quinta-feira, 7 de abril de 2022

REFORMA AGRÁRIA

  Reforma agrária é a reorganização da estrutura fundiária com o objetivo de promover e proporcionar a redistribuição das propriedades rurais, ou seja, efetuar a distribuição da terra para a realização de sua função social.

  A noção de reforma agrária existe desde a Antiguidade Clássica, visto que as concentrações das terras eram, já naquele tempo, consideradas prejudiciais ao equilíbrio da sociedade. Na Idade Moderna essa concepção perdurou.

  Durante o período feudal na Europa, as leis agrárias reforçaram a dependência dos camponeses em relação aos senhores da terra. Na Idade Média, houve o favorecimento da concentração de terras e da expansão latifundiária.

  Na Inglaterra, a partir do século XVII, as Leis de Cercamentos (Enclosure Acts) levaram a um processo de destruição dos campos abertos e dos pastos comuns, com a privatização de terras que antes haviam sido de uso coletivo. Essas terras passaram a se concentrar nas mãos de poucos e poderosos proprietários.

O trabalho na terra à sombra do castelo, iluminura de Les très riches heures du duc de Berry, que retrata como era a vida durante o Feudalismo

Distribuição de terras no Brasil

  Após o descobrimento do Brasil pelos portugueses, estabeleceu-se a estratégia de ocupação das terras abundantes utilizando pouca mão de obra local. As plantações eram voltadas para a exportação, utilizando mão de obra composta, majoritariamente, por escravos africanos. Apesar da abundância de terras, o acesso à terra sempre foi dificultado pela presença perene do "proprietário".

  Assim, podemos considerar como início da concentração de terras no Brasil o período em que havia sesmarias. Mais tarde, com a independência do país, a resolução de 17 de julho de 1822, suspendeu a concessão de novas sesmarias. Nessa época, sem uma regulamentação de terras mais estrita, aumentou o número de posseiros e de grandes propriedades, aumentando as oligarquias rurais.

Marco de Sesmaria, na cidade do Rio de Janeiro, pintura de Eliseu Visconti

  Em 1850, foi aprovada a Lei de Terras (Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850), após anos de discussões. Essa lei forçou o reconhecimento da pequena propriedade para o desenvolvimento da economia nacional, mas também garantiu a revalidação das antigas sesmarias e das posses adquiridas até aquele momento.

  Uma das primeiras tentativas de modificar a distribuição de terras no Brasil ocorreu em 1962, com a proposta de Reformas de Base do governo de João Goulart, o Jango (1919-1976), entre 1961 e 1964. Com o apoio das Ligas Camponesas - movimento de luta pela reforma agrária, liderado por Francisco Julião e Alexina Crespo entre as décadas de 1950 e 1960 - foi encaminhado, nesse período, um Projeto de Lei de Reforma Agrária. No entanto, em 1964, com a ditadura militar em curso, a reforma foi preterida pela sanção do Estatuto da Terra, supostamente criado para garantir o direito ao acesso à terra para quem nela vivia e trabalhava, mas que não teve sua devida implementação.

Integrantes do movimento Ligas Camponesas, em Pernambuco, na década de 1960

  Os militares elaboraram ainda o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), que incluía a criação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), a classificação das propriedades por área (minifúndio e latifúndio, em termos de módulos rurais) e a Legislação Trabalhista Rural. O Plano, no entanto, foi aprovado apenas em 1985, no governo de José Sarney.

  Apesar de seus avanços, sobretudo por determinar a função social do uso da terra, o Estatuto de 1964 apresentou uma dualidade entre a reforma agrária e a modernização do campo. As grandes propriedades foram favorecidas pela modernização e o acesso ao crédito. Mesmo após a Constituição de 1988, a reforma agrária segue sem sair do papel, uma vez que menos de 1% das propriedades agrícolas detém quase metade da área rural no país, de acordo com um estudo realizado pela organização não governamental (ONG) britânica Oxfam, realizado em 2016.

O governo militar preferiu modernizar as grandes fazendas a promover a reforma agrária. Ainda assim, foi deste período que saiu o Estatuto da Terra, o qual inspiraria a Constituição de 1988.

Distribuição de terras no Brasil

  Com dados do Censo Agropecuário de 2017 do IBGE, é possível indicar que a distribuição de terras no Brasil encontra-se concentrada nas mãos de poucos e grandes proprietários, apesar de pequenos proprietários serem maioria em quantidade de propriedades rurais.

  No Brasil, os pequenos produtores são responsáveis por 70% de todos os tipos de alimentos consumidos no país, uma vez que as grandes propriedades voltam suas produções às commodities para exportação. Além disso, 30% de todas as compras para a alimentação pública escolar vêm de pequenos produtores.

Alguns dados sobre o Censo Agropecuário do IBGE 2017

Reforma agrária no Brasil

  A partir dos anos 1970, em decorrência da rápida e intensa modernização da agricultura no Brasil, houve a progressiva expulsão dos trabalhadores do campo e cresceu o número de trabalhadores temporários, denominados "boias-frias" ou "clandestinos", "volantes".

  Nesse contexto, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura  (Contag) retomou a bandeira da reforma agrária. Nessa época, também foi criada a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o trabalho da Igreja Católica no campo por meio das Comunidades Eclesiais de Base (CEB).

  Até o início dos anos 1980, novas ocupações de terra foram realizadas por trabalhadores rurais que reivindicavam a reforma agrária. Essa era uma das principais bandeiras da luta pela redemocratização do país. O processo deu origem, em 1983, ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), com a ocupação de terras improdutivas, sobretudo no Sul do país. Em contrapartida, os grandes proprietários de terra criaram a União Democrática Ruralista (UDR).

Encerramento do 5º Congresso do MST, em Brasília, em 2007

  Nos anos 1990, houve a criação da Lei Agrária (Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993) como resultado da disputa entre a bancada ruralista no Congresso Nacional, representante dos grandes proprietários, e a bancada que defendia os trabalhadores do campo, composta principalmente pelo Partido dos Trabalhadores (PT).

  Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e 2003, as ocupações de terra se intensificaram, apesar do governo ser favorável às políticas de privatização, e as grandes movimentações do MST culminaram na chamada Marcha para Brasília, em abril de 1997. As desapropriações, ou seja, a retirada da posse das terras improdutivas dos seus donos, realizada desde o início dos anos 1980, geraram diversos assentamentos (porções de terras improdutivas onde famílias rurais ocupam e passam a viver, a produzir alimentos e a lutar pela desapropriação e por seu direito à posse) em diferentes pontos do país.

  No entanto, no final do século XX e no início do século XXI, no contexto da expansão das políticas econômicas neoliberais, o Partido dos Trabalhadores (PT) teve seu primeiro presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, eleito em 2002 com a promessa de colocar a reforma agrária em prática. Contudo, o modelo político de coalizão política adotada pelo PT, perpetuou as ações anteriores que tentavam conciliar os interesses de camponeses e ruralistas.

Bandeira do MST

Mulheres no campo

  A presença das mulheres na luta pela distribuição e acesso à terra é parte fundamental desse processo. As reivindicações iniciais das mulheres trabalhadoras rurais se referiam ao reconhecimento enquanto agricultoras e ao direito à posse de terra. Essas reivindicações foram incorporadas à Constituição de 1988.

  A história da organização política dessas mulheres remete ao início do século XX, com a liderança de mulheres como Margarida Maria Alves (1933-1983), Alexina Crespo (1926-2013) e Elizabeth Teixeira (1925-?). Em 1987, formou-se o Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste (MMTR/NE) em 1995, a Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais (ANMTR) e, em 2000, a Marcha das Margaridas.

Marcha das Margaridas percorre a Esplanada dos Ministérios em 2015

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

STEDILE, João Pedro (org.). Experiências históricas de Reforma Agrária no mundo. São Paulo: Expressão Popular, 2020.

PRADO JR., Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2006.

PREZIA, Benedito A.; HOONAERT, Eduardo. Esta terra tinha dono. São Paulo: FTD, 1989.

quarta-feira, 23 de março de 2022

ESCRAVIDÃO, RACISMO E ANTIRRACISMO

   É considerado escravatura, escravidão, escravismo, esclavagismo ou escravagismo, o regime de trabalho no qual homens e mulheres são forçados a executar tarefas sem receber qualquer tipo de remuneração. Além disso, as pessoas escravizadas têm suas liberdades tolhidas, pois são consideradas propriedades de seus senhores, podendo ser vendidas ou trocadas como mercadorias. Porém, não era em todas as sociedades que o escravo era visto como mercadoria: na Idade Antiga, haja vista que os escravos de Esparta, os hilotas, não podiam ser vendidos, trocados ou comprados, isto pois eles eram propriedades do Estado espartano, que podia conceder a proprietários o direito de uso de alguns hilotas; mas eles não eram propriedade particular, não eram pertencentes a alguém, era o Estado que tinha poder sobre eles.

  A escravidão da era moderna está baseada num forte preconceito racial, segundo o qual o grupo étnico ao qual pertence o comerciante é considerado superior, embora já na Antiguidade as diferenças étnicas  fossem bastante exaltadas entre os povos escravizadores, principalmente quando havia fortes disparidades fenotípicas. Na Antiguidade também foi comum a escravização de povos conquistados em guerras entre nações.

  Enquanto modo de produção, a escravidão assenta na exploração do trabalho forçado da mão de obra escrava. Os senhores alimentam os seus escravos e apropriam-se do produto restante do trabalho destes. A exploração do trabalho escravo torna possível a produção de grandes excedentes e uma enorme acumulação de riquezas, e contribuiu para o desenvolvimento econômico e cultural que a humanidade conheceu em dados espaços e momentos: grandes construções, como diques e canais de irrigação, castelos, pontes e fortificações, exploração de minas e florestas, desenvolvimento da agricultura em larga escala, abertura de estradas, desenvolvimento das artes e letras, entre outros.

  Nas civilizações escravagistas, não era pela via do aperfeiçoamento técnico dos métodos de produção (que se verifica com a Revolução Industrial) que os senhores de escravos procuravam aumentar a sua riqueza. Os escravos, por outro lado, sem qualquer interesse nos resultados do seu trabalho, não se empenhavam na descoberta de técnicas mais produtivas.

  Atualmente, apesar de a escravidão ter sido abolida em quase todo o mundo, ela ainda continua existindo de forma legal no Sudão e de forma ilegal em muitos países, como Índia, China, Paquistão, Nigéria, Etiópia, Rússia, Arábia Saudita, Tailândia, República Democrática do Congo, entre outros.

Am I Not a Man and a Brother? ("Não sou um homem e um irmão?"): medalhão de 1787 desenhado por Josiah Wedgwood para a campanha abolicionista britânica

  A escravidão no Brasil, além de originar uma história nacional de grande concentração da propriedade da terra nas mãos de poucos, como permanece até hoje, deixou-nos como herança outro grave problema social: o racismo, prática da discriminação de pessoas em virtude do tipo de cabelo, da cor da pele e de características de fenótipo.

  O racismo não é apenas uma questão subjetiva, visto que estrutura a organização de nossa sociedade com base no preconceito e no ódio. É disseminado na forma ideológica, às vezes de maneira clara, às vezes de maneira disfarçada. Pretos e pardos são, comprovadamente, as pessoas mais pobres do Brasil, sujeitos às piores condições de saneamento, educação e saúde.

  Historicamente, os povos originários das Américas e seus descendentes estiveram também sujeitos à escravidão, ao racismo e a suas consequências sociais. No Brasil, os grupos indígenas enfrentam  - e resistem - a um genocídio de séculos, seja pela exploração de sua força de trabalho, seja pelo interesse de latifundiários em roubar suas terras. Os indígenas de outros países da América Latina enfrentam - e também resistem - a problemas semelhantes.

