quinta-feira, 17 de novembro de 2022

BUTÃO: O PAÍS DA FELICIDADE

  Butão, oficialmente chamado Reino do Butão, é um país asiático localizado no sul do continente, entre a China e a Índia. A sua capital é Thimphu, e seu território não possui saída para o mar. O território de Butão apresenta como principal feição de relevo a cordilheira do Himalaia, que se estende a oeste e ao norte do país, condicionando a presença de terrenos bastante elevados e acidentados, além de uma diversidade climática.

  É um dos países menos populosos da Ásia, com uma estimativa de população para 2022 de 853.557 habitantes, a maioria dos quais vive na zona rural. O setor primário, com destaque para a mineração, e a indústria desempenham um papel importante na economia do país, em conjunto com a energia hidrelétrica, tanto utilizada no território nacional, quanto exportada para a Índia.

Mapa do Butão

HISTÓRIA

  A história política do Butão está intimamente ligada à sua história religiosa e as relações entre as diferentes escolas monásticas e mosteiros. A tradição situa o início da sua história no século VII, quando o rei tibetano Songtsen Gampo construiu os primeiros templos budistas nos vales de Paro e de Bumthang. No século VIII, é introduzido o budismo tântrico pelo Guru Rimpoché, "O Mestre Precioso", considerado o segundo Buda na hierarquia tibetana e butanesa.

  Os séculos IX e X são de grande turbulência política no Tibete e muitos aristocratas vieram instalar-se nos vales do Butão, onde estabeleceram o seu poder feudal. Nos séculos seguintes, a atividade religiosa começa a adquirir grande vulto e são fundadas várias seitas religiosas, dotadas de poder temporal por serem protegidas por facções da aristocracia.

  No século XII é fundada a escola budista de Drukpa Kagyupa, que continua a ser a forma dominante do budismo hoje. No Butão estabeleceram-se dois ramos, embora antagônicos, da seita Kagyupa.

  A sua coexistência será interrompida pelo príncipe tibetano Ngawang Namgyel que, fugido do Tibete, no século XII, unifica o Butão com o apoio da seita Drukpa, tornando-se o primeiro Shabdrung do Butão, "aquele a cujos pés todos se prostram". Ele mandaria construir as mais importantes fortalezas do país, que tinham como função suster as múltiplas invasões mongóis e tibetanas.

Gelephu - com uma população de 10.703 habitantes (estimativa 2022) é a quarta cidade mais populosa do Butão

  A consolidação do Butão ocorreu em 1616, quando Ngawana Namgyal, lama tibetano, derrotou três invasões tibetanas, subjugou as escolas religiosas rivais e codificou um intrincado e abrangente sistema jurídico, estabelecendo-se como governante.

  Desde sempre que o Butão só mantinha relações com os seus vizinhos na esfera cultural do Tibete (Tibete, Ladaque e Siquim) e com o Reino de Cooch Behar, na sua fronteira sul.

  Com a presença dos ingleses na Índia, no século XIX, e após alguns conflitos relacionados com direitos de comércio, dá-se a Guerra de Duar, em que o Butão perdeu uma faixa de terra fértil ao longo da sua fronteira sul. Ao mesmo tempo, o sistema político vigente enfraquecia por causa da influência dos governadores regionais, que se tornava cada vez mais poderosa. O país corria o risco de se dividir novamente em feudos.

  Em 1907, Ugyen Wangchuck foi eleito como o governante hereditário do Butão, coroado em 17 de dezembro de 1907, e instalado como chefe de Estado Druk Gyalpo (Rei Dragão). Em 1910, o rei Ugyen e os britânicos assinaram o Tratado de Punakha, que prevê que a Índia britânica não iria interferi nos assuntos internos do Butão caso o país aceitasse o conselho inglês nas suas relações externas. Quando da morte do Rei Dragão, em 1926, seu filho, Jigme Wangchuck tornou-se o novo governante.

