quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

AS CONCEPÇÕES DE TRABALHO

   O trabalho é o fator de produção mais importante. Usualmente, os economistas medem o trabalho em termos de horas dedicadas (tempo), salário ou eficiência.

  O trabalho é a essência do homem. O que distingue o homem dos animais é a sua consciência e a intencionalidade para o trabalho. O trabalho humano pode ser de ordem intelectual ou corporal. No trabalho humano há a liberdade de criação e de tempo.

  As ações humanas sobre a natureza redefiniram as condições necessárias à vida: a princípio, apenas alimentação e abrigo, mas, com o desenvolvimento da vida em sociedade, novas necessidades e soluções surgiram ou foram criadas. É usual denominar trabalho como as atividades humanas que visam à obtenção de algum objetivo, ou seja, que têm uma finalidade. Tais atividades partilhadas entre homens e mulheres pela sobrevivência do grupo foram se transformando ao longo de milhares de anos. A plantação já foi tarefa quase exclusiva das mulheres no alvorecer do Período Neolítico e do surgimento da agricultura, entre 12 e 10 mil anos atrás, para os povos que associavam o cultivo à fecundidade da mulher. Uma peça de roupa que hoje é resultado da aplicação do trabalho de diferentes pessoas em diferentes indústrias (uma produz o fio de algodão, outra aplica a tinturaria, outra corta e costura, outra vende, outras gerenciam todas essas etapas e outras lucram) já foi tarefa de um único trabalhador artesão nas sociedades pré-capitalistas.

Trabalhador estadunidense no começo do século XX

O conceito de trabalho

  A palavra trabalho deriva do latim tripalium ou tripalus, uma ferramenta de três pernas que imobilizava cavalos e bois para serem ferrados. Curiosamente era também o nome de um instrumento de tortura usada contra escravos e presos, que originou o verbo tripaliare, cujo primeiro significado era "torturar". Os gregos e os romanos diferenciavam o trabalho criativo (dos artistas e elites) do trabalho braçal ou penoso (escravos).

  • Trabalho criador = "Ergoni" (grego) e "Opus" (latim)
  • Trabalho braçal = "Ponosi" (grego) e "Labor" (latim)

  Nesse sentido insere-se também a antiga tradição bíblica do trabalho como castigo, ao condenar o homem comum expulso do paraíso (Adão) à labuta para ganhar o pão de cada dia ("tu comerás o teu pão, no suor do teu rosto").

  No mundo contemporâneo a atuação profissional da maioria das pessoas acontece nos setores  da indústria e, principalmente, de serviços que se caracterizam, geralmente, por grandes fábricas e escritórios.

  Porém, não podemos nos limitar a essas duas representações sobre o trabalho. Isso porque, em primeiro lugar, as áreas de atuação profissional vão muito além de fábricas e escritórios e, em segundo lugar, porque trabalho é um conceito com múltiplos sentidos e que é utilizado por diferentes áreas do conhecimento e extrapola uma atividade profissional remunerada.

  Nas Ciências da Natureza, em especial na Física, trabalho é um conceito que relaciona uma força ao deslocamento de um corpo.

  Em termos mecânicos, o trabalho é uma quantidade de energia transferida pela aplicação de uma força a um corpo que o desloca em determinada direção.

  O trabalho, para as Ciências Humanas, é a aplicação da energia de um indivíduo para a realização de uma tarefa, para a realização de um objetivo.

  Quando um agricultor manuseia uma enxada para plantar sementes que em pouco tempo vai germinar e se tornar alimentos, o trabalho realizado pode ser descrito como a energia que o lavrador transfere à enxada que resulta na força empregada no revolvimento do solo.

Para algumas ciências, como a Física, o trabalho está relacionado à força exercida por um determinado corpo

  O trabalho está presente na vida dos seres humanos desde os tempos mais remotos, seja por meio da coleta de alimentos ou da caça de animais, seja pela construção dos abrigos mais rudimentares para se proteger e ter as necessidades básicas minimamente atendidas. Diferentes sociedades criaram mitos sobre uma época em que os seres humanos não precisavam trabalhar para sobreviver. Nas sociedades ocidentais e cristãs talvez o mito mais difundido seja o de Adão e Eva.

  Nessa versão, o primeiro homem e a primeira mulher criados por Deus viviam no Paraíso: o Jardim do Éden, repleto de árvores com diversos frutos, bastando colhê-lo para se alimentar e viver. Nenhum trabalho ou esforço eram necessários para a manutenção da vida. Deus disse a Adão e Eva que eles poderiam colher os frutos que quisessem, a não ser o da árvore do conhecimento. Eva, ludibriada pela serpente, colhe e oferece a Adão o fruto dessa árvore, que ambos comem. Por descumprirem a ordem de Deus foram expulsos do Paraíso. Desde então, eles e os demais seres humanos são obrigados a "lavrar a terra de que fora tomado". "No suor do teu rosto comerás o teu pão" (Gênesis 3: 19,23).

  Dessa forma, o mito da queda relaciona o trabalho à sobrevivência dos seres humanos: se não trabalharmos, não nos alimentaremos. O trabalho responde às necessidades que são próprias da condição humana, necessidades essas ligadas à sua vida econômica.

O pecado original e a expulsão do Paraíso, de Michelangelo Buanarroti (1475-1564), 1509. Uma das obras-primas do artista, é uma das cenas do conjunto de afrescos pintados na Capela Sistina, Vaticano, sobre passagens da Bíblia, tanto do Antigo Testamento quanto do Novo Testamento

  Na Antiguidade, especialmente entre os gregos, o trabalho era majoritariamente realizado pelos escravos, sobretudo àqueles que, à época, contavam para a economia, como produção e fabricação de bens.

  Foi preciso esperar até a modernidade, com a ascensão da burguesia ao poder nas sociedades ocidentais, para que o trabalho fosse redefinido como trabalho assalariado, "trabalho pelo qual se paga", trabalho livre. Desde então, o trabalho até se revestiu de dignidade, emergindo a visão de que aquele que não trabalha é indigno, um desocupado, por vadiagem, preguiça ou acomodação.

Pintura de Gustave Boulanger (1824-1888) retratando um mercado de escravos na Grécia Antiga

O trabalho como exploração

  Qualquer que seja a visão que tenhamos sobre o trabalho (se manual ou intelectual, se dignificante ou punitivo), todas elas partem de um mesmo ponto: o trabalho envolve algum grau ou etapa de transformação da natureza ou da matéria com vistas à produção de algo que tenha alguma importância para alguém, ou que seja visto como válido pela sociedade em que está inserido.

  Na sociedade capitalista moderna, o trabalho parece algo individual, dependente apenas do indivíduo. Ele é, contudo, essencialmente social. Nenhuma empresa, nenhum empreendedor produz todos os materiais e componentes necessários para a confecção do produto que fabrica. Tomemos como exemplo uma empresa que produz celulares. Ela não produz o chip, a tela, o plástico, os circuitos: reúne todas essas peças produzidas por outras empresas a fim de fabricar o celular. Muitas vezes, nem mesmo fabrica, apenas projeta e desenvolve o produto e terceiriza a fabricação para outra empresa. Esse fato nos revela que o trabalho é configurado a partir de uma divisão social.

Fluxograma geral da desmontagem de telefones celulares e baterias com a respectiva diversidade de componentes

  No interior de uma mesmo empresa, o trabalho também é dividido em funções, que podemos separar em dois grandes grupos: os gestores e os subordinados. Esses dois grupos também estão sujeitos a novas divisões: diretores e gerentes coordenam o trabalho de mecânicos, engenheiros e pintores em uma montadora automobilística, por exemplo. Enquanto os trabalhadores produzem o produto que será vendido no mercado, gestores acompanham e coordenam o trabalho dos demais.

  Essa divisão entre grupos de acordo com diferentes funções no processo produtivo também ocorria em outras sociedades em que o trabalho estava estruturado de diferentes formas: escravos e homens livres, servos e senhores feudais, etc. São hierarquizações formadas por estratos sociais (vem do latim stratum, "camada") segundo as diferentes funções que grupos desempenham no processo produtivo.

  A sociologia busca a compreensão dessa constituição das hierarquizações e suas desigualdades, designada estratificação social, por meio do qual "vantagens e recursos tais como riqueza, poder e prestígio são distribuídos sistemática e desigualmente nas ou entre sociedades".

