quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

O ANTIGO REGIME NA FRANÇA

  O Antigo Regime refere-se originalmente ao sistema social e político aristocrático que foi estabelecido na França. Trata-se principalmente de um regime centralizado e absolutista, em que o poder era concentrado nas mãos do rei.

  Também se atribui o termo ao modo de viver característico das populações europeias durante os séculos XV, XVI, XVII e XVIII, isto é, desde as descobertas marítimas até as revoluções liberais. Coincidiu politicamente com as monarquias absolutistas, economicamente com o capitalismo social, e socialmente com a sociedade de ordens. As estruturas sociais e administrativas do Antigo Regime foram resultado de anos de "construção" estatal, atos legislativos, conflitos e guerras internas, mas tais circunstâncias permaneceram como uma mistura confusa de privilégios locais e disparidades históricas, até que a Revolução Francesa pôs fim ao regime.

   No fim do século XVIII, o Reino da França possuía cerca de 28 milhões de habitantes e era um país marcado pela desigualdade.

A França em 1435

Sociedade

  A sociedade francesa estava dividida em três ordens ou estados: o Primeiro Estado (o clero); o Segundo Estado (a nobreza); e o Terceiro Estado (camponeses, burguesia e trabalhadores das cidades).

  O Primeiro Estado - o Clero - era composto de cerca de 280 mil pessoas. A riqueza vinha, sobretudo, das terras que o clero possuía, mas ele também cobrava dízimo, imposto nacional e taxas sobre batismo, casamento e sepultamento. Os cardeais, bispos, arcebispos e abades compunham o alto clero e tinham, geralmente, origem nobre. O baixo clero -padres, frades e monges - era de origem pobre e vivia insatisfeito com os privilégios e os desmandos do alto clero e da nobreza.

  O Segundo Estado - a nobreza - era composto de cerca de 840 mil indivíduos, cuja função principal era "defender a nação"; por isso, só os nobres portavam espada. A nobreza era composta de três grupos principais: nobreza cortesã (sustentada pela realeza, vivia em torno do Palácio de Versalhes, a residência do rei), nobreza provincial (estabelecida no interior da França, vivia das rendas das terras onde os camponeses trabalhavam) e nobreza de toga (burgueses que tinham comprado títulos e cargos públicos vendidos pela realeza). A nobreza como um todo vivia à sombra da Corte e/ou do trabalho dos camponeses.

  O Terceiro Estado - camponeses, trabalhadores urbanos e burguesia - era compost0 de 26 milhões e 880 mil pessoas. Os camponeses constituíam cerca de 80% da população francesa e pagavam impostos à Monarquia e a seus senhores diretos. Entre os trabalhadores urbanos havia artesãos, operários, cocheiros, carregadores de lenha, entre outros; muitos viviam em Paris e eram conhecidos como sans-cullotes ("sem culote". Culote era uma calça justa que terminava um pouco abaixo do joelho, usada pelos nobres).

  A burguesia francesa era formada pela alta e média burguesia (fabricantes, grandes comerciantes, banqueiros, agiotas e armadores) e pela pequena burguesia (profissionais liberais - advogados, médicos, escritores -, funcionários públicos e lojistas); a pequena burguesia era mais influente politicamente.

  Os membros do Terceiro Estado produziam riquezas e eram obrigados a pagar quase todos os impostos; não possuíam qualquer privilégio. O Primeiro e o Segundo Estado não produziam riquezas, eram isentos de quase todos os impostos, ocupavam altos cargos e recebiam ricas pensões.

Sociedade no Antigo Regime

A economia e a política

  Na França, desde o século XV, o capitalismo vinha se desenvolvendo a passos largos. A burguesia ganhava importância social e prosperava por meio da indústria, do empréstimo de dinheiro a juros e do comércio com o Oriente, a América e a África. Mas o Estado absolutista francês representava um obstáculo aos negócios da burguesia, pois a carga de impostos encarecia o preço das mercadorias; as práticas mercantilistas impediam a livre concorrência (a produção de seda, por exemplo, era monopólio de um pequeno grupo); os diferentes sistemas de pesos e medidas dificultavam o comércio interno. Com o tempo, essa situação se agravou e muitas empresas faliram gerando desemprego e fome nas cidades.

  No campo, a falta de trabalho também atingia os mais pobres; pois os grandes proprietários vinham introduzindo a agricultura capitalista: cercavam as terras de uso comum (campos, matas e pastos) para produzir cereais em larga escala e, consequentemente, os camponeses que delas sobreviviam ficavam sem terra e sem trabalho. Em virtude da concentração de terras e dos pesados impostos cobrados no campo, a oferta de alimentos era pequena e seus preços, elevados. Com as inundações e secas, frequentes na década de 1780, os preços dos alimentos disparavam, e, como "estômagos famintos não têm ouvidos" - ditado popular da época da Revolução Francesa -, explodiram as famosas jacqueries (revoltas camponesas).

A crise econômica provocou a revolta dos camponeses e dos trabalhadores urbanos

  Enquanto isso, a dívida do governo do rei Luís XVI aumentava sob o peso dos gastos com a Corte e com as guerras movidas ou apoiadas pela monarquia francesa.  Callone, ministro de Luís XVI, chegou a propor que o clero e a nobreza passassem a pagar impostos, mas sua proposta foi rejeitada.

  Diante da gravidade da situação, Luís XVI convocou os Estados Gerais - assembleia que reunia os três estados, o clero, a nobreza e o Terceiro Estado, e que não era consultado há 175 anos.

  Nessa assembleia, o voto era "por estado", ou seja, cada estado tinha direito a um voto. Assim, a nobreza e o clero, que eram os grupos dos privilegiados, somavam dois votos contra apenas um do Terceiro Estado. Nessa assembleia dos Estados Gerais, o Terceiro Estado conseguiu eleger mais deputados do que o clero e a nobreza juntos (578 X 561) e lançou então uma campanha em defesa do voto por cabeça.

Os três estados do Antigo Regime: o clero, a nobreza e a burguesia

A Revolução em marcha

  Em 5 de maio de 1789, na sessão de abertura da Assembleia dos Estados Gerais, o rei, com o apoio do clero e da nobreza, declarou que a reunião deveria ser restrita ao exame dos problemas financeiros, omitindo, assim, o debate se o voto seria "por cabeça" ou "por estado". Assim, a votação continuaria sendo por estado.

  Os deputados do Terceiro Estado reagiram a essa decisão do rei declarando em Assembleia Nacional o objetivo de escrever e aprovar uma constituição. Luís XVI, por sua vez, mandou fechar a sala em que os deputados se reuniam. Eles, então, invadiram a sala do Jogo da Pela (jogo semelhante ao jogo de tênis em quadra coberta, praticado pelos nobres e clérigos) e lá juraram não se separar enquanto não tivessem elaborado uma Constituição para a França.

Sessão de abertura dos Estados Gerais em 5 de maio de 1789

Fases da Revolução Francesa

  • A Assembleia Nacional Constituinte

  A tensão entre a Assembleia e o rei aumentou; em 14 de julho de 1789, o povo de Paris invadiu e tomou a Bastilha, a prisão símbolo do absolutismo francês. Sob intensa pressão popular, a Assembleia Nacional Constituinte aboliu a servidão, os dízimos, o direito de mão-morta (pagamento feito pelo servo quando seu pai morria, para manter o direito de utilizar a terra) e a justiça senhorial (todos passavam a obedecer às mesmas leis). Em 26 de agosto de 1789 a Assembleia Nacional aprovou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Esse documento estabelecia o direito à liberdade, à propriedade privada, à segurança, resistência à opressão e o direito à livre comunicação dos pensamentos e das opiniões. Além disso, a Assembleia confiscou os bens da Igreja, colocou-os à venda, e aprovou a Constituição Civil do Clero, que transformou os membros do clero em funcionários públicos, obrigando-os a jurar fidelidade à Nação. Os que aceitaram essa decisão foram chamados de clero juramentado; os que discordaram dela foram denominados clero refratário. O clero refratário se uniu aos milhares de nobres que haviam fugido da França com dinheiro e joias e, no exterior, aliaram-se a monarcas absolutistas para combater a Revolução Francesa.

Queda da Bastilha, em 14 de julho de 1789

  • A monarquia constitucional

  Em setembro de 1791, foi aprovada a primeira Constituição francesa, que: limitou o poder do rei, transformando a França em uma monarquia constitucional; liquidou o absolutismo francês, dando à Assembleia o poder de fazer e aprovar leis; confirmou a perda dos privilégios do clero e da nobreza e criou privilégios de outro tipo, como o voto censitário: os franceses foram divididos em cidadãos "ativos" (os que possuíam a renda exigida para votar e ser votado) e "passivos", ou não votantes (quase 85% da população; pobres, mulheres e não brancos foram excluídos do direito ao voto); proibiu os sindicatos e as greves.

  A Constituição desagradou profundamente o rei da França e aos seus aliados internos (a alta nobreza e o alto clero) e externos (o governo da Áustria e da Prússia); unificadas, essas forças montaram um exército e invadiram a França. A Assembleia Nacional francesa reagiu declarando "a pátria em perigo"; o povo de Paris, por sua vez, marchou sobre o Palácio das Tulherias e prendeu o rei e sua família. Com a ajuda de milhares de voluntários, o exército francês revolucionário venceu o exército estrangeiro na Batalha de Valmy, em 20 de setembro de 1792.

O assalto ao Palácio das Tulherias, em 10 de agosto de 1792

  • A Convenção Nacional

  Vencido o exército invasor, elegeu-se uma nova Assembleia Nacional, denominada Convenção, que imediatamente extinguiu a Monarquia e proclamou a República. Abriu-se, então, intensa disputa entre os 750 deputados que compunham a Convenção e que se encontravam divididos em quatro grandes grupos políticos.

  Os girondinos, que representavam a burguesia industrial e comercial, defendiam o voto censitário, o direito à propriedade privada e eram contrários à participação política de populares na Convenção.

  Os jacobinos, a exemplo de Robespierre, defendiam um governo central forte, o voto universal e a participação popular na direção do processo revolucionário.

  Os cordeliers, liderados por Marat e Danton, abraçavam propostas radicais como o fim da propriedade privada e a reforma agrária. Cordeliers e jacobinos sentavam-se nos bancos mais altos do plenário, por isso, esses dois grupos políticos eram conhecidos como montanheses.

  A planície, que era composta por deputados que agiam conforme seus interesses imediatos, ora apoiava os jacobinos, ora os girondinos. Sentavam-se ao centro, nos lugares mais baixos do plenário; daí o nome de "planície".

Sala do Manège das Tulherias, local de reunião da Convenção até 9 de maio de 1793

  O rei foi levado a julgamento pela Convenção, fato que dividiu os deputados: os girondinos propunham um solução conciliatória; já os jacobinos desejavam a execução do rei. A descoberta, no cofre real, do acordo que o rei fizera com monarcas estrangeiros em favor da invasão da França precipitou os acontecimentos; após intensos debates, 683 dos 721 deputados presentes (cerca de 95%) declararam Luís XVI culpado. Em janeiro de 1793, diante de uma multidão de cerca de 20 mil pessoas, o rei foi guilhotinado e sua cabeça exibida ao povo.

  A execução do rei desencadeou uma série de reações internas e externas.

  Externamente, várias monarquias europeias, como Áustria, Prússia, Holanda, Espanha e Inglaterra, uniram-se e formaram a Primeira Coligação contra a França revolucionária. Internamente, em meio à grave crise econômica, grupos de sans-culottes armados cercaram a Assembleia Nacional, depuseram os deputados girondinos e colocaram os jacobinos no poder, em junho de 1793.

Execução de Luís XVI. A cabeça do rei é exibida ao povo, como se costumava fazer com todos os executados

  • O governo jacobino

  Os jacobinos organizaram um governo fortemente centralizado, dirigido por Robespierre e composto de uma série de órgãos especiais; o principal deles, o Comitê de Salvação Pública, concentrava enorme poder. Subordinado a esse órgão, havia o Tribunal Revolucionário, que julgava sumariamente os indivíduos considerados contrarrevolucionários.

  Para enfrentar a situação caótica em que a França se encontrava e a ameaça externa, o Comitê de Salvação Pública adotou as seguintes medidas: decretou o alistamento em massa de todos os jovens de 18 a 25 anos - solteiros ou viúvos, foram recrutados para a luta contra os inimigos externos (Segunda Coligação); tabelou os gêneros de primeira necessidade e elevou os salários; dividiu as terras dos nobres emigrados em pequenos lotes e as vendeu ou doou aos camponeses; aboliu a escravidão nas colônias francesas; instituiu a escola primária pública e obrigatória, como um direito fundamental de todos os franceses, o que permitiu o acesso dos pobres à educação formal.

Tribunal Revolucionário

  Na esfera política, as lutas entre os  jacobinos e girondinos se acirraram e, nesse contexto Jean-Paul Marat, ídolo dos sans-culottes, foi assassinado pela girondina Charlotte Corday (1768-1793).

  O governo jacobino reagiu aumentando a repressão e baixando a Lei dos Suspeitos, que suspendia os direitos individuais dos cidadãos, inclusive o direito de defesa, e intensificando o uso da guilhotina. Até Danton, um líder popular da Revolução, foi executado a mando de Robespierre. Iniciava-se assim o Período do Terror (de setembro de 1793 a julho de 1794): milhares de pessoas acusadas de serem inimigas de revolução foram condenadas e guilhotinadas em praça pública.

  Enquanto isso, o exército francês, liderado por Napoleão Bonaparte (1769-1821) e fortalecido pelo ingresso de jovens e de sans-culottes, libertou o porto de Toulon das mãos inglesas e retomou a região da Vendeia, vencendo os contrarrevolucionários.

  Conforme os jacobinos intensificavam o uso da violência, foram perdendo o apoio popular e dos deputados aliados ao seu governo. Aproveitando-se do enfraquecimento dos jacobinos, os deputados da planície e os girondinos desfecharam um golpe em julho de 1794 (9 Termidor pelo novo calendário) e retomaram o poder. Robespierre, Saint-Just (1767-1794) e outros líderes jacobinos foram presos e guilhotinados sem julgamento.

  Encerrava-se, assim, a fase mais popular e radical da revolução, e a burguesia retomava o poder.

Execução de Maximilien Robespierre (1758-1794) durante o Terror

  • O Diretório

  Ao assumir o poder, em 1794, o novo governo liberou os preços dos alimentos e dos aluguéis e restabeleceu a escravidão nas colônias francesas. Além disso, estimulou o crescimento da indústria do algodão, da metalurgia e da mineração, intensificando o desenvolvimento do capitalismo francês. Em 1795, aprovou uma nova Constituição que restabeleceu o voto censitário (que excluía a maioria da população do direito ao voto) e confiou o poder Executivo a um Diretório, formado por cinco deputados escolhidos por sorteio.

  O Diretório combateu duramente seus dois principais adversários: os realistas, empenhados na volta à monarquia, e os novos jacobinos, apoiados pelos sans-culottes. Os monarquistas, ajudados pela Inglaterra, promoviam levantes para levar ao poder o conde de Artois, irmão de Luís XVI; os novos jacobinos faziam oposição ao governo por meio de seus clubes e jornais. Nesse contexto, um jornalista de nome Graco Babeuf (1760-1797) encabeçou um movimento popular - a Conspiração dos Iguais - que propunha o fim da propriedade privada e a distribuição equitativa da pobreza.

  O Diretório reagiu decretando uma lei que condenava à morte todos os que eram favoráveis à reforma agrária ou à volta da monarquia (Babeuf e seu grupo foram presos e executados). A seguir, ordenou a ocupação militar de Paris, anulou as eleições e fechou a imprensa oposicionista. Apesar desse esforço para manter a ordem, o Diretório encontrava-se desmoralizado, pois vários de seus membros estavam envolvidos em atos de corrupção. Nesse cenário de violência, instabilidade política e falta de ética os militares ganharam proeminência. Napoleão Bonaparte, conhecido pelo excelente desempenho no combate aos exércitos estrangeiros, passou a ser visto por muitos franceses como "salvador da pátria", ou seja, o homem que poria fim ao descalabro em que a França vivia. Em 10 de novembro de 1799 (18 Brumário pelo calendário republicano), Napoleão Bonaparte desfechou um golpe de Estado, e, apoiado por um grupo político-militar, tomou o poder.

Napoleão Bonaparte cercado por membros do Conselho dos Quinhentos durante o Golpe de 18 Brumário, por François Bouchot

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

HOBSBAWM, E. Era das Revoluções. São Paulo: Paz e Terra, 1978.

ROSSI, P. A ciência e a filosofia dos modernos aspectos da Revolução Científica. São Paulo: EDUnesp, 1992.

MATTOSO, K. de Q. Textos e documentos para o estudo de história contemporânea. São Paulo: Edusp; Hucitec, 1977.

HUNT, L. Revolução Francesa e Vida Privada. in: PERROT, M. (Org). História da Vida Privada: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Vol. 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1991 (adaptado).

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