quarta-feira, 23 de março de 2022

ESCRAVIDÃO, RACISMO E ANTIRRACISMO

   É considerado escravatura, escravidão, escravismo, esclavagismo ou escravagismo, o regime de trabalho no qual homens e mulheres são forçados a executar tarefas sem receber qualquer tipo de remuneração. Além disso, as pessoas escravizadas têm suas liberdades tolhidas, pois são consideradas propriedades de seus senhores, podendo ser vendidas ou trocadas como mercadorias. Porém, não era em todas as sociedades que o escravo era visto como mercadoria: na Idade Antiga, haja vista que os escravos de Esparta, os hilotas, não podiam ser vendidos, trocados ou comprados, isto pois eles eram propriedades do Estado espartano, que podia conceder a proprietários o direito de uso de alguns hilotas; mas eles não eram propriedade particular, não eram pertencentes a alguém, era o Estado que tinha poder sobre eles.

  A escravidão da era moderna está baseada num forte preconceito racial, segundo o qual o grupo étnico ao qual pertence o comerciante é considerado superior, embora já na Antiguidade as diferenças étnicas  fossem bastante exaltadas entre os povos escravizadores, principalmente quando havia fortes disparidades fenotípicas. Na Antiguidade também foi comum a escravização de povos conquistados em guerras entre nações.

  Enquanto modo de produção, a escravidão assenta na exploração do trabalho forçado da mão de obra escrava. Os senhores alimentam os seus escravos e apropriam-se do produto restante do trabalho destes. A exploração do trabalho escravo torna possível a produção de grandes excedentes e uma enorme acumulação de riquezas, e contribuiu para o desenvolvimento econômico e cultural que a humanidade conheceu em dados espaços e momentos: grandes construções, como diques e canais de irrigação, castelos, pontes e fortificações, exploração de minas e florestas, desenvolvimento da agricultura em larga escala, abertura de estradas, desenvolvimento das artes e letras, entre outros.

  Nas civilizações escravagistas, não era pela via do aperfeiçoamento técnico dos métodos de produção (que se verifica com a Revolução Industrial) que os senhores de escravos procuravam aumentar a sua riqueza. Os escravos, por outro lado, sem qualquer interesse nos resultados do seu trabalho, não se empenhavam na descoberta de técnicas mais produtivas.

  Atualmente, apesar de a escravidão ter sido abolida em quase todo o mundo, ela ainda continua existindo de forma legal no Sudão e de forma ilegal em muitos países, como Índia, China, Paquistão, Nigéria, Etiópia, Rússia, Arábia Saudita, Tailândia, República Democrática do Congo, entre outros.

Am I Not a Man and a Brother? ("Não sou um homem e um irmão?"): medalhão de 1787 desenhado por Josiah Wedgwood para a campanha abolicionista britânica

  A escravidão no Brasil, além de originar uma história nacional de grande concentração da propriedade da terra nas mãos de poucos, como permanece até hoje, deixou-nos como herança outro grave problema social: o racismo, prática da discriminação de pessoas em virtude do tipo de cabelo, da cor da pele e de características de fenótipo.

  O racismo não é apenas uma questão subjetiva, visto que estrutura a organização de nossa sociedade com base no preconceito e no ódio. É disseminado na forma ideológica, às vezes de maneira clara, às vezes de maneira disfarçada. Pretos e pardos são, comprovadamente, as pessoas mais pobres do Brasil, sujeitos às piores condições de saneamento, educação e saúde.

  Historicamente, os povos originários das Américas e seus descendentes estiveram também sujeitos à escravidão, ao racismo e a suas consequências sociais. No Brasil, os grupos indígenas enfrentam  - e resistem - a um genocídio de séculos, seja pela exploração de sua força de trabalho, seja pelo interesse de latifundiários em roubar suas terras. Os indígenas de outros países da América Latina enfrentam - e também resistem - a problemas semelhantes.

"Índios soldados da província de Curitiba escoltando prisioneiros nativos", obra de Jean-Baptiste Debret

Origens da economia escravista moderna

  O capitalismo que nascia no século XVI teve como base de apoio o Estado e o comércio internacional. A estrutura feudal foi o motivo central para que os comerciantes europeus se esforçassem em buscar o comércio em territórios distantes. Dividindo os reinos em feudos, o sistema tornava difícil a comercialização interna a partir de certa escala.

