O inchaço das cidades, provocado pelo acúmulo de pessoas, e a falta de uma infraestrutura adequada gera transtornos para a população urbana. As grandes cidades brasileiras, bem como no mundo todo, enfrentam diversos problemas, como questões de moradia, desemprego, desigualdade social, saúde, educação, violência e exclusão social.
Desigualdades e segregação socioespacial
Em qualquer grande cidade do mundo, o espaço urbano é fragmentado, apresentando funções comerciais, financeiras, industriais, residenciais e de lazer. É comum que funções diferentes coexistam não apenas no centro, mas também é bairros que, assim, polarizam seus vizinhos. Por isso, essas cidades são policêntricas.
Essa fragmentação, quase sempre associada a um intenso crescimento urbano, impedem que os habitantes vivenciem a cidade como um todo, pois se atêm apenas aos fragmentos que fazem parte do seu dia a dia. O lugar de moradia, trabalho, estudo ou lazer é onde se estabelecem as relações pessoais e sociais. Entretanto, em uma metrópole, tais lugares tendem a não ser coincidentes, o que provoca deslocamentos e aumento de congestionamentos. Pode-se dizer, então, que a grande cidade não é um lugar, mas um conjunto de lugares, e que os cidadãos a vivenciam parcialmente. As desigualdades sociais se materializam na paisagem urbana. Quanto mais acentuadas as disparidades de renda entre a população, maiores são as desigualdades de moradia, de acesso aos serviços públicos e, portanto, de oportunidades culturais e profissionais. Consequentemente, a segregação socioespacial, isto é, a separação das classes sociais em bairros diferentes em virtude do poder aquisitivo desigual, e os problemas urbanos são maiores também.
Favela da Rocinha, a maior favela do Brasil, em contraste com os edifícios de São Conrado, no Rio de Janeiro |
O medo da violência urbana e a busca por mais segurança e tranquilidade vêm impulsionando a criação de condomínios fechados, sobretudo nas metrópoles. Para isso, muitas pessoas de alto e médio poder aquisitivo mudam-se para esse tipo de conjunto residencial. Esse fenômeno acentua a segregação socioespacial e reduz os espaços urbanos públicos, uma vez que promove o crescimento de espaços privados e de circulação restrita. Além disso, muitos bairros, ao perderem habitantes, sofrem um processo de deterioração urbana, caso de algumas áreas do centro de grandes cidades, como São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA), Recife (PE), São Luís (MA), entre outras. Muitas prefeituras procuram revitalizar as áreas degradadas das cidades por meio de incentivos fiscais para atrair comerciantes e prestadores de serviços, o que acaba gerando outros problemas como resultado da gentrificação.
Gentrificação é um conceito criado pela socióloga britânica Ruth Glass (1912-1990), derivado da palavra inglesa gentrification (gentry, "pequena nobreza"), para descrever transformações observadas em alguns bairros operários da cidade de Londres que se tornaram bairros nobres. Em linhas gerais, a gentrificação é a valorização de determinado espaço urbano combinada com a especulação imobiliária e tem ocorrido em muitas cidades, sobretudo em áreas centrais que antes eram desvalorizadas e que, por terem custo de vida mais baixo, abrigavam população de baixa renda.
Visão noturna da região central de Londres, Inglaterra |
Quando empresas do setor imobiliário adquirem imóveis nessas áreas com a intenção de reformá-los ou derrubá-los para a construção de novos empreendimentos, começam a pressionar o poder público a fazer reformas "modernizantes", como a abertura de avenidas, instalação de museus e equipamentos culturais, comércios elitistas, até que se torne impossível para moradores de renda mais baixa continuar arcando com os custos de vida na região. O problema não é a revitalização de uma área antes degradada, mas a especulação imobiliária e financeira, que eleva o preço dos aluguéis e de serviços e que, na prática, efetua a substituição de uma classe social de menor poder aquisitivo por outra com mais recursos financeiros, perpetuando a segregação socioespacial ao marginalizar pessoas mais pobres em regiões periféricas e dificultando-lhes o acesso aos serviços centrais da cidade.
O problema da moradia
A cidadania também se expressa nas condições materiais de vida das pessoas. E morar, ter uma casa, um lar, é um direito humano fundamental para que todos tenham segurança física e emocional. Moradia porém é um problema crônico das grandes cidades. Uma de suas causas é o êxodo populacional, pois muitas cidades de países em desenvolvimento não tiveram condições econômicas de absorver a grande quantidade de pessoas que em pouco tempo migraram da zona rural e das cidades menores, aumentando o número de desempregados. Para sobreviver, muitas pessoas se submetem ao subemprego e à economia informal. Como os rendimentos, mesmo para trabalhadores da economia formal, em geral são baixos, muitos não têm condições de arcar com os altos custos de aquisição de um imóvel ou do aluguel de residências confortáveis e bem localizadas no território municipal, áreas que justamente são as mais valorizadas e, portanto, mais caras. A saída que encontram é partir em busca de imóveis com preços mais baixos na periferia distante, onde a rede comercial e de serviços públicos, como escolas, postos de saúde, equipamentos de lazer e cultura, tende a ser menor ou até ausente, e menos servida pelo sistema de transporte, o que impacta a vida pessoal cotidiana com a perda de horas no ir e vir do trabalho. Ou se veem impelidos a habitar imóveis em condições inadequadas, como os cortiços, ou a formar favelas ou outros tipos de aglomerado subnormal, porém em áreas centrais. Essa é a face mais visível do crescimento desordenado das cidades e da segregação socioespacial.
De acordo com o Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (agência da ONU sediada em Nairóbi, Quênia, mais conhecida como UN-Habitat), uma ou mais das seguintes características definem um assentamento urbano precário, que o IBGE denomina aglomerado subnormal.
- Ocupação irregular: as pessoas ocupam terrenos dos quais não possuem título de propriedade.
- Condições inseguras de habitação.
- Baixa qualidade estrutural das construções e moradias apertadas e superlotadas.
- Acesso inadequado e saneamento básico - água potável e tratamento de esgoto - e as demais infraestruturas.
Comunidade Beira Rio, em Recife (PE). Ao fundo, nós temos o RioMar Shopping, o maior do Brasil fora do eixo Rio-São Paulo |
Os governos têm grande parcela de responsabilidade nesse processo, pois não implantaram políticas públicas adequadas, sobretudo no setor habitacional, para enfrentar o problema. Nos países em que políticas públicas foram adequadas, paralelamente ao aumento da oferta de empregos e à elevação da renda e da qualidade de vida, as moradias precárias foram bastante reduzidas ou até mesmo erradicadas.
Um dos melhores exemplos é Cingapura. De acordo com o Banco Mundial, em 1965, quando o país se tornou independente, 70% de sua população vivia em condições muito precárias: a renda per capita era de 2.700 dólares ao ano, e o desemprego atingia 14% da População Economicamente Ativa (PEA). Após cinco décadas de elevados investimentos públicos em habitação, em infraestrutura urbana e em serviços públicos de qualidade, houve crescimento econômico sustentado, elevação e melhor distribuição de renda, erradicação das submoradias e, consequentemente, melhoria da qualidade de vida da população. Em 2019, segundo o Banco Mundial, Cingapura tinha uma renda per capita de 65.233 dólares, e o desemprego atingia 3,8% da PEA masculina e 4,3% da feminina.
Edifícios residenciais construídos pelo Estado no distrito de Toa Payoh, Cingapura |
A carência de habitações seguras e confortáveis é um problema mundial, mas principalmente nos países em desenvolvimento. Segundo a UN-Habitat, o percentual de pessoas que vivem em assentamentos precários caiu de 46% da população mundial em 1990 para 23% da população urbana mundial em 2014. Ainda é um número muito alto, uma vez que corresponde a quase 1 bilhão de pessoas. O Leste da Ásia é a região com o maior número absoluto de submoradias. Embora a China e a Índia tenham reduzido significativamente a quantidade de pessoas que vivem em moradias precárias, ainda são os países que apresentam os maiores números absolutos. Esses dois países detêm cerca de 36% da população mundial. O Brasil é o quarto país com o maior contingente de moradores em aglomerações subnormais. O maior número relativo de moradores em assentamentos precários aparece na África Subsaariana. Na Nigéria, país com o maior número de habitantes em submoradias nessa região, o percentual de pessoas que vivem em habitações precárias chega à metade da população urbana. Nesse subcontinente há países com percentual bem mais altos, como a República Centro-Africana, onde 93% da população vive em favelas.
Barracos de uma favela em Jacarta, Indonésia |
Na tentativa de encaminhar soluções para diversos problemas urbanos, entre os quais os assentamentos precários, foi realizada em Istambul, na Turquia, em 1996, a Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos - Habitat II. A primeira reunião, Habitat I, aconteceu em Vancouver, Canadá, em 1976; e a Habitat III ocorreu em Quito, Equador, em 2016.
A Habitat II reuniu representantes dos países-membros da ONU e de diversas ONGs. Nesse encontro, ficou decidido que os governos deveriam criar condições para que o acesso à moradia segura, habitável, salubre e sustentável fosse universalizado. Diversos governos, porém, entre os quais os Estados Unidos e o Brasil, foram contra a proposta de que a habitação fosse considerada um direito universal do cidadão e, portanto, garantida pelo Estado, para não serem cobrados judicialmente pela não garantia desse direito.
Em diversas cidades do mundo, tanto nos países em desenvolvimento quanto nos desenvolvidos, pessoas sem-teto se organizam para lutar pelo direito à moradia urbana adequada e por melhores condições de vida. Uma ou outra dessas organizações tem atuação nacional, mas a maioria delas atua localmente. Há também organizações com atuação internacional, como a TETO (ou TECHO, em espanhol), organização não-governamental (ONG) criado em 1997, no Chile, que atua em quase toda a América Latina.
Favela em Cuautepec, Cidade do México |
REFERÊNCIAS BIBLIOGRFICAS
HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2009.
3 comentários:
As desigualdades sociais são imensas no mundo touro, as políticas públicas são precárias, e as pessoas com maior poder aquisitivo interfere nas políticas governamentais. Matéria super importante, obrigado professor Marciano.
Muito bom! Vamos torcer pra que um dia,os nossos governos pensem para a população tão sofrida por esse crescimento desordenado por muitas situações,imitem o exemplo de Cingapura e de outros países mais desenvolvidos com modelos humanizados para todos envolvidos.Parabéns professor pela sua contribuição.
Parabéns professor pela sua contribuição.
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