Pirâmide social mostrando a estratificação de uma sociedade  bastante desigual

  Uma das representações mais comuns da estratificação social é o gráfico na forma de triângulo, no qual as camadas menos favorecidas se encontram na base e as camadas de maior nível socioeconômico se encontram no topo. Mas a estratificação social não é exatamente a mesma em toda época ou em todo lugar. Os modos de organização social mudam muito de uma sociedade para outra, mas, de forma geral, podemos destacar três grandes sistemas de estratificação social: as castas, os estamentos e as classes sociais.

  O sistema de castas é uma forma de estratificação social que leva em consideração fatores como linguagem familiar, ofícios, tradições, religiosidade e uma noção cultural de pureza ou impureza de indivíduos pertencentes a determinadas famílias. Não há mobilidade social. A Índia, por exemplo, é um país de religião hinduísta marcado pela existência de castas, sendo a mais elevada os brâmanes (atividades religiosas e intelectuais) e a mais baixa os sudras (atividades serviçais); há também os párias (sem castas). Embora as castas tenham sido banidas por lei na Índia, permanecem nas relações sociais, principalmente na zona rural.

Pirâmide representando o sistema de castas. Apesar de banidas por lei, as castas ainda sobrevivem na Índia rural

  O sistema de estamentos é aquele nos quais as camadas se definem a partir das atividades desempenhadas e do status social, mas sem os aspectos religiosos nem as noções de pureza características das castas. As sociedades estamentais se distinguem ainda por seu baixo nível de mobilidade social. Diferentemente das castas, nas quais um indivíduo jamais muda sua posição na sociedade, a mudança de um estamento a outro pode acontecer, embora muito difícil. O exemplo mais tradicional de um sistema estamental é a Europa na época da Idade Média.

  O sistema de classes é aquele em que as camadas sociais se definem principalmente a partir das diferenciações de ordem econômica e no qual é possível a mobilidade social. Em um sistema de classes a desigualdade econômica está geralmente associada a uma desigualdade de capital cultural e de poder político. Desigualdade de capital cultural porque são geralmente as camadas mais ricas que têm mais acesso a bens culturais, como escolarização e outros meios de acesso à informação e ao conhecimento. Desigualdade de poder político porque geralmente também são as camadas mais altas aquelas que detêm maior capacidade de atuação nas instituições políticas.

  Na prática, em uma sociedade de classes, é raro, mas não proibido ou impossível, que apenas pela via do mercado uma pessoa que tenha nascido em uma família pobre suba na escala social e se torne um milionário, ou vice-versa. Mas há situações em que a mobilidade social pode ser significativa, como no caso da implementação de programas sociais que retirem milhões de famílias da miséria, ou de uma crise econômica que leve a um "achatamento" das classes sociais. De qualquer modo, o conceito de classes se aplica às sociedades nas quais a desigualdade social não é vista como tendo origem na natureza ou como fruto de um desígnio divino, mas como resultado das ações humanas.

Pirâmide de uma sociedade estamental durante a Idade Média

  Segundo a teoria marxista, a relação entre classes é sempre de contraposição, uma explora o trabalho da outra. Daí a frase de Karl Marx de que a história da humanidade é a "história da luta de classes". Na sociedade capitalista, na qual o trabalho assume a forma assalariada, as classes que compõem o processo produtivo são os capitalistas (ou a burguesia), que detêm os meios de produção, e os trabalhadores (ou o proletariado ou operariado), que, por não possuírem nada além do seu corpo e sua energia, vendem sua força de trabalho em troca de um salário.

  Esse processo pelo qual o trabalhador, despossuído de meios, vende sua força de trabalho resulta na alienação. A palavra alienação vem do latim alienare, "que não pertence a si". Por vender sua força de trabalho, nem a atividade realizada nem o produto que é produzido pelo trabalhador pertencem a ele.  O trabalhador não escolhe como vai trabalhar nem em que ritmo e, muitas vezes, nem sequer escolhe o que vai produzir.

  Entre a burguesia e o operariado, eixos da sociedade capitalista, existem outros grupos sociais (pequenos negócios, pequenas e médias propriedades, funcionários públicos, profissionais liberais, etc.) denominados classe média, um grupo não homogêneo e oscilante na atuação social e política, segundo a visão marxista.

  Para Marx, classe social é uma categoria histórica, como burguesia e proletariado, ligada ao desenvolvimento das sociedades, fundamental para a concepção das relações sociais com seus antagonismos.

Karl Marx (1818-1883)

  Para o sociólogo Max Weber, diferentemente de Marx, para quem o eixo analítico está na produção social e na exploração do trabalho, é o indivíduo o elemento central da explicação da realidade social. Weber toma como chave de sua análise a ação social, realizada pelo agente ou agentes.

  Assim, Weber utiliza o termo classe referindo-se às oportunidades da vida, às conquistas do que se deseja e se consegue do mercado, juntando com outras duas dimensões de desigualdade, o poder e o prestígio. "O enfoque multidimensional de Weber amplia a análise da classe, como ajuda a explicar as complexidades da posição e relações de classes, em especial se as relações são consideradas no contexto das três dimensões de desigualdade e dos fatos que a afetam".

Max Weber (1864-1920)

Trabalho em comunidades tradicionais

  No Brasil, de acordo com o Decreto n. 6.040/2007 em seu artigo 3º inciso I, Povos e Comunidades Tradicionais são "grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem  como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição". As comunidades tradicionais podem ser formadas por caboclos, indígenas, posseiros negros e até colonos de ascendência europeia. São homens e mulheres cuja identidade está ligada à terra e ao trabalho comunitário.

  Para as comunidades tradicionais, sobretudo aquelas remanescentes de quilombos, a grande questão que se coloca ainda nos dias de hoje é a obtenção oficial da propriedade da terra. Sempre houve um esforço para consolidação dos espaços ocupados por essas comunidades, haja visto que, desde 1850, com a promulgação da Lei de Terras, o governo brasileiro impediu a entrega gratuita de terras pelo Estado, forçando a compra dos lotes, reforçando o poder das elites proprietárias e praticamente impedindo o acesso à terra aos escravizados que seriam libertos décadas depois. Essa luta secular resultou na aprovação do artigo 68 no Ato das Disposições Transitórias, pela Constituição de 1988.

Mapa do Brasil mostrando as Terras Quilombolas tituladas em 2017

  Um traço marcante das comunidades tradicionais é o esforço para a manutenção de suas memórias e de seus elementos simbólicos que compõem a identidade dos grupos. Um dos elementos de manutenção das culturas tradicionais é a forma como o trabalho é desempenhado. Nele é comum o uso de recursos naturais de modo equilibrado porque há a preocupação em manter a estrutura construída para as gerações posteriores, que são, geralmente, comunidades marcadas pela economia de subsistência. Diferentemente de outras, as comunidades tradicionais consideram o território como elemento simbólico e mítico, um lugar no qual seus valores são constantemente reconstruídos em conexão com seu passado e conhecimento ancestrais, produzindo um modo de vida associativo e/ou coletivo. Ou seja, o ritmo de reprodução do modo de vida social se dá em compasso com o ritmo natural.

  Dessa forma, o trabalho mantém uma profunda interdependência com a natureza, o desejo de viver em comum, as redes de solidariedade, a partilha igualitária dos valores de uso e dos valores monetários, a posse comunitária da terra e de outras riquezas inscritas nas comunidades e a não exploração de outro indivíduo como eixo estruturante da organização social.

  Muitas vezes o termo "tradicional" pode ser compreendido, carregado de significado pejorativo que faz referência a algo ultrapassado, "atrasado", que se opõe ao que é novo e moderno. São tradições que carregam uma perspectiva de vida e visão de mundo que podem não ser compreendidas de acordo com os paradigmas da sociedade moderna, causando uma certa estranheza com relação à produção material e imaterial da vida cotidiana. No entanto, é importante salientar que as comunidades tradicionais preconizam outro modo de vida, que pode conviver em harmonia com as conquistas da modernidade e até mesmo incorporá-las para o melhoramento do seu bem-estar.

Comunidade caiçara no município de Cananeia (SP). Um exemplo de uma comunidade tradicional

REFERÊNCIAS:

BRASIL. Secretaria de Especial de Direitos Humanos (SEDH). Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH 3. Brasília: 2010.

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? - Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 9ª ed. São Paulo: Editora Cortez, 2003.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010.

CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 2017.

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