sexta-feira, 13 de julho de 2012

OS FLUXOS E O SISTEMA DE TRANSPORTE

  O sistema de transporte é um elemento fundamental das economias nacionais. Os custos de deslocamento incidem sobre os custos das matérias-primas e dos produtos finais destinados aos mercados internos ou à exportação. Sistemas de transportes caros e ineficientes reduzem o potencial de geração de riquezas e a competitividade dos países. No Brasil, o desenho do sistema de transporte reflete as desigualdades regionais.
REDES DE TRANSPORTE: RUGOSIDADES ESPACIAIS
  Nas paisagens coexistem formas espaciais, objetos produzidos pelo trabalho humano em diferentes momentos históricos. Por mais velozes que sejam as mudanças na sociedade, esses objetos nunca são destruídos ou substituídos por outros ao mesmo tempo. Ao contrário, alguns processos novos se adaptam às formas espaciais preexistentes, e a elas atribuem novos papéis. Isso acontece, por exemplo, quando uma região fabril é desativada e os velhos galpões são reaproveitados para novos fins, como grandes restaurantes, danceterias ou áreas de promoção cultural; ou quando uma antiga área portuária se transforma em polo de turismo ou lazer.
Estação das Artes Elizeu Ventania em Mossoró - RN. Antigo prédio do Sistema Ferroviário Federal, foi recuperado pela Petrobras e hoje abriga a maior parte das festas e eventos sociais da cidade.
  O geógrafo Milton Santos chama de "rugosidades" essas formas espaciais produzidas para atender necessidades do passado, mas que resistiram aos processos de transformação social e econômico e continuam a desempenhar um papel  ativo no presente. É o que ocorre, por exemplo, com as redes nacionais de transporte - espelhos dos diferentes modelos de organização da economia que se sucederam ao longo da história de um país.
  No Brasil, as rodovias dominam a matriz de transportes. O sistema rodoviário responde por 59% da matriz, em contraste com os 24% das ferrovias e os 17% das hidrovias e outros meios somados. Para efeitos de comparação com o Brasil, um país também de dimensões continentais como o Canadá tem 46% de ferrovias, 43% de rodovias e 11% de hidrovias e outros. A opção pelas rodovias, responsáveis pelos elevados custos de deslocamento que vigoram no país, foi realizada no contexto da acelerada industrialização que teve lugar em meados do século passado.
Ferrovia Transiberiana - maior ferrovia do mundo, corta a Rússia de leste a oeste
  No final do século XIX e início do século XX, porém, o modelo de transporte adotado no Brasil contemplava, basicamente, as necessidades da economia agroexportadora. Nesse período, o trem era o meio de transporte mais típico. O traçado das redes regionais interligava as áreas produtoras de mercadorias tropicais aos portos, pelos quais a produção era escoada para o mercado externo. No caso da malha ferroviária paulista, que estava a serviço do café, havia uma abertura em leque para as terras do interior e um afunilamento na direção do Porto de Santos.
  Essas redes configuravam as estruturas de "bacia de drenagem", pois se destinavam a escoar produtos minerais e agrícolas para os portos, de onde eles seguiam rumo aos mercados internacionais. Os planos de desenvolvimento de transportes visavam integrar as ferrovias com as hidrovias, uma vez que os rios eram bastante utilizados para a circulação regional. Um plano esboçado pelo engenheiro militar Eduardo José de Moraes ainda no século XIX tinha como objetivo criar um sistema hidroviário integrado.
  Com a emergência da economia urbano-industrial, as ferrovias e hidrovias foram paulatinamente perdendo importância para a rede rodoviária. Na década de 1930 esboçou-se uma nova diretriz na política nacional de transporte, que passou a privilegiar a construção de grandes rodovias. Washington Luís, presidente da República entre 1926 e 1930, adotou como lema de seu mandato a frase "governar é construir estradas". Nas décadas seguintes, essa política seria fortalecida pela criação da Petrobras e pelo desenvolvimento da indústria automobilística.
  A opção rodoviária, adotada naquela época, é atualmente uma das maiores dificuldades logísticas do país, pois teve como resultado um sistema de transporte caro e ineficiente, que traz impactos negativos tanto para a economia quanto para o meio ambiente.
Mapa rodoviário do Brasil
  Embora no Brasil existam grandes extensões de rios navegáveis, o país não dispõe de um sistema hidroviário. O sistema ferroviário, praticamente abandonado nos últimos 80 anos, hoje apresenta enormes trechos desativados ou subaproveitados.
  No que diz respeito às rodovias, apesar da presença de estradas modernas e construídas com os mais avançados recursos da engenharia, predominam os trechos esburacados e em péssimas condições. Cerca de 16% delas foram privatizadas e receberam investimentos nas últimas décadas, ainda que tenham se tornado extremamente caras tanto para os carros de passeio quanto para os caminhões de carga, em virtude das elevadas tarifas de pedágio.
  Entre as rodovias públicas, cerca de 80% da malha foi classificada como deficiente, ruim ou péssima por uma pesquisa da Confederação Nacional do Transporte (CNT).
BR-230 (Transamazônica) - Trecho entre Altamira e Marabá, no Pará
  A situação da maior parte da malha ferroviária brasileira também é bastante precária. Enquanto a maioria dos países desenvolvidos dispõe de um sistema ferroviário moderno, que permite tráfego das locomotivas de até 300 km/h, os trilhos no Brasil têm mais de 100 anos, e por eles passam trens vagarosos.
  Além disso, muitos trechos da malha foram cercados por cidades: um levantamento feito pela MRS Logística, que opera a malha sudeste da antiga Rede Ferroviária Federal, aponta a existência de 11.000 cruzamentos com estradas no Brasil. A necessidade de desacelerar nos trechos próximos a cidades e estradas obriga os trens de carga brasileiros a andarem numa velocidade de 25 km/h, ao passo que em outros países a velocidade média é de 80 km/h.
Grande parte da rede ferroviária do Brasil encontra-se sucateada
  Atualmente, onze linhas férreas estão convertidas em atrações turísticas. A maior delas, com 664 km de extensão é a que liga a capital do Espírito Santo, Vitória, à capital mineira. A menor, com somente 4 km, fica na cidade do Rio de Janeiro: o Trenzinho do Corcovado.
  Em muitos casos, a transformação de trechos ferroviários desativados em caminhos turísticos foi iniciativa dos apaixonados por trens; gente que gostava de ver as locomotivas correr sobre os trilhos e lembrar com saudade da época áurea do transporte ferroviário de passageiros no país. Reunidos em associações, esses militantes preservam a memória ferroviária brasileira, recuperam locomotivas e vagões e procuram colocá-los novamente em atividade.
Trem Turístico puxado por uma "Maria Fumaça" que liga São João Del Rey a Tiradentes - MG
  Algumas rodovias brasileiras desempenharam (e ainda desempenham) papel estratégico na integração do território nacional.
  O Nordeste e o Sul do país foram conectados ao Sudeste por meio da BR-116 e, depois, da BR-101. Nas décadas de 1950 e 1960, as capitais do Centro-Oeste e Brasília foram ligadas ao Sudeste.
  Em seguida, Brasília e Cuiabá tornaram-se os trampolins para a integração da Amazônia com o restante do território brasileiro. Os eixos principais foram a BR-153 (Belém-Brasília) e a BR-364, que parte de Mato Grosso e abre caminho para Rondônia e o Acre. Um eixo secundário é a BR-163 (Cuiabá-Santarém), cuja pavimentação se interrompe antes da divisa setentrional de Mato Grosso e só é retomada nas proximidades de Santarém.
Trecho da BR-010 (Belém-Brasília) em Dom Eliseu (PA)
  Na década de 1980, a crise financeira do Estado brasileiro teve efeitos devastadores sobre a vasta malha rodoviária. Com a capacidade de investimentos bastante reduzido, o governo federal simplesmente deixou de realizar a manutenção das estradas, que, sob o peso dos caminhões de carga e dos efeitos erosivos da chuva e do sol quente, se deterioraram em pouco tempo.
  O péssimo estado de conservação das rodovias brasileiras não prejudica apenas os usuários de transporte de passageiros, mas também o ramo de transporte de cargas, que tem muito mais gastos com a manutenção de caminhões. Além disso, a existência de trechos intransitáveis e a falta de maior integração entre as redes de transporte, exigem trajetos mais longos e complicados, o que resulta em mais poluição e mais gastos com combustíveis, além de uma maior exposição a acidentes.
Condições das rodovias federais de acordo com uma pesquisa feita em 2010 pela CNT
  Na década de 1990, a administração de inúmeras rodovias federais e estaduais passou ao controle de concessionários privados, garantindo a modernização e expansão das ligações viárias que servem principalmente aos eixos de circulação do Sudeste. Entre esses empreendimentos destacam-se as grandes rodovias paulistas, como os sistemas Anhanguera-Bandeirantes (entre São Paulo e Campinas), Anchieta-Imigrantes (entre São Paulo e a Baixada Santista) e Dutra-Ayrton Senna (entre São Paulo e o Vale do Paraíba).
Rodovia dos Bandeirantes - trecho São Paulo-Cordeirópolis
AS ESTRADAS DA GLOBALIZAÇÃO
  Nos últimos anos, o Brasil tem realizado um enorme esforço para aumentar sua participação no comércio internacional. Entretanto, o predomínio das rodovias e a precária integração entre os diferentes modos de transportes geram elevados custos de deslocamento, que dificultam a chegada dos produtos brasileiros aos mercados externos. Por isso mesmo, uma parcela significativa do orçamento e das obras previstas no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), anunciado em 2007, está voltado para o setor. Essas obras destinam-se a configurar uma nova estrutura em "bacia de drenagem", por meio de empreendimentos ferroviários e hidroviários. A perspectiva do Plano Nacional de Logística e Transporte (PNTL), do Ministério dos Transportes, é alcançar em 2015 o equilíbrio entre os três sistemas, com a seguinte repartição: rodoviário, 33%; hidroviário, 29%.
Obras do PAC na BR-101 no município de Goianinha - RN
  Alguns dos principais empreendimentos destinam-se a facilitar o escoamento da agropecuária modernizada do Centro-Oeste, na Amazônia meridional e no leste do Pará. O centro e o sul do Mato Grosso do Sul já estão conectados aos portos de Santos e Paranaguá por meio das ferrovias Noroeste do Brasil, Novoeste e Ferropar. Os trilhos da Ferronorte alcançaram a porção setentrional do Mato Grosso do Sul e, numa segunda etapa, devem atingir Cuiabá e Porto Velho. O ramal ferroviário Cuiabá-Santarém é um projeto de longo prazo, mas o trecho paraense da rodovia que liga essas duas cidades estão sendo asfaltado.
  A conclusão da segunda etapa da Ferronorte representará uma dupla conexão das áreas agrícolas do oeste do Mato Grosso e de Rondônia. Ao sul, a produção será escoada pelos portos de São Paulo e do Paraná, ou através da Hidrovia do Rio Paraná, rumo à Argentina. Ao norte, seguirá pela Hidrovia do Madeira até chegar ao Rio Amazonas, de onde seguirá para o oceano. A estrada de ferro também servirá para aliviar o fluxo que passa pela BR-364.
Ferrovia Ferronorte
  A Ferrovia Norte-Sul destina-se a escoar a produção agropecuária de uma vasta área que se estende pelo oeste baiano, Goiás, Tocantins e nordeste de Mato Grosso. A estrada de ferro está conectada às rodovias e ferrovias do Sudeste. Do outro lado, tanto a ferrovia quanto a hidrovia projetada interligam-se à Estrada de Ferro Carajás, que transporta minérios e grãos para o porto de Itaqui, no Maranhão. O novo eixo ferroviário em construção tende a reduzir o transporte de cargas pela BR-153.
Ferrovia Norte-Sul
  Os investimentos não estão ocorrendo apenas no ramo ferroviário. Desde 2007, o Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (DNIT) está preparando uma espécie de "PAC das hidrovias", que prevê investimentos de até R$ 18 bilhões nos próximos anos.
  A mais importante entre essas obras é a ampliação da Hidrovia Tietê-Paraná. A intenção do governo é ampliar o trecho navegável, dos atuais 800 para 2.000 km. A capacidade de transporte de carga aumentaria de 5 milhões para 30 milhões de toneladas por ano. Outra vantagem é que a hidrovia terminaria a uma distância de apenas 150 km do Porto de Santos (hoje essa distância é de 310 km).
HidroviaTietê-Paraná
  A segunda obra em análise é a ampliação da Hidrovia do Tocantins-Araguaia. O primeiro trecho da obra contempla a construção da eclusa de Tucuruí, que dará ao Rio Tocantins 700 km navegáveis. No futuro, pretende-se fazer mais três eclusas, elevando a distância navegável para 2.200 km.
  O terceiro projeto trata-se do projeto da implantação da Hidrovia Teles Pires-Tapajós, que demandará investimentos de R$ 5 bilhões para ampliar a navegabilidade do rio de 300 km para 1.500 km.
Hidrovia Tocantins-Araguaia
A INTEGRAÇÃO INTERMODAL
  A nova política de transportes não representa uma mera substituição da prioridade rodoviária pela ênfase nas ferrovias e hidrovias. A configuração de uma estrutura de "bacia de drenagem" capaz de contribuir para a inserção competitiva do país na economia globalizada depende da integração intermodal - ou seja, entre diferentes modos de transporte.
  As cargas devem ser transferidas, com eficiência e baixos custos, entre caminhões, vagões ferroviários e comboios fluviais. Isso exige a construção de terminais intermodais e terminais especializados junto às ferrovias, hidrovias e portos marítimos. Os trabalhos de ligações intermodais desenvolvem-se em todas as regiões. Um exemplo é a ligação da Ferrovia Norte-Sul ao Porto de Santos, que deverá facilitar o escoamento da safra de grãos do Centro-Oeste.
  Os portos marítimos e fluviais nos quais atracam embarcações de longo curso representam os elos principais entre o sistema nacional de transporte e o mercado mundial. Segundo o Ministério dos Transportes, existem no país 40 portos públicos, basicamente operados pelo setor privado. Do ponto de vista da movimentação de cargas, os maiores portos brasileiros são dois grandes terminais exportadores de minérios e produtos siderúrgicos: Tubarão, no Espírito Santo, e Itaqui, no Maranão. Ambos prestam serviços para a Companhia Vale do Rio Doce (Vale), a maior empresa mineradora do país e uma das maiores do mundo.
Os principais portos do Brasil
  No litoral Sudeste encontra-se a maior concentração de portos de intenso movimento, com destaque para o Porto de Santos, que movimenta principalmente produtos industrializados. Na Região Sul, destacam-se as exportações agropecuárias de Paranaguá e Rio Grande.
  Os custos portuários brasileiros chegaram a figurar entre os mais elevados do mundo, em razão da fraca mecanização das operações de embarque e desembarque e da intrincada burocracia administrativa. Faltam equipamentos para movimentar a carga, há poucos estacionamentos para os caminhões e os armazéns são insuficientes. Desse modo, congestionamentos e atrasos tornam-se rotina, o que dificulta a vida de quem exporta. Nesse setor, porém, a maior parte dos investimentos está sendo realizada pelo setor privado, que já controla cerca de 80% da movimentação portuária nacional.
Fila de carretas em direção ao Porto de Paranaguá - PR
  Os investimentos em infraestrutura de transporte estão gerando novos polos de crescimento econômico e acendem disputas pela atração de investimentos. No Nordeste, dois novos e modernos portos foram empreendimentos prioritários dos governos estaduais na década de 1990: Suape, em Pernambuco, e Pecém, no Ceará. Em torno deles, surgiram, graças a generosos incentivos fiscais, distritos industriais com vocação exportadora.
O TRANSPORTE INTRAURBANO
  As últimas décadas conheceram uma verdadeira explosão nas taxas de motorização individual. Entre os países desenvolvidos, essa taxa varia de cerca de 350 mil automóveis por mil habitantes da Dinamarca até 500 ou mais na Alemanha, Itália e nos Estados Unidos. Nos países subdesenvolvidos industrializados, ela é bem menor, em torno de 100 a 200 automóveis por mil habitantes, embora esteja crescendo em ritmo acelerado.
  Nas cidades brasileiras com mais de 60 mil habitantes, por exemplo, a taxa de motorização passou de 171 veículos/mil habitantes em 2003 para 206 veículos/mil habitantes em 2007. Por isso, e apesar dos programas  de redução de poluentes de veículos, a quantidade de poluentes emitidos pelos habitantes dessas cidades apresentou aumento de 2,3% no período.
  A poluição atmosférica causada pelos veículos acarreta distúrbios de saúde em vastas camadas da população. A poluição sonora e os acidentes de tráfego também fazem parte da lista dos problemas gerados pelo crescimento intensivo do transporte individual.
Ar bastante poluído na cidade de São Paulo - SP
  No mundo todo houve expansão da motorização individual, ao passo que o uso dos transportes públicos experimentou estagnação, ou mesmo declínio. Nas metrópoles brasileiras, carentes de adequados sistemas de transporte público, o automóvel tende a substituir os deslocamentos a pé ou em bicicletas.
  Desde a década de 1960, as estratégias voltadas para reduzir a crise do tráfego urbano concentraram-se na multiplicação das obras viárias: pistas expressas, vias elevadas, viadutos, túneis, anéis periféricos. Essas estratégias, extremamente caras, desfiguram grande parte da paisagem urbana, ampliaram o espaço consumido pelas infraestruturas de circulação, deterioraram áreas residenciais, parques e praças e fracassaram: o aumento da oferta de vias de tráfego estimulou o crescimento, num ritmo ainda maior, da quantidade de veículos e das distâncias percorridas.
A falta de investimentos em transporte público, obriga a população a andar em ônibus cada vez mais lotados nas grandes cidades
  A experiência do passado recente revelou que novas infraestruturas de circulação geram seus próprios congestionamentos. Assim, surgiram propostas para enfrentar o desafio do tráfego urbano que buscam combinar investimentos nos transportes de massa com restrições ativas à circulação de veículos particulares. No Brasil, as experiências de limitação do tráfego de automóveis abrangem principalmente proibições parciais de circulação, por meio de sistemas de rodízios. O automóvel, antigo ícone da liberdade de deslocamento, tornou-se símbolo das mazelas da vida urbana.
FONTE: Terra, Lygia. Conexões: estudos de geografia geral e do Brasil / Lygia Terra, Regina Araújo, Raul Borges Guimarães. -- 1. ed. -- São Paulo: Moderna, 2010.

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