  Em momento histórico subsequente, o reforço do poder central do Estado e o consequente enfraquecimento do poder dos senhores feudais levaram à unificação e à expansão dos mercados internos, permitindo o desenvolvimento da classe burguesa, o surgimento dos Estados modernos e o aparecimento da doutrina econômica mercantilista.

  Ao longo do século XVI, com o início da colonização das Américas, a migração forçada de africanos pelo oceano Atlântico, por traficantes que os vendiam como escravizados, foi adquirindo grandes proporções. A principal causa desse sombrio fenômeno foi a demanda das colônias espanholas e portuguesas por mão de obra para a agricultura de exportação e a extração de minérios.

Traficantes de escravos árabes e seus cativos ao longo do rio Rovuma, entre a atual fronteira de Moçambique e Tanzânia, na África

O tráfico de africanos para o Brasil

  No início do povoamento até 1590, os portugueses utilizavam majoritariamente escravizados indígenas para trabalhar nas lavouras de cana-de-açúcar, principal produto de exportação da colônia. Com o tempo, os escravizados africanos, por serem considerados fisicamente mais fortes para o trabalho, menos propensos à fuga - uma vez que não conheciam o território como os indígenas, que já viviam no continente - e explorados em um comércio lucrativo, passaram a ser preferidos pelos donos das plantações e engenhos. O Brasil se tornou o maior importador de escravizados africanos do século XVI até 1850.

  As condições nas quais os cativos africanos eram trazidos nos navios negreiros eram as piores possíveis. Antes de serem jogados no porão do navio, os africanos tinham o símbolo do traficante a que pertenciam marcado com ferro em brasa em sua pele. Ao longo dos séculos XVI e XVII, os navios portugueses levavam cerca de quinhentos africanos em cada viagem. Contudo, no século XIX, já existiam navios a vapor, que se incumbiam dessa tarefa. Estes, embora levassem um número menor de africanos escravizados (pois havia necessidade de espaço para as máquinas a vapor), eram mais velozes e escapavam com mais facilidade da fiscalização inglesa contra o tráfico negreiro.

Pintura registra o interior de um navio negreiro

  • A escravidão no Brasil

  A escravidão compõem a maior parte da história dos trabalhadores brasileiros. Afinal, foram mais de trezentos anos de escravização de indígenas e africanos, somando-se o período colonial e imperial. Trata-se de um regime de utilização forçada do trabalho humano que serviu para o acúmulo de riquezas nas mãos dos senhores, donos dos seres humanos transformados em mercadoria. Essa concentração de riqueza que teve origem com o trabalho escravo, assim como o racismo e a discriminação de pessoas negras, permanece no Brasil atual, como sombria herança do passado.

  Antes de chegar ao Brasil, os africanos eram presos em planícies do interior da África, levados até o litoral, onde permaneciam em cercados ou galpões por semanas à espera de um navio negreiro para serem transportados. Ao embarcar, eram jogados no porão com mais de trezentas ou quinhentas pessoas. Assim confinados, iniciavam a travessia do oceano Atlântico, que durava de um mês a cinquenta dias. Muitos morriam durante essa sofrível travessia.

  No litoral brasileiro, os cativos eram desembarcados e vendidos aos fazendeiros que os havia encomendado. Havia tráfico também no interior do território, pois os escravizados eram deslocados do campo para as cidades, das regiões açucareiras do Nordeste do Brasil para as áreas de mineração no Centro-Oeste e, mais tarde, para as lavouras de café do Sudeste. Em cada região de trabalho, o uso de castigos físicos sistemáticos era o principal mecanismo de controle e "disciplinamento" dessas milhares de pessoas.

Comércio Triangular, usado no comércio atlântico de escravos, entre os séculos XVI e XIX

  Durante os séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, uma vez desembarcados, vendidos e distribuídos, os africanos escravizados eram utilizados nos latifúndios de cana-de-açúcar e plantações de café, na mineração de ouro e diamantes e no trabalho doméstico na casa dos senhores. Os escravizados que desempenhavam tarefas domésticas para seus donos tinham as áreas de serviço delimitadas em relação aos ambientes domésticos dos proprietários (ou seja, "áreas sociais" e "de serviço", separação que existe até hoje nos elevadores de edifícios de classes média e alta).

  Para o trabalho nas plantações dos latifúndios, nos engenhos de açúcar e nas minas, era necessária uma grande quantidade de trabalhadores escravizados. O dia a dia desses trabalhadores era sujeito às mais variadas violências, sem contar o definhamento por exaustão e doenças. Os castigos e as punições físicas eram diversos: tronco, chicotadas, imobilização com correntes, ganchos no pescoço. A vida de um escravizado, quando começava a trabalhar nas lavouras do Brasil, não passava de cinco anos. No último quarto do século XIX, a expectativa de vida de um escravizado ao nascer aqui variava em torno de 19 anos ( a de um brasileiro não escravizado era de 27 anos). Ainda assim, o Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, em 1888.

A escravidão no Brasil foi uma instituição cruel que durou mais de 300 anos

Resistência e movimento negro

  A sociedade brasileira foi e continua sendo constituída principalmente pelo trabalho de braços não brancos, majoritariamente negros. Esse grupo possui uma história de luta e resistência que começa justamente com sua escravização. Nos períodos da colônia e do império, do século XVI ao XIX, os escravizados resistiram ao cativeiro e lutaram contra ele de diferentes maneiras.

  A origem comum africana reforçava a identidade coletiva entre os escravizados, assim como a própria disposição para as revoltas. Os escravizados crioulos (negros nascidos no Brasil), por sua vez, não eram passivos. Fugiam, formavam quilombos, rebelavam-se.

  Em janeiro de 1835, ocorreu a mais famosa revolta dos escravizados na Bahia, conhecida como Revolta dos Malês. O nome "malê", vem de muçulmano, porque havia vários líderes muçulmanos na revolta, muitos alfabetizados e instruídos no idioma árabe. No levante, aproximadamente seiscentos escravizados e libertos combateram nas ruas de Salvador - ou seja, foi uma revolta urbana. Os revoltosos foram derrotados pelas forças coloniais e punidos com a morte, chicotadas, prisão e/ou deportação.

Escravos de ganho, que realizavam tarefas remuneradas

Séculos XX e XXI

  Após o fim oficial da escravidão no Brasil em 13 de maio de 1888, não houve no país um regime oficial de segregação dos negros, como nos Estados Unidos (até meados da década de 1960) e na África do Sul (até meados da década de 1990). Mas na prática, o racismo ainda é bastante presente no Brasil e segue espalhando preconceito e discriminação contra pretos e pardos e promovendo a segregação e a exclusão dessa parte da população em relação às possibilidades de estudo e emprego, além de maiores taxas de mortalidade.

  Por isso, por todo o século XX e até agora no século XXI, vários movimentos negros, culturais e políticos, continuam se organizando e lutando no país por justiça e igualdade e desempenhando papel vital na batalha pela construção da democracia no Brasil. Algumas conquistas importantes resultaram dessa luta: a Lei n. 12.711, de 2012 - que assegura a reserva de 50% das vagas nas universidades e nos institutos federais para estudantes de escolas públicas e estudantes que se autodeclararem pretos, pardos ou indígenas; a Lei n. 7.716, de 1989 - que prevê a detenção de um a cinco anos para o crime de discriminação racial (em estabelecimentos privados ou públicos, ofensas, agressões), além de proibir a manifestação de ideias neonazistas.

  Em 2019, no Brasil, os brancos eram 42,7% da população; os pretos, 9,4%; e os pardos 46,8%.

Dados mostrando a porcentagem da população brasileira por etnia

  • A escravidão nos Estados Unidos

  Quando os europeus chegaram à América do Norte, o território já era ocupado por centenas de grupos ou nações indígenas. Para se ter uma ideia, havia mais de trezentas línguas diferentes. De acordo com Leandro Karnal, em História dos Estados Unidos, "Esses povos indígenas, como cherokees, iroqueses, comanches, apaches, dakota, iowa, missouri, entre muitos outros, povoavam o território da costa do Atlântico até à do Pacífico".