"Índios soldados da província de Curitiba escoltando prisioneiros nativos", obra de Jean-Baptiste Debret

Origens da economia escravista moderna

  O capitalismo que nascia no século XVI teve como base de apoio o Estado e o comércio internacional. A estrutura feudal foi o motivo central para que os comerciantes europeus se esforçassem em buscar o comércio em territórios distantes. Dividindo os reinos em feudos, o sistema tornava difícil a comercialização interna a partir de certa escala.

  Em momento histórico subsequente, o reforço do poder central do Estado e o consequente enfraquecimento do poder dos senhores feudais levaram à unificação e à expansão dos mercados internos, permitindo o desenvolvimento da classe burguesa, o surgimento dos Estados modernos e o aparecimento da doutrina econômica mercantilista.

  Ao longo do século XVI, com o início da colonização das Américas, a migração forçada de africanos pelo oceano Atlântico, por traficantes que os vendiam como escravizados, foi adquirindo grandes proporções. A principal causa desse sombrio fenômeno foi a demanda das colônias espanholas e portuguesas por mão de obra para a agricultura de exportação e a extração de minérios.

Traficantes de escravos árabes e seus cativos ao longo do rio Rovuma, entre a atual fronteira de Moçambique e Tanzânia, na África

O tráfico de africanos para o Brasil

  No início do povoamento até 1590, os portugueses utilizavam majoritariamente escravizados indígenas para trabalhar nas lavouras de cana-de-açúcar, principal produto de exportação da colônia. Com o tempo, os escravizados africanos, por serem considerados fisicamente mais fortes para o trabalho, menos propensos à fuga - uma vez que não conheciam o território como os indígenas, que já viviam no continente - e explorados em um comércio lucrativo, passaram a ser preferidos pelos donos das plantações e engenhos. O Brasil se tornou o maior importador de escravizados africanos do século XVI até 1850.

  As condições nas quais os cativos africanos eram trazidos nos navios negreiros eram as piores possíveis. Antes de serem jogados no porão do navio, os africanos tinham o símbolo do traficante a que pertenciam marcado com ferro em brasa em sua pele. Ao longo dos séculos XVI e XVII, os navios portugueses levavam cerca de quinhentos africanos em cada viagem. Contudo, no século XIX, já existiam navios a vapor, que se incumbiam dessa tarefa. Estes, embora levassem um número menor de africanos escravizados (pois havia necessidade de espaço para as máquinas a vapor), eram mais velozes e escapavam com mais facilidade da fiscalização inglesa contra o tráfico negreiro.

Pintura registra o interior de um navio negreiro

  • A escravidão no Brasil

  A escravidão compõem a maior parte da história dos trabalhadores brasileiros. Afinal, foram mais de trezentos anos de escravização de indígenas e africanos, somando-se o período colonial e imperial. Trata-se de um regime de utilização forçada do trabalho humano que serviu para o acúmulo de riquezas nas mãos dos senhores, donos dos seres humanos transformados em mercadoria. Essa concentração de riqueza que teve origem com o trabalho escravo, assim como o racismo e a discriminação de pessoas negras, permanece no Brasil atual, como sombria herança do passado.

  Antes de chegar ao Brasil, os africanos eram presos em planícies do interior da África, levados até o litoral, onde permaneciam em cercados ou galpões por semanas à espera de um navio negreiro para serem transportados. Ao embarcar, eram jogados no porão com mais de trezentas ou quinhentas pessoas. Assim confinados, iniciavam a travessia do oceano Atlântico, que durava de um mês a cinquenta dias. Muitos morriam durante essa sofrível travessia.

  No litoral brasileiro, os cativos eram desembarcados e vendidos aos fazendeiros que os havia encomendado. Havia tráfico também no interior do território, pois os escravizados eram deslocados do campo para as cidades, das regiões açucareiras do Nordeste do Brasil para as áreas de mineração no Centro-Oeste e, mais tarde, para as lavouras de café do Sudeste. Em cada região de trabalho, o uso de castigos físicos sistemáticos era o principal mecanismo de controle e "disciplinamento" dessas milhares de pessoas.

Comércio Triangular, usado no comércio atlântico de escravos, entre os séculos XVI e XIX

  Durante os séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, uma vez desembarcados, vendidos e distribuídos, os africanos escravizados eram utilizados nos latifúndios de cana-de-açúcar e plantações de café, na mineração de ouro e diamantes e no trabalho doméstico na casa dos senhores. Os escravizados que desempenhavam tarefas domésticas para seus donos tinham as áreas de serviço delimitadas em relação aos ambientes domésticos dos proprietários (ou seja, "áreas sociais" e "de serviço", separação que existe até hoje nos elevadores de edifícios de classes média e alta).

  Para o trabalho nas plantações dos latifúndios, nos engenhos de açúcar e nas minas, era necessária uma grande quantidade de trabalhadores escravizados. O dia a dia desses trabalhadores era sujeito às mais variadas violências, sem contar o definhamento por exaustão e doenças. Os castigos e as punições físicas eram diversos: tronco, chicotadas, imobilização com correntes, ganchos no pescoço. A vida de um escravizado, quando começava a trabalhar nas lavouras do Brasil, não passava de cinco anos. No último quarto do século XIX, a expectativa de vida de um escravizado ao nascer aqui variava em torno de 19 anos ( a de um brasileiro não escravizado era de 27 anos). Ainda assim, o Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, em 1888.

A escravidão no Brasil foi uma instituição cruel que durou mais de 300 anos

Resistência e movimento negro

  A sociedade brasileira foi e continua sendo constituída principalmente pelo trabalho de braços não brancos, majoritariamente negros. Esse grupo possui uma história de luta e resistência que começa justamente com sua escravização. Nos períodos da colônia e do império, do século XVI ao XIX, os escravizados resistiram ao cativeiro e lutaram contra ele de diferentes maneiras.

  A origem comum africana reforçava a identidade coletiva entre os escravizados, assim como a própria disposição para as revoltas. Os escravizados crioulos (negros nascidos no Brasil), por sua vez, não eram passivos. Fugiam, formavam quilombos, rebelavam-se.