Samdrup Jongkhar - com uma população de 10.1253 habitantes (estimativa 2022) é a quinta cidade mais populosa do Butão

  Na época da independência da Índia, em 1947, o novo governo indiano reconheceu o Reino do Butão como um país independente. Na década de 1950, o Butão começa lentamente a sair do seu isolamento com um programa de desenvolvimento planejado. O país torna-se membro das Nações Unidas em 1971.

  Em 1972, Jigme Singye Wangchuck ascendeu ao trono, tendo apenas 16 anos. Ele enfatizou a educação moderna, a descentralização da administração, o desenvolvimento da hidroeletricidade e do turismo, além da melhoria de condições no campo. O monarca butanês ficou conhecido por sua filosofia de desenvolvimento chamada de "Felicidade Interna Bruta", na qual acredita que há muitas dimensões do desenvolvimento onde as metas econômicas não são suficientes. Satisfeito com o processo de democratização do Butão, abdicou em dezembro de 2006, em vez de esperar até a promulgação da nova Constituição, em 2008. Seu filho, Jigme Khesar Namgyel Wangchuck, é o atual rei.

Gangkhar Puensum - ponto mais elevado do Butão

GEOGRAFIA

  O Butão é um país interior, localizado no sul da Ásia. É uma nação montanhosa, encravada nas montanhas do Himalaia. Os picos do norte atingem mais de 7 mil metros de altitude, e o ponto mais elevado é o Gangkhar Puensum, com 7.570 metros. A parte sul do território butanês possui altitudes menores e contém vários vales férteis densamente florestados, que escoam para o rio Bramaputra, na Índia. A maioria da população do país vive nas terras altas centrais. A capital, Timphu, situa-se na parte ocidental destas terras altas.

Wangdue Phodrang - com uma população de 9.722 habitantes (estimativa 2022) é a sexta cidade mais populosa do Butão

  O clima varia de tropical, no sul, a um clima de invernos frescos e verões quentes nos vales centrais, com invernos severos e verões frescos nas montanhas do Himalaia.

  As Montanhas Negras, na região central do Butão, formam um divisor de águas entre dois grandes sistemas fluviais: o Mo Chhu e o Drangme Chhu. Pontos nas Montanhas Negras variam entre 1.500 e 4.925 metros. Caudalosos rios esculpiram desfiladeiros profundos nas áreas mais baixas da montanha. As florestas das montanhas centrais do Butão consistem em florestas de coníferas subalpinas orientais, em altitudes mais elevadas, e florestas folhosas nas proximidades do Himalaia, em altitudes mais baixas.

  O Butão é dividido em três regiões geográficas: o Himalaia, no norte; as colinas e vales do centro; e sopé e planícies ao sul.

Confluência dos rios Mo Chhu (à esquerda) e o Pho Chhu (à direita). O Mo Chhu é o maior rio do Butão

ECONOMIA

  A economia do Butão é essencialmente baseada na agricultura, na extração florestal e na venda de energia hidroelétrica para a Índia. A agricultura, essencialmente de subsistência, e a criação animal são os meios de vida para 60% da população butanesa. A presença de altas montanhas dificulta e encarece a instalação de infraestruturas. É uma das menores economias do mundo, e o país depende consideravelmente da Índia, que lhe fornece ajuda financeira.

  Em janeiro de 2004, o Butão aderiu ao SAFTA (Acordo de Livre-Comércio do Sul da Ásia). No mesmo ano, tornou-se o primeiro país do mundo a banir o fumo e a venda de tabaco.

  Em 2008, devido à retração econômica da Índia, a venda de energia elétrica àquele país teve um decréscimo. Mesmo assim, novos projetos hidrelétricos instalados gerou várias ofertas de emprego e contribuiu para dar sustentabilidade ao crescimento econômico butanês.

Punakha - com uma população de 6.799 habitantes (estimativa 2022) é a sétima cidade mais populosa do Butão

CULTURA

  O Butão possui uma herança cultural rica e única, em grande parte, permanecido intacta devido ao seu isolamento do resto do mundo até o início dos anos 1960. A cultura butanesa é uma das principais atrações para os turistas. Os costumes tradicionais do Butão estão profundamente impregnados em sua herança budista. O hinduísmo também serviu como influência e referência nos costumes de tradição e cultura butanesa, predominantemente nas regiões do sul. O governo butanês vem medindo esforços para preservar e manter a cultura atual e as tradições do país.

  A cultura butanesa já foi definida como sendo, simultaneamente, patriarcal e matriarcal, e o membro que detém a maior estima é considerado o chefe da família. O Butão também já foi descrito como tendo um regime feudal e caracterizado pela ausência de uma forte estratificação social.

  Todos os estados do Butão possuem um festival chamado Tshechu. É um festival de danças e cerimônias religiosas durante um período de dez dias (o nome Tshecu significa "10 dias"), sendo o maior deles o "Paro Tshecu".

Apresentação cultural no Estádio Changlimithang

  A arquitetura do Butão permanece distintamente tradicional, empregando métodos de construção locais, com materiais como acácia, pique, pedras e madeiras, trabalhadas em torno das janelas e telhados. A arquitetura tradicional não utiliza pregos ou barras de ferro em suas construções. Uma característica da arquitetura da região é um tipo de castelo (ou fortaleza) conhecida como Dzong. Desde os tempos antigos, os Dzongs serviram como centros religiosos e seculares de administração para seus respectivos distritos.

  A arquitetura butanesa serviu de inspiração e foi adotada em algumas construções em outros países, como nos Estados Unidos, onde a Universidade do Texas, em El Paso, usou-a como base na construção de seus prédios no campus.

Típica casa butanesa em Paro

  Dentro das festas mais importantes que celebra-se no país, encontra-se a denominada "bendição dos arrozais", com data na primavera. Nessa época, realiza-se uma larga procissão, que leva homens e mulheres a descer da colina até o primeiro campo regado, pois se mantém os outros secos até passar o evento. Uma vez embaixo, os homens tiram as roupas e as mulheres arremessam copos de barro.

  A continuação termina com uma batalha na água, em que ganham as mulheres enchendo aos camponeses do campo, em um gesto que consideram como de boa sorte para uma colheita abundante.

Jakar - com uma população de 6.778 habitantes (estimativa 2022) é a oitava cidade mais populosa do Butão

  Outro costume singular do Butão é a maneira que celebram as bodas. A cerimônia dura vários dias e começa no umbral do dzong, quando a futura sogra recebe a esposa e oferece-lhe a cinta branca augural. A esposa recebe a benção do lama no pátio do dzong e logo dirige-se ao quarto, onde fica esperando o marido.

  Posteriormente, sentam-se juntos ao altar e servem o chá de açafrão e arroz doce. Logo, o lama oferece ao casal, que logo após prová-lo recebe a benção. Depois, cada convidado oferece uma cinta augural ao esposo e outra a esposa.

ALGUNS DADOS SOBRE BUTÃO
NOME: Reino do Butão
FORMAÇÃO: por volta do século VII
CAPITAL: Thimphu
Thimphu vista do lado sul da cidade
GENTÍLICO: neerlandês ou holandês
LÍNGUA OFICIAL: butanês, butanense, butani, butâni
GOVERNO: Monarquia Constitucional Parlamentar
LOCALIZAÇÃO: Ásia Meridional
ÁREA: 47.000 km² (129º) - inclui apenas os Países Baixos. O Reino dos Países Baixos cobre uma área de 42.437 km².
POPULAÇÃO (ONU - Estimativa para 2022): 793.675 habitantes (161°)
DENSIDADE DEMOGRÁFICA: 16,88 hab./km² (203°). Obs: a densidade demográfica, densidade populacional ou população relativa é a medida expressa pela relação entre a população total e a superfície de um determinado território.
CRESCIMENTO POPULACIONAL (ONU - Estimativa 2022): 1,43% (92°). Obs: o crescimento vegetativo, crescimento populacional ou crescimento natural é a diferença entre a taxa de natalidade e a taxa de mortalidade de uma  determinada população.
CIDADES MAIS POPULOSAS (Estimativa para 2022):
Thimphu:124.379 habitantes
Thimphu - capital e cidade mais populosa do Butão
Phuntsholing: 30.031 habitantes
Phuntsholing - segunda maior cidade do Butão
Paro: 12.430 habitantes
Paro - terceira maior cidade do Butão
PIB (FMI - 2021): US$ 2,582 bilhões (163º). Obs: o PIB (Produto Interno Bruto), representa a soma (em valores monetários) de todos os bens e serviços finais produzidos numa determinada região (quer sejam países, estados ou cidades), durante um período determinado (mês, trimestre, ano).
PIB PER CAPITA (FMI 2021): US$ 3.423 (120°). Obs: o PIB per capita ou renda per capita é o Produto Interno Bruto (PIB) de um determinado lugar dividido por sua população. É o valor que cada habitante receberia se toda a renda fosse distribuída igualmente entre toda a população.
Mapa-múndi mostrando a renda per capita dos países em 2019
IDH (ONU - 2021): 0,666 (127°). Obs: o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) é uma medida comparativa usada para classificar os países pelo seu grau de desenvolvimento econômico e a qualidade de vida oferecida à população. Este índice é calculado com base em dados econômicos e sociais, variando de 0 (nenhum desenvolvimento humano) a 1 (desenvolvimento humano total). Quanto mais próximo de 1, mais desenvolvido é o país. No cálculo do IDH são computados os seguintes fatores: educação (anos médios de estudos), longevidade (expectativa de vida da população) e PIB per capita. A classificação é feita dividindo os países em quatro grandes grupos: baixo (de 0,0 a 0,500), médio (de 0,501 a 0,800), elevado (de 0,801 a 0,900) e muito elevado (de 0,901 a 1,0).
Mapa-múndi representando as quatro categorias do Índice de Desenvolvimento Humano, baseado no relatório publicado em 15 de dezembro de 2020, com dados referentes a 2019
EXPECTATIVA DE VIDA (OMS - 2021): 65,79 anos (141º). Obs: a expectativa de vida refere-se ao número médio de anos para ser vivido por um grupo de pessoas nascidas no mesmo ano, se a mortalidade em cada idade se mantém constante no futuro, e é contada da maior para a menor.
Planisfério com a expectativa de vida dos países
TAXA DE NATALIDADE (ONU - 2021): 27,7/mil (58º). Obs: a taxa de natalidade é a porcentagem de nascimentos ocorridos em uma população em um determinado período de tempo para cada grupo de mil pessoas, e é classificada do maior para o menor.
Mapa com a taxa de natalidade dos países
TAXA DE MORTALIDADE (CIA World Factbook 2021): 12,7/mil (41º). Obs: a taxa de mortalidade ou coeficiente de mortalidade é um índice demográfico que reflete o número de mortes registradas, em média por mil habitantes, em uma determinada região por um período de tempo e é classificada do maior para o menor.
TAXA DE MORTALIDADE INFANTIL (CIA World Factbook - 2021): 24,06/mil (138°). Obs: a taxa de mortalidade infantil refere-se ao número de crianças que morrem no primeiro ano de vida entre mil nascidas vivas em um determinado período, e é classificada do menor para o maior.
Mapa da taxa de mortalidade infantil no mundo
TAXA DE FECUNDIDADE (CIA World Factbook 2021): 1,80 filhos/mulher (153º). Obs: a taxa de fecundidade refere-se ao número médio de filhos que a mulher teria do início ao fim do seu período reprodutivo (15 a 49 anos), e é classificada do maior para o menor.
Mapa da taxa de fecundidade de acordo com o CIA World Factbook de 2020
TAXA DE ALFABETIZAÇÃO (CIA World Factbook - 2021): 62,8% (180º). Obs: essa taxa refere-se a todas as pessoas com 15 anos ou mais que sabem ler e escrever.
Mapa da taxa de alfabetização no mundo em 2020
TAXA DE URBANIZAÇÃO (CIA World Factbook - 2021): 42,3% (144°). Obs: essa taxa refere-se a porcentagem da população que mora nas cidades em relação à população total.
Mapa da taxa de urbanização no mundo em 2020
MOEDA: Ngultrum
RELIGIÃO: estima-se que entre dois terços e três quartos da população do Butão seguem o Budismo Vajrayana (conjunto de escolas budistas esotéricas), que também é a religião do Estado. Cerca de um quarto a um terço são seguidores do hinduísmo. Outras religiões correspondem a menos de 1% da população. O atual quadro legal, em princípio, garante a liberdade de religião. Entretanto, o proselitismo é proibido por uma decisão do governo real e pela interpretação judicial da Constituição.
Mosteiro de Taktsang, um dos símbolos do Butão
DIVISÃO: o Butão está dividido em quatro zonas: Oriental, Sul, Central e Ocidental (atualmente não possuem mais caráter oficial). Para fins administrativos, as zonas estão subdivididas em 20 distritos. Os distritos estão divididos em subdistritos. No nível básico, os grupos de vilas formam um círculo eleitoral chamado gewog e são administrados pelo gup, que é eleito pelo povo. No mapa abaixo, estão as Zonas: Oriental (azul), Sul (rosa), Central (amarelo) e Ocidental (verde). Os distritos estão numerados de 1 a 20: 1. Bumthang, 2. Chukha, 3. Dagana, 4. Gasa, 5. Haa, 6. Lhuntse, 7. Mongar, 8. Paro, 9. Permagatshei, 10. Panakha, 11. Samdrup Jongkhar, 12. Samtse, 13. Sarpang, 14. Timphu, 15. Trashiygang, 16. Trashiyangste, 17. Trongsa, 18. Tsirang, 19. Wangdue Phodrang, 20. Zhemgang.
Mapa com a divisão administrativa do Butão
FONTES:

Brasil Escola: https://brasilescola.uol.com.br/geografia/butao.html

Wikipédia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Butão

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

A "ERA DE OURO" DO CAPITALISMO: A CONSTRUÇÃO DO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL

   O capitalismo é um sistema econômico baseado na propriedade privada, na acumulação de capital e na procura pelo lucro. A obtenção do lucro e a acumulação do capital dentro do capitalismo dão-se por meio da posse privada dos meios de produção, que pode manifestar-se pela posse da terra ou de grandes instalações que permitam a produção de certa mercadoria.

  O capitalismo surgiu em um processo muito longo, que se iniciou na transição histórica para a Idade Média Moderna e no desenvolvimento do mercantilismo, entendido por muitos como a etapa inicial do capitalismo comercial. A consolidação desse sistema econômico ocorreu no século XIX, com o desenvolvimento da indústria por meio da Revolução Industrial.

Um pôster da Industrial Workers of the World (1911), mostrando a Pirâmide do Sistema Capitalista

A "era de ouro" do capitalismo

  Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo vivenciou uma espécie de Terceira Guerra - a Guerra Fria, que dominou o cenário internacional da segunda metade do século XX, até a queda do muro de Berlim. Por um longo período a humanidade se viu na iminência de uma outra tragédia nuclear, no âmbito do tensionamento ideológico entre os Estados Unidos e a URSS, mas que não correspondia necessariamente à situação mundial objetiva.

  A experiência da guerra tinha sido devastadora para as economias dos países capitalistas que haviam se envolvido nela, e eles buscavam uma saída comum para a crise por meio de práticas que regulassem o mercado internacional. A Conferência de Bretton Woods foi um passo decisivo nesse sentido. Em 1º de julho de 1944, 44 países reuniram-se nos Estados Unidos com o objetivo de repensar a economia mundial. Essa reunião resultou no Acordo de Bretton Woods.

Reunião que selou o Acordo de Bretton Woods

  Com uma inflação entre 200% e 400%, o lucro dos Estados Unidos foi enorme, pois vendiam produtos "com valor corrigido pela inflação em troca de ouro com valor congelado", promovendo uma enorme transferência de ouro para o país. Com o objetivo de garantir a reconstrução europeia e o seu desenvolvimento, as novas instituições criadas no Acordo de Bretton Woods - o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (Bird) - passaram a ser uma espécie de fiadoras dessa reconstrução.

  Após o período inicial de crises pós-Segunda Guerra Mundial, houve uma fase de expansão contínua do capitalismo, que foi denominada por muitos estudiosos de "a era de ouro" do capitalismo. Segundo Eric Robsbawm (1917-2012), o período entre 25 e 30 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial foi marcado por "extraordinário crescimento econômico e transformação social", "anos que provavelmente mudaram de maneira mais profunda a sociedade humana que qualquer outro período de brevidade comparável". Esse período teria durado até o início da década de 1970, quando se iniciou uma nova era, "de decomposição, incerteza e crise - e, com efeito, para grandes áreas do mundo, como a África, a ex-URSS e as partes anteriormente socialistas da Europa, de catástrofe".

Andar dos operadores da Bolsa de Valores de Nova York, em 1963

  O grande crescimento econômico conduziu a uma economia praticamente única, mundial, cada vez mais integradora, transnacional, para além das fronteiras políticas dos Estados. Essa situação relativamente estável durou até meados dos anos 1970, quando o sistema internacional entrou num período de crises de natureza política e econômica que se estendeu pelas décadas seguintes, afetando várias partes do mundo, ainda que de modos e graus diferentes, gerando problemas de desemprego generalizado, enorme desigualdade de renda e graves crises econômicas.

  Até esse momento a divisão desigual do mundo tinha sido administrada numa perspectiva de se evitar o choque armado entre Estados Unidos e URSS, e a Guerra Fria era tratada como uma espécie de Paz Fria, ainda que fora dos poderes de decisões fundamentais que poderiam levar ao confronto bélico, as disputas continuassem a ser travadas. O armamento nuclear da URSS logo no início do pós-guerra e de outros países como China, Israel, África do Sul e França (dentro de uma política de corrida armamentista), confrontados com a potência nuclear estadunidense, parecia fazer de uma nova guerra uma impossibilidade, pelo caráter suicida que envolvia qualquer potência que deflagrasse uma nova guerra. Contudo, a ameaça nuclear era uma realidade que dominava o mundo, e por vezes pareceu estar muito próxima da realidade, como em 1962, por ocasião da crise dos mísseis cubanos.

Fotografia aérea mostrando base de lançamento de mísseis em Cuba, novembro de 1962

  O período de desenvolvimento da economia mundial entre os 25 e 30 anos  do pós-Segunda Guerra Mundial teve os Estados Unidos como o país mais rico, ainda que não tenha se desenvolvido tanto economicamente em relação a como era antes da guerra. Esse desenvolvimento se operou de forma muito mais expressiva nos outros países, com maiores taxas de crescimento em relação à sua realidade do pré-guerra.

  A era de ouro é caracterizada pelo avanço das pesquisas científicas em relação ao período precedente, que modificou significativamente a vida das pessoas, com mais desenvolvimento e novos meios de comunicação, mudanças no sistema de produção de alimentos e no consumo e na produção da indústria de máquinas e da indústria farmacêutica. Os processos de produção em diferentes áreas, passaram a ser cada vez mais mecanizados e a contar cada vez mais com novas tecnologias, que aumentaram a quantidade de produtos, ao mesmo tempo em que se diminuiu cada vez mais a necessidade de pessoas nos processos produtivos, evidenciando as contradições do sistema. Esse período ficou marcado pela reestruturação do sistema capitalista, pelas moedas estáveis, pelo livre-comércio, pela movimentação de capitais e pelos avanços de sua internacionalização, numa economia capitalista mundial que se desenvolveu em torno dos Estados Unidos.

Mapa das rotas aéreas comerciais de todo mundo no mundo atual

O Estado de bem-estar social

  As transformações do capitalismo após o Acordo de Bretton Woods, permitiu, em princípio, a ação dos Estados para o desenvolvimento e a consolidação de um sistema de proteção que se convencionou designar de Welfare State - Estado de bem-estar social.

  As demandas sociais, face às instabilidades e aos problemas gerados pelo capitalismo em seu processo de expansão, levaram a uma participação maior dos Estados nas economias mediante a criação de políticas públicas fiscais e monetárias e serviços, com vistas à proteção social em diferentes frentes: combate à pobreza, melhores condições de trabalho, direito à saúde, à educação e garantia de emprego, por exemplo.

  O Estado de bem-estar social, em sua concepção, agregava aspectos relacionados à provisão, pelo Estado, de direitos individuais e coletivos, como liberdade, igualdade e justiça social, e esteve ligado aos países capitalistas do pós-Segunda Guerra Mundial na Europa, ainda que tenha também se desenvolvido em outras localidades do globo com maior ou menor intensidade à época.

  A intervenção estatal, por meio da promoção do Estado de bem-estar social,  fez-se acompanhar de uma intervenção mais efetiva do Estado na economia, como instância reguladora das atividades produtoras, com vistas à geração de recursos para a manutenção das garantias sociais.

  A chamada "era de ouro" viu florescer no seu auge, por volta dos anos de 1960, o ápice do Estado de bem-estar social (favorecido pelos investimentos estadunidenses no pós-Segunda Guerra), que entrou em crise nas décadas seguintes, pelos desdobramentos dos problemas gerados pelo desenvolvimento do capitalismo.

  A grande questão a partir de então era qual seria o papel do Estado: amplo, garantidor das proteções sociais; ou mínimo, legando essas proteções à iniciativa privada e às regulações do mercado. O Estado de bem-estar social, apesar de suas inegáveis conquistas, pode ser entendida como uma espécie de "pacto" do pós-guerra, pelo qual a capacidade de mobilização da classe trabalhadora foi fragilizada, propiciando certo estado favorável para a expansão capitalista. Para muitos estudiosos, o Welfare State somente busca resolver os problemas criados pelo próprio sistema capitalista.

Charge ironizando o Welfare State (Estado de bem-estar social)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

REGONI, Glória. Estado de bem-estar. IN: BOBBIO, Norberto et. al. Dicionário de política. 11. ed. Brasília: Editora UnB, 1998.

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

A GRILAGEM DE TERRAS NO BRASIL

   Os processos ilícitos de concessão de títulos de posse de terras, por meio do qual os grileiros transformam em sua propriedade as áreas que invadiram - a chamada grilagem -, representam o avanço criminoso de certos setores econômicos sobre as terras dos povos e comunidades tradicionais.

  No Brasil, grilagem de terras é a falsificação de documentos para, ilegalmente, tomar posse de terras devolutas ou de terceiros. O termo também designa a venda de terras pertencentes ao poder público ou de propriedade particular mediante falsificação de documentos de propriedade da área. O agente de tal atividade é chamado grileiro.

  O termo "grilagem" provém de uma causa usada para o efeito do envelhecimento forçado de papéis, que consiste em colocar escrituras falsas dentro de uma caixa com grilos, de modo a deixar os documentos amarelados (devido aos excrementos dos insetos) e roídos, dando-lhes uma aparência antiga e, por consequência, mais verossímil.

Charge mostrando um documento falsificado de propriedade da terra que será usado no sistema de grilagem de terras

  Grilagem é a usurpação da terra pública, dando-lhe a aparência particular, ou seja, indica "um ou mais procedimentos de irregular ou ilegal ocupação de terra pública, com o objetivo da sua apropriação privada". Grilagem não é apenas a ocupação, mas a ocupação qualificada pela intenção deliberada de se tornar dono da terra pública, como se esta fosse terra particular.

  Os grileiros de terras produzem antecipadamente estratégias que são referendadas pelo Estado e pelo Poder Judiciário nas legislações fundiárias de cada período histórico da formação territorial brasileira. As fronteiras entre legalidade e ilegalidade instituídas pelo Estado nos ordenamentos jurídicos são definidas no atendimento aos interesses de monopolização de terras pelos grileiros, visando efetivar seu processo de constituição como classe de propriedade de terra. Assim, o Estado produz, no ordenamento jurídico, a legalização de estratégias de grilagem realizadas previamente.

  Os grileiros-proprietários de terra produzem as políticas fundiárias a seu favor, fazendo do Estado instrumento essencial de seus processos de legitimação da propriedade privada grilada. Ou seja, as noções de legal e ilegal são transmitidas no Estado brasileiro, atendendo fundamentalmente aos interesses dos grileiros-proprietários de terra.

Esquema de como ocorre a grilagem de terras

  No Brasil, o total de terras sob suspeita de grilagem é de aproximadamente 100 milhões de hectares - quatro vezes a área do estado de São Paulo.

  Dentre os fatores que facilitam a falsificação de títulos de terras, estão a falta de um sistema unificado de controle de terras, e a natureza contraditória dos cartórios - serviço público do Estado, delegado a exploração de caráter privado.

  O artigo 50 da Lei nº 6.766/1979 (também conhecida como Lei Lehmann), que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano, pune a prática de grilagem com prisão e pagamento de multa.

  Já a Lei nº 11.952/2009, derivada da Medida Provisória nº 458/2009 (conhecida como "MP da Grilagem"), possibilita a regularização da ocupação ilegal de terras de propriedade da União situadas na Amazônia Legal. Em 18 de outubro de 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) 4.269 e restringiu os critérios para regularização de terras conforme tratados citados na Lei nº 11.952/2009.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DEVISATE, Rogério Reis. Grilagem das Terras e da Soberania. Rio de Janeiro. Editora Imagem Art Studio, 2017.

FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. 5ª ed. Ed. Globo, 2012.

PRADO JÚNIOR, Caio. A revolução brasileira. a questão agrária no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

PRIETO, Gustavo Francisco Teixeira. Rentismo à brasileira, uma via de desenvolvimento capitalista: grilagem, produção do capital e formação da propriedade privada da terra. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 2016.

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

OS RIOS E A VIDA NA AMAZÔNIA

  Amazônia (também chamada Floresta Amazônica, Selva amazônica, Floresta Equatorial da Amazônia, Floresta Pluvial ou Hileia Amazônica), é uma floresta latifoliada úmida que cobre a maior parte da Bacia Amazônica na América do Sul. Esta bacia abrange 7 milhões de quilômetros quadrados, dos quais 5 milhões e meio de quilômetros quadrados são cobertos pela floresta tropical. Esta região inclui territórios pertencentes a nove nações. A maioria da floresta está dentro do território brasileiro.

  No Brasil, por efeitos de governo e economia, a Amazônia é delimitada por uma área chamada "Amazônia Legal", definida a partir da criação da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), em 1966. É chamada também de Amazônia o bioma que, no Brasil, ocupa 49,29% do território e abrange três das cinco divisões regionais do país (Norte, Nordeste e Centro-Oeste).

Mapa mostrando em destaque a região que compreende a Amazônia Total

   Na Amazônia, a vida e a economia acompanham o ciclo das águas. Para as comunidades tradicionais, conhecer a dinâmica dos rios é fundamental para torná-los fonte de subsistência. O rio é também o caminho, às vezes único, para se deslocar na floresta ou entre vilas e cidades. Pelos grandes rios são transportados passageiros, pequenas cargas e milhares de toneladas de produtos agrícolas e minerais para exportação.

  Além de serem vias de escoamento da produção destinada ao consumo regional e à exportação, os rios são utilizados para transportar produtos importados, como fertilizantes, produtos químicos, materiais elétricos e automóveis, entre outros.

Parque Nacional da Amazônia, no estado do Pará

Principais rios da Região Norte

  • Rio Amazonas

  O Amazonas é o maior rio em volume de água do mundo. Com 6.992,06 quilômetros de extensão, percorre o norte da América do Sul. Possui mais de mil afluentes, sendo que os principais são o Madeira, o Negro e o Japurá. Possui também o maior fluxo de água por vazão do mundo.

  O rio Amazonas tem sua origem na nascente do rio Apurimac (alto da parte ocidental da cordilheira dos Andes), no sul do Peru, e deságua no oceano Atlântico. Ao longo de seu percurso, ainda no Peru, recebe o nome de Carhuasanta, Lