfiança da opinião pública sobre o país oriental. Além disso, foram tomadas diversas medidas visando conter o crescimento econômico da China.

  Em 2019, por exemplo, o governo dos Estados Unidos passou a perseguir um grande conglomerado de telecomunicações chinês (Huawei, uma das pioneiras da tecnologia 5G), ao defender a proibição global de suas operações. Essa corporação tem um papel importante no fornecimento de equipamentos necessários para a criação de redes sem fio pelo planeta.

  De forma simples, em 2020, o governo Trump defendeu medidas para proibir o funcionamento de duas redes sociais chinesas de grande influência no planeta (WeChat e TikTok). Alegando o risco de espionagem, o governo determinou que a empresa chinesa deve vender suas redes sociais para empresas estadunidenses ou ser banida dos Estados Unidos. Esses dois exemplos demonstram a relação profunda entre disputa política e econômica e o crescimento das tensões entre os dois países.

JOSWIG, D. Disputa comercial USA - China. A charge ironiza as políticas estadunidenses que visam restringir o crescimento da economia chinesa

China e Estados Unidos na atualidade

  Em 2022, as tensões geopolíticas entre China e Estados Unidos foram reacendidas com o anúncio da visita da presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, Nancy Pelosi, à ilha de Taiwan. A viagem aconteceu no início de agosto sob a reprovação do governo chinês, que viu nesse gesto uma provocação dos Estados Unidos. Além disso, alguns meses antes desse acontecimento, o atual presidente norte-americano, Joe Biden, afirmou que os Estados Unidos auxiliariam Taiwan militarmente. A China realizou exercícios militares próximo à ilha taiwanesa quando da visita da congressista norte-americana, o que acendeu um sinal de alerta em todo o mundo.

  O incidente de um balão espião chinês que sobrevoou os Estados Unidos, em fevereiro desse ano (2023), causou um novo atrito diplomático entre os dois países. Em 2 de fevereiro, autoridades de defesa norte-americanas observaram o que suspeitavam ser um balão de vigilância e rastrearam seu caminho pelos Estados Unidos sobre o estado de Montana. Autoridades chinesas reconheceram que o balão pertence ao país, mas afirmaram que se trata de um dispositivo civil de uso meteorológico.

  Essa situação pode se agravar ainda mais, já que o governo chinês vem agindo para enfraquecer a influência estadunidense. Por isso, essa disputa pode se tornar um dos principais focos de tensão no mundo contemporâneo.

O balão de vigilância chinês

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BECARD, Danielle Silva Ramos. O Brasil e a República Popular da China: política externa comparada e relações bilaterais (1974-2004). Brasília: FUNAG, 2008.

ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. São Paulo: Boitempo, 2008. Tradução Beatriz Medina.

CORREIA, Beatriz. Examinando: o que é a "Guerra Comercial" entre os Estados Unidos e a China. Revista Exame, 16 nov. 2020.

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