  Em janeiro de 1835, ocorreu a mais famosa revolta dos escravizados na Bahia, conhecida como Revolta dos Malês. O nome "malê", vem de muçulmano, porque havia vários líderes muçulmanos na revolta, muitos alfabetizados e instruídos no idioma árabe. No levante, aproximadamente seiscentos escravizados e libertos combateram nas ruas de Salvador - ou seja, foi uma revolta urbana. Os revoltosos foram derrotados pelas forças coloniais e punidos com a morte, chicotadas, prisão e/ou deportação.

Escravos de ganho, que realizavam tarefas remuneradas

Séculos XX e XXI

  Após o fim oficial da escravidão no Brasil em 13 de maio de 1888, não houve no país um regime oficial de segregação dos negros, como nos Estados Unidos (até meados da década de 1960) e na África do Sul (até meados da década de 1990). Mas na prática, o racismo ainda é bastante presente no Brasil e segue espalhando preconceito e discriminação contra pretos e pardos e promovendo a segregação e a exclusão dessa parte da população em relação às possibilidades de estudo e emprego, além de maiores taxas de mortalidade.

  Por isso, por todo o século XX e até agora no século XXI, vários movimentos negros, culturais e políticos, continuam se organizando e lutando no país por justiça e igualdade e desempenhando papel vital na batalha pela construção da democracia no Brasil. Algumas conquistas importantes resultaram dessa luta: a Lei n. 12.711, de 2012 - que assegura a reserva de 50% das vagas nas universidades e nos institutos federais para estudantes de escolas públicas e estudantes que se autodeclararem pretos, pardos ou indígenas; a Lei n. 7.716, de 1989 - que prevê a detenção de um a cinco anos para o crime de discriminação racial (em estabelecimentos privados ou públicos, ofensas, agressões), além de proibir a manifestação de ideias neonazistas.

  Em 2019, no Brasil, os brancos eram 42,7% da população; os pretos, 9,4%; e os pardos 46,8%.

Dados mostrando a porcentagem da população brasileira por etnia

  • A escravidão nos Estados Unidos

  Quando os europeus chegaram à América do Norte, o território já era ocupado por centenas de grupos ou nações indígenas. Para se ter uma ideia, havia mais de trezentas línguas diferentes. De acordo com Leandro Karnal, em História dos Estados Unidos, "Esses povos indígenas, como cherokees, iroqueses, comanches, apaches, dakota, iowa, missouri, entre muitos outros, povoavam o território da costa do Atlântico até à do Pacífico".

  A ocupação desse território por colonos ingleses era justificada por eles mesmos como um direito "dado por Deus". Os colonos expulsavam os indígenas de suas terras porque acreditavam nesse "direito". Também capturavam e vendiam esses indígenas como escravos. Karnal afirma que "Em 1708, por exemplo, na Carolina do Sul havia 1.400 escravos índios". Tal como na América do Sul, a escravização de africanos passou a predominar nas colônias inglesas da América do Norte. O lucrativo tráfico de africanos cada vez mais começou a fornecer mão de obra para as fazendas dos Estados Unidos.

Animação dos territórios e estados dos Estados Unidos que proibiam e permitiam a escravidão - 1789-1861

  Em 1787, a Constituição dos Estados Unidos deixou a cada estado da Federação a decisão de abolir ou não a escravidão em seu território, prescrevendo o fim do tráfico de escravizados para 1808. Nas décadas seguintes, os estados do norte e do centro do país eliminaram a escravidão, mas no sul a abolição prejudicaria a economia de monoculturas para exportação. Ali, em vez de desaparecer, a escravidão começou a crescer. Após a Guerra Civil Americana (1861-1865) ou Guerra de Secessão, que libertou todos os escravizados, os estados do sul implantaram um regime de segregação racial.

  De 500 mil na época da independência, em 1776, o total de escravizados já era aproximadamente 4 milhões em 1860, quase 14% da população total dos Estados Unidos. A Revolução Industrial inglesa, que se iniciou no final do século XVIII, havia ampliado a demanda por algodão para a manufatura de tecidos. Os principais fornecedores dessa matéria-prima eram os estados do sul dos Estados Unidos.

  Houve várias formas de resistência por parte dos escravizados, como sabotagem do trabalho, fugas, incêndios provocados nas fazendas, assassinatos e insurreições. Assim, o temor da reação dos negros acabou se convertendo em novo motivo para manter a situação exatamente como estava. A mentalidade escravagista acabou sendo acolhida também pelas pessoas brancas pobres do sul. Elas defendiam a manutenção da escravidão porque a cor da pele era a única coisa que as fazia ter direitos melhores que os dos negros.

"Patrulhadores de escravos" compostos majoritariamente por brancos pobres, tinham a autoridade de parar, revistar, torturar e até matar escravos que violassem os códigos do escravo americano. Acima, caricatura nortista dos patrulhadores capturando um escravo fugitivo, em um almanaque abolicionista.

Movimento negro nos Estados Unidos

  Desde o fim da Guerra de Secessão até meados da década de 1960, vigorou nos Estados Unidos, principalmente nos estados do sul do país, um sistema de segregação que proibia negros de frequentar as mesmas escolas dos brancos, os mesmos lugares públicos, os mesmos espaços nos ônibus, além de produzir diferenças sociais, como maior pobreza e analfabetismo entre os negros.

  Em 1955, no estado do Alabama, a atitude de Rosa Parks - uma mulher negra que se recusou a ceder seu lugar no ônibus a um homem branco - desencadeou um intenso processo de luta por direitos civis que culminou com a abolição formal do sistema estadunidense de apartheid em 1964.

  Alguns dos principais líderes negros que conduziram essa luta foram o pastor protestante Martin Luther King Jr. (1929-1968), o militante islâmico pelos direitos dos afro-americanos Malcom X (1925-1965) e os fundadores ativistas do Partido dos Panteras Negras Huey Newton (1942-1989) e Ângela Davis (1944-).