  A ocupação desse território por colonos ingleses era justificada por eles mesmos como um direito "dado por Deus". Os colonos expulsavam os indígenas de suas terras porque acreditavam nesse "direito". Também capturavam e vendiam esses indígenas como escravos. Karnal afirma que "Em 1708, por exemplo, na Carolina do Sul havia 1.400 escravos índios". Tal como na América do Sul, a escravização de africanos passou a predominar nas colônias inglesas da América do Norte. O lucrativo tráfico de africanos cada vez mais começou a fornecer mão de obra para as fazendas dos Estados Unidos.

Animação dos territórios e estados dos Estados Unidos que proibiam e permitiam a escravidão - 1789-1861

  Em 1787, a Constituição dos Estados Unidos deixou a cada estado da Federação a decisão de abolir ou não a escravidão em seu território, prescrevendo o fim do tráfico de escravizados para 1808. Nas décadas seguintes, os estados do norte e do centro do país eliminaram a escravidão, mas no sul a abolição prejudicaria a economia de monoculturas para exportação. Ali, em vez de desaparecer, a escravidão começou a crescer. Após a Guerra Civil Americana (1861-1865) ou Guerra de Secessão, que libertou todos os escravizados, os estados do sul implantaram um regime de segregação racial.

  De 500 mil na época da independência, em 1776, o total de escravizados já era aproximadamente 4 milhões em 1860, quase 14% da população total dos Estados Unidos. A Revolução Industrial inglesa, que se iniciou no final do século XVIII, havia ampliado a demanda por algodão para a manufatura de tecidos. Os principais fornecedores dessa matéria-prima eram os estados do sul dos Estados Unidos.

  Houve várias formas de resistência por parte dos escravizados, como sabotagem do trabalho, fugas, incêndios provocados nas fazendas, assassinatos e insurreições. Assim, o temor da reação dos negros acabou se convertendo em novo motivo para manter a situação exatamente como estava. A mentalidade escravagista acabou sendo acolhida também pelas pessoas brancas pobres do sul. Elas defendiam a manutenção da escravidão porque a cor da pele era a única coisa que as fazia ter direitos melhores que os dos negros.

"Patrulhadores de escravos" compostos majoritariamente por brancos pobres, tinham a autoridade de parar, revistar, torturar e até matar escravos que violassem os códigos do escravo americano. Acima, caricatura nortista dos patrulhadores capturando um escravo fugitivo, em um almanaque abolicionista.

Movimento negro nos Estados Unidos

  Desde o fim da Guerra de Secessão até meados da década de 1960, vigorou nos Estados Unidos, principalmente nos estados do sul do país, um sistema de segregação que proibia negros de frequentar as mesmas escolas dos brancos, os mesmos lugares públicos, os mesmos espaços nos ônibus, além de produzir diferenças sociais, como maior pobreza e analfabetismo entre os negros.

  Em 1955, no estado do Alabama, a atitude de Rosa Parks - uma mulher negra que se recusou a ceder seu lugar no ônibus a um homem branco - desencadeou um intenso processo de luta por direitos civis que culminou com a abolição formal do sistema estadunidense de apartheid em 1964.

  Alguns dos principais líderes negros que conduziram essa luta foram o pastor protestante Martin Luther King Jr. (1929-1968), o militante islâmico pelos direitos dos afro-americanos Malcom X (1925-1965) e os fundadores ativistas do Partido dos Panteras Negras Huey Newton (1942-1989) e Ângela Davis (1944-).

  O Partido dos Panteras Negras foi criado na década de 1960, nos Estados Unidos, para defender os moradores dos bairros negros da violência policial e denunciar o racismo na sociedade. Eram socialistas e defendiam a resistência armada contra a opressão e perseguição por parte dos brancos ricos e da polícia. Também lutavam por melhores condições sociais para os afro-americanos e foram contra a Guerra do Vietnã.

Martin Luther King Jr. discursando para um comício antiguerra do Vietnã na Universidade do Minnesota, em 27 de abril de 1967

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

KARNAL, Leandro et al. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007.

GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34, 2001.

CARDOSO, Ciro Flamarion. O trabalho na América Latina Colonial. São Paulo: Ática, 2006.

MARQUESE, Rafael. SALLES, Ricardo (org.). Escravidão e capitalismo histórico do século XIX: Cuba, Brasil, Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

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