  O Partido dos Panteras Negras foi criado na década de 1960, nos Estados Unidos, para defender os moradores dos bairros negros da violência policial e denunciar o racismo na sociedade. Eram socialistas e defendiam a resistência armada contra a opressão e perseguição por parte dos brancos ricos e da polícia. Também lutavam por melhores condições sociais para os afro-americanos e foram contra a Guerra do Vietnã.

Martin Luther King Jr. discursando para um comício antiguerra do Vietnã na Universidade do Minnesota, em 27 de abril de 1967

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

KARNAL, Leandro et al. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007.

GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34, 2001.

CARDOSO, Ciro Flamarion. O trabalho na América Latina Colonial. São Paulo: Ática, 2006.

MARQUESE, Rafael. SALLES, Ricardo (org.). Escravidão e capitalismo histórico do século XIX: Cuba, Brasil, Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

terça-feira, 8 de março de 2022

A DOUTRINA MONROE

   Os Estados Unidos terminaram o século XX e iniciaram o século XXI na condição de maior potência mundial, a única hiperpotência.

  Essa condição, adquirida ao longo do tempo pelos Estados Unidos, está associada à história de sua expansão territorial: das Treze Colônias iniciais, constituídas nos séculos XVII e XVIII, ao quarto maior país do mundo em extensão territorial.

  A Doutrina Monroe, o mais importante conjunto de pensamentos da política isolacionista dos Estados Unidos, foi estabelecida em sua mensagem ao Congresso no dia 2 de dezembro de 1823 pelo presidente James Monroe (1758-1831). É muito clara em seu intuito de afastar qualquer possibilidade de recolonização da América, diante do contexto de reorganização da Europa após o turbulento período da Era Napoleônica. Contudo, também traz uma ideia dúbia em seu lema: "A América para os americanos". Como toda mensagem velada, há uma aparente indefinição da frase: seria a Doutrina um aviso para que se respeitasse a autonomia dos recém-independentes países americanos ou um aviso não explícito das intenções intervencionistas do país em ascensão?

  Um misto das duas intenções, como a história tratou de mostrar, parece explicar melhor esse documento que esboçou a cartilha geopolítica do país.

  É muito comum entre os estudiosos entender a Doutrina Monroe como um marco da construção do poder estadunidense. Outros remetem ao próprio processo de colonização no país e ao isolacionismo que caracterizou sua história até a Primeira Guerra Mundial.

James Monroe - presidente dos Estados Unidos de 1817 a 1825

  A Doutrina Monroe foi por todo o século XIX, e parte do XX, a linha mestra da política externa do país. Foi invocada várias vezes nesse período para rechaçar pretensões britânicas, francesas e alemãs na América. Apesar de distintas na concepção (uma de orientação política, outra religiosa), a Doutrina Monroe e o Destino Manifesto (teoria estadunidense que advoga a supremacia do povo americano anglo-saxão sobre os demais) muitas vezes se fundiram no propósito de assegurar a capacidade expansionista estadunidense. Dessa fusão brotou a ideia de que era destino dos Estados Unidos de sobrepor aos demais países da América, logo, ocupá-los. Muitas aquisições territoriais se fizeram sob a aura da Doutrina: Texas, adquirido junto ao México, em 1845; Oregon, em 1846; Novo México, Arizona e Califórnia, tomados do México, que perdeu metade do seu território, em 1848; e o Alasca, que foi comprado junto ao Império Russo ao preço de US$ 7,2 milhões, em 1867. Somente a Louisiana foi adquirida da França antes da Doutrina, em 1803.

Animação que mostra, em primeiro lugar, a ordem em que as Treze Colônias que ratificaram a Constituição e, em seguida, a ordem em que cada estado foi admitido pela União

  A ideologia da Doutrina estava baseada em três princípios básicos: a impossibilidade de criação de novas colônias ao longo do continente, intolerância à interferência de nações europeias em questões internas e a não participação norte-americana em conflitos envolvendo países europeus.

  A Doutrina se colocava contra o colonialismo em terras do continente americano, isso é tão verdade que os Estados Unidos foram os primeiros a reconhecer a independência dos países anteriormente colonizados pela Espanha.

  O que motivou tal doutrina foi a ameaça por parte da Santa Aliança (composta por países europeus como Áustria, Rússia e França) de voltar a colonizar os países americanos.

  Aparentemente, os Estados Unidos estavam fazendo frente à Europa para defender os países latinos, no entanto, o que estava sendo defendido eram somente os interesses norte-americanos.

Uma bem-humorada alusão aos dizeres da Doutrina Monroe. A charge ilustra o momento da declaração da Doutrina Monroe ao mundo, em 1823, mostrando o Tio Sam, símbolo mundialmente conhecido pela personificação do sentimento nacionalista dos Estados Unidos, como guardião e, também, proprietário do continente americano.

  Inicialmente isolacionista, a Doutrina assumia uma clara posição de defensora da América, invocando o direito de independência das nações latino-americanas perante às Coroas hispânica e portuguesa. Na mensagem oficial enviada ao Congresso, o presidente Monroe deixava claro que não admitiria nenhuma intervenção armada na América por parte dos europeus, pois seria encarada como uma ameaça aos Estados Unidos. Em troca, o país renunciava, igualmente, a qualquer intervenção na Europa.

  Apesar do tom de alerta, os Estados Unidos pouco podiam fazer em relação às práticas intervencionistas europeias que persistiram até o final do século XIX.

  A partir desse momento, quando o país estava fortalecido economicamente, a Doutrina Monroe se tornou mais efetiva. Deste momento em diante, vários países da América passaram a sofrer intervenções não por parte da Europa, mas da potência emergente do Norte.

Charge de um jornal de 1912 destacando a influência dos Estados Unidos sobre os países vizinhos no seu "quintal" no século seguinte, a Doutrina Monroe

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AQUINO, R. S. L. et al. História das sociedades americanas. Rio de Janeiro: Livraria Eu e Você, 1981.

KARNAL, L. (org.). História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007.

quinta-feira, 3 de março de 2022

A PERMACULTURA

  A permacultura é um sistema de planejamento de ambientes humanos sustentáveis que se utiliza de práticas agrícolas e sociais cujo planejamento do seu design é centrado em simular ou utilizar diretamente os padrões  e características observados em ecossistemas naturais e foi sistematizada para dar resposta à nova e crescente consciencialização da degradação ambiental global.

  A palavra permacultura tem origem no termo em inglês permanent agriculture ("agricultura permanente). Esse sistema comunitário de cultivo de plantas e criação de animais abrange elementos da Ecologia e outros campos da ciência, assim como de conhecimentos tradicionais, e caracteriza-se pelo uso de energia limpa e implementação de um manejo racional dos recursos naturais de forma a criar um sistema sustentável. Os princípios da permacultura são baseados em três éticas principais: cuidar da terra, das pessoas e do futuro. Dentre esses princípios, destacam-se:

  • Observância dos padrões e ciclos da natureza e a conservação da biodiversidade como um todo. A prática da policultura e a manutenção das demais espécies são prioridades.
  • Criação de um sistema de baixo consumo energético e autossuficiente, recorrendo ao aproveitamento de fontes de energia limpas e renováveis, como os fluxos locais da água e do vento.
  • Organização do sistema de modo eficiente e racional, levando em consideração a disponibilidade e renovação dos recursos do ambiente e priorizando o reaproveitamento ao descarte.
  • Prática da autorregulação, de acordo com os ciclos de reforço positivo e negativo verificados no ambiente, de forma a promover uma interação com a natureza e reconhecer os saberes das comunidades locais.
  • Incentivo à cooperação entre pequenos produtores, na forma de cooperativas agrícolas. As relações competitivas, nessa perspectiva, não são benéficas a ninguém.

Mandala da permacultura

  Permacultura é a utilização de uma forma sistêmica de pensar e conceber princípios ecológicos que podem ser usados para projetar, criar, gerir e melhorar todos os esforços realizados por indivíduos, famílias e comunidades no sentido de um futuro sustentável.

  A permacultura, além de ser um método para planejar sistemas de escala humana, proporciona uma forma sistêmica de se visualizar o mundo e as correlações entre todos os seus componentes. Serve, portanto, como meta-modelo para a prática da visão sistêmica, podendo ser aplicada em todas as situações necessárias, desde como estruturar o habitat humano até como resolver questões complexas do mundo empresarial.

Flor da permacultura estilizada

  O criador desse conceito é o australiano e professor universitário Bill Mollison, que teve o auxílio do então estudante David Holmgren. Na década de 1970, percebendo que os recursos naturais da região em que moravam estavam acabando, eles resolveram criar um modelo de trabalho e desenvolvimento em que a agricultura, ligada às atividades humanas e sempre integrada ao meio ambiente, produzisse recursos suficientes e de forma não predatória. Por isso, no início, o conceito era chamado de agricultura permanente. Com o passar dos anos, o termo foi alterado para cultura permanente, cuja abreviação é permacultura.

  Essa é uma metodologia de trabalho que, de acordo com os idealizadores estimula o desenvolvimento sustentável aliado a um ambiente produtivo nas áreas rural e urbana. Trata-se de um sistema em que o habitante, a moradia e o meio ambiente estão integrados em um mesmo organismo vivo.

Princípios da permacultura

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

Permacultura passo a passo. Rosemary Morrow. Editora Mais Calango, 2016.

quarta-feira, 2 de março de 2022

FORMAS DE MARCAR O TEMPO

   As medidas de tempo foram inventadas, ao longo da história, devido às necessidades das civilizações de controlar os dias e as horas, o que auxiliava as tomadas de decisões na época, como o mês melhor para cultivo, a medição das cheias dos rios, as fases da Lua, entre outras coisas. Hoje elas ainda são essenciais, pois se tornou inimaginável uma sociedade que não meça o tempo.

  As diferentes formas de organização e ocupação do espaço fazem parte do campo de estudo da Geografia, uma das ciências com as quais os estudos historiográficos dialogam. Em outra perspectiva, na formação do planeta Terra, identificam-se as eras geológicas, submetidas aos ritmos do tempo natural. O tempo geológico é o tempo do planeta Terra e o tempo histórico é o tempo das sociedades humanas na sua superfície.

As eras geológicas representam subdivisões na escala de tempo geológico

Tempo geológico

  Desde sua origem, há aproximadamente 4,6 bilhões de anos, a configuração do planeta Terra está em constante transformação. Isso acontece porque há muita energia térmica no interior do planeta e também porque a superfície da crosta terrestre sofre a ação permanente de forças externas, como a chuva, o vento, e, muito mais recentemente, o próprio ser humano, que constrói cidades, cultiva alimentos, desmata, refloresta, extrai minérios, faz aterros e represas, desvia rios, etc.

  Algumas mudanças de origem natural são facilmente percebidas. Por exemplo, terremotos e erupções vulcânicas são fenômenos que podem provocar alterações imediatas na paisagem. Outras mudanças naturais, como o afastamento dos continentes ou o processo de formação das grandes cadeias de montanhas, denominado orogênese, ocorrem em um intervalo de tempo tão longo que não conseguimos percebê-las em nosso curto período de vida.

Evolução da fragmentação da Pangeia até os dias atuais

  Para compreender os fenômenos geológicos, a noção de tempo que temos em nosso cotidiano - o tempo histórico, medido em meses, anos décadas, séculos ou milênios - não é suficiente. Para essa compreensão, é preciso pensar em termos de tempo geológico, medido em milhões de anos, divididos em éons, cujo nome vem do grego aion, "eternidade", começando pelo hadeano (do grego hades, que significa "inferno"), até o fanerozoico (do grego phaneros, que significa "visível", e zoico, "vida"). O éons, por sua vez, são subdivididos em eras, períodos e épocas.

Escala do tempo geológico simplificada, mostrando todos os éons e eras; os períodos das eras Paleozoica, Mesozoica e Cenozoica; e as épocas dos períodos Paleógeno, Neógeno e Quaternário. Os demais períodos, épocas e idades não estão nomeados, mas seus limites estão delimitados.

Tempo histórico

  Todos nós convivemos com fenômenos temporais: dia, noite, estações do ano, nascimento, crescimento, envelhecimento. Várias civilizações estabeleceram uma divisão do tempo adotando como base a observação dos ciclos da natureza: o movimento da Terra, do Sol e da Lua. Além da Lua e do Sol, o calendário dos maias, povo que viveu numa região hoje conhecida por América Central e cujo auge ocorreu entre os séculos III e X, baseava-se na observação do planeta Vênus, por exemplo. Muitos calendários foram elaborados com base na análise dos astros, por sua influência sobre as plantações e a necessidade de definir os tempos de plantio, poda e colheita.

Desde a Pré-história que os povos antigos se baseiam no tempo para o cultivo e a colheita

  Uma volta do planeta Terra em torno do seu eixo (rotação) foi interpretada por diversas culturas como um dia, que foi dividida em 24 partes iguais, chamadas de horas, por sua vez também subdivididas em minutos, e assim por diante. Decidiu-se que o dia não começa ao nascer do Sol, mas aproximadamente seis horas depois que ele desaparece no horizonte. Outras civilizações poderiam fazer divisões diferentes: afirmar que o dia começa logo que o Sol aparece. No século VIII a.C., na Babilônia, os astrônomos definiam o início do dia quando o Sol estava a pino, em seu ponto mais alto do céu. A semana de sete dias pode ter surgido de acordo com as fases da Lua.

  Essas diferentes formas de dividir o tempo correspondem ao tempo físico ou cronológico. Cada civilização tem uma leitura particular do tempo, que pode ser a melhor, a mais adequada ou a mais confortável para os membros de seu grupo, de acordo com seus saberes, crenças ou cosmologias. Embora muitos tenham aceitado e incorporado as divisões do tempo como se fossem naturais, podemos perceber que suas bases são arbitrárias, artificialmente definidas, sendo passível de críticas ou de modificações. Ou seja, trata-se de uma convenção, de uma invenção cultural.

Cronologia do tempo histórico

  O tempo cronológico, embora fundamental para a compreensão da história, não é seu objeto de estudo, mas sim do tempo histórico, ou seja, os períodos da existência humana em que ocorrem eventos que fazem parte de estruturas e contextos mais amplos, como a economia, as ideias, a política.

  É lógico que esses períodos só existem mentalmente, pois a vida das pessoas não muda de modo inesperado na passagem de um período para outro. Datas, períodos, eras e outras formas de demarcar o tempo histórico são convenções e orientam a leitura do passado, mas não representam mudanças definitivas e rupturas em todos os aspectos da sociedade. Após uma revolução, por exemplo, algumas condições de vida ou o sistema de governo podem ser modificados de maneira brusca, mas o modo de pensar, as práticas e atitudes diante dos acontecimentos, as mentalidades, mudam mais lentamente, em ritmos diversos. Entretanto, estudando os períodos históricos podemos compreender a história de forma mais ampla e realizar divisões de acordo com alguns critérios, como organização social, relações de trabalho e sistemas de governo.

  O relógio, por exemplo, foi uma invenção para medir o tempo de modo matemático, mais preciso, e trouxe diversas mudanças para as sociedades.

As fases da Lua são importantes para orientar diversas atividades econômicas, como a pesca e a agricultura

O tempo e o relógio

  O tempo histórico não é regular, contínuo e linear como o tempo físico ou cronológico, mas sim composto de diferentes durações, já que está vinculado às ações de grupos humanos e aos conjuntos de fenômenos - mentais, econômicos, sociais e políticos - que resultam dessas ações. Podem existir diferentes divisões, de acordo com os determinados pontos de vista cultural, político, ideológico, etc. Por exemplo, para alguns historiadores, o século XIX começa não em 1801, mas em 1789 (início da Revolução Francesa), e termina não em 1900, mas em 1914 (início da Primeira Guerra Mundial). Já o século XX teria se iniciado em 1914 e se encerrado em 1991, com o fim da União Soviética. Isso porque essas datas - início da Revolução Francesa, início da Primeira Guerra Mundial e fim da União Soviética - delimitam um período em que os eventos foram significativos para transformações sociais, culturais e políticas em nível mundial. Evidentemente, essa divisão não trata os séculos como tempo cronológico, mas como tempo histórico.

A Queda da Bastilha, em 14 de julho de 1789. Para alguns historiadores, esse acontecimento marca o início do século XIX

  Com base nessa ideia - de que o tempo das ações humanas não segue exatamente os relógios e os calendários -, outros historiadores argumentam que o tempo histórico pode ser de longa, de média ou de curta duração. Nas relações do ser humano com o meio natural que o cerca e nas modificações climáticas e geográficas, como o aquecimento global, essas mudanças ocorrem de forma bastante lenta. Nas formas de organização da produção, da distribuição e do consumo de bens materiais, nas relações econômicas e nas relações políticas, as mudanças seriam, em uma conjuntura de tempo médio, marcadas por rupturas e permanências. Já o tempo de curta duração se refere ao tempo do evento, do acontecimento, aquele que tradicionalmente era valorizado na história escrita ao longo do século XIX.

  Medir o tempo histórico e periodizá-lo (dividi-lo em períodos) é igualmente um ato arbitrário, pois a escolha do ponto inicial da contagem e dos eventos mais importantes é feita por algumas pessoas, segundo sua compreensão do mundo e da existência humana, e seguida por outros, sem que necessariamente exista uma concordância de todos. As periodizações também são expressões da cultura e evidenciam os principais valores de uma sociedade ou civilização.

De acordo com o tempo das ações humanas, a Revolução Industrial refere-se a uma conjuntura do tempo médio

O calendário cristão

  No início da propagação do cristianismo, ainda não se contava o tempo a partir do nascimento de Cristo. Isso viria a ocorrer apenas algumas décadas depois do fim do Império Romano do Ocidente, em 525 d.C., quando Dionísio, o Exíguo (na época, abade de Roma), fundamentado na informação sobre a idade de Roma e em detalhes históricos do período do nascimento de Cristo, estabeleceu o ano em que Jesus teria nascido. Com esses dados, Dionísio definiu o ano 1 do calendário cristão como o ano 754 da fundação de Roma. Em 1582, o papa Gregório XIII reformulou o calendário, motivo pelo qual o calendário cristão ocidental é chamado de gregoriano.

  De acordo com essa abordagem, embora muitas pessoas no Ocidente não sejam cristãs, nossa periodização baseia-se na ideia de que o nascimento de Cristo é tão importante para a humanidade que o tempo deve ser dividido em dois períodos: antes de Cristo (a.C.) e depois de Cristo (d.C.). Também por isso as sociedades cuja religião majoritária segue essa crença (como as das Américas pós-ocupação europeia e as da Europa) são chamadas, em conjunto, de civilizações cristãs ocidentais.

Linha do tempo para a periodização cujo critério é o nascimento de Jesus Cristo

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

REIS, José Carlos. O tempo histórico como "representação intelectual". Fênix: Revista de História e Estudos Culturais, Uberlândia, v. 8, ano VIII.

HAWKING, S. W. Uma breve história do tempo: do big bang aos buracos negros. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

O MAIO DE 1968 NA FRANÇA

   O Maio de 1968 foi um movimento político na França que, marcado por greves gerais e ocupações estudantis, tornou-se ícone de uma época onde a renovação dos valores veio acompanhada pela proeminente força de uma cultura jovem. A liberação sexual, a Guerra do Vietnã, o movimento pela ampliação dos direitos civis compunham toda a pólvora de um barril construído pela fala dos jovens estudantes da época. Mais do que iniciar algum tipo de tendência, o Maio de 68 pode ser visto como desdobramento de toda uma série de questões já propostas pela revisão dos costumes feita por lutas políticas, obras filosóficas e a euforia juvenil. Essa foi a maior revolta estudantil da década na França.

Barricadas em Bordeaux, em maio de 1968

  Vários fatores contribuíram para essa insurreição: desde a década de 1950, repercutia na França a luta pela descolonização e independência de países africanos que estavam sob o domínio de nações europeias; o desemprego crescia; havia insatisfação com a Guerra do Vietnã, então em sua fase mais violenta. Ademais, protestos de universitários e grupos políticos em todo o mundo começaram a questionar a ocupação do Vietnã pelos Estados Unidos.

  Outros eventos que refletiram nos movimentos estudantis francesas foram o assassinato de Martin Luther King Jr. (1929-1968), líder da luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, e os acontecimentos da Primavera de Praga.

  Os estudantes franceses, que já se encontravam em um estado de efervescência, ficaram ainda mais mobilizados contra as reformas propostas pelo governo para o sistema educacional do país, que aumentava consideravelmente o ingresso de universitários em um sistema que não estava preparado física, organizacional e intelectualmente para receber um influxo tão grande. Em uma visão mais ampla, as manifestações estudantis na França aconteciam esporadicamente desde 1966.

Policial lança bomba de gás para dispersar a multidão em Paris (França), em maio de 1968. A revolta estudantil francesa demonstrava a profunda insatisfação com a falta de liberdade e perspectiva.

  O início das manifestações se deu quando estudantes franceses da Universidade Paris X Nanterre (atual Universidade Paris Nanterre, uma das treze resultantes da divisão ocorrida em 1971, da antiga Universidade de Paris) ocuparam a instituição em retaliação à punição de colegas que protestavam contra a Guerra do Vietnã. Em 2 de maio de 1968, ocorreu um confronto violento com a polícia, e os estudantes que participavam foram ameaçados de expulsão pela administração da universidade.

  Diante da violência e da repressão policial, os protestos espalharam-se por outras universidades, chegando à Soubonne, unidade mais importante da antiga Universidade de Paris. As ruas da capital francesa foram tomadas por barricadas, e o número de pessoas e feridos aumentou. Segundo o sociólogo Michel Thiollent, os policiais incendiavam carros para que a opinião pública ficasse contra os estudantes, que respondiam lançando paralelepípedos. O movimento ganhou o apoio dos trabalhadores que, por sua vez, aproveitaram para reivindicar melhorias em suas condições de trabalho. Convocados pelos sindicatos, eles iniciaram uma greve geral que, segundo estimativas, mobilizou cerca de 10 milhões de trabalhadores franceses.

Estudantes no Quartier Latin, em Paris, durante as manifestações

  O governo do general Charles de Gaulle (1890-1970) recorreu às Forças Armadas para acabar com os protestos dos estudantes e concedeu aumento salarial aos operários, que terminaram a greve. Sem o apoio dos trabalhadores, os estudantes ficaram enfraquecidos. A população se dividia: uns eram a favor das reivindicações; outros clamavam pela volta da "ordem".

  Mesmo após seu fim, o movimento continuou provocando uma grande revisão de valores pela geração dos anos 1960. Os questionamentos morais e políticos dos jovens ganharam visibilidade e serviram de incentivo para vários movimentos sociais no mundo que defendiam as liberdades civis e democráticos, a liberdade sexual, a luta feminista, a igualdade entre negros e brancos, o consumo consciente, os direitos dos imigrantes e outras minorias.

  Nas eleições convocadas pelo governo francês, os políticos vinculados à figura de Gaulle conseguiram expressiva vitória. O presidente saiu do episódio como uma figura capaz de contornar os problemas enfrentados pela sociedade da época.

  Mesmo sem alcançar algum tipo de conquista objetiva, o movimento de Maio de 1968 indicou uma mudança de comportamento. As artes, a filosofia e as relações afetivas seriam o espaço de ação de um mundo marcado por mudanças.

Manifestantes em enfrentamento com a polícia nos arredores da Universidade de Soubonne

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

THIOLLENT, Michel. Maio de 1968 em Paris: testemunho de um estudante. Tempo Social (Rev.sociol. USP), São Paulo, v. 10 n. 2, out. 1998.

1968, quando a Terra tremeu. Roberto Sander. São Paulo: Vestígio, 2018.

1968, o ano que não terminou. Zuenir Ventura. São Paulo: Objetiva, 2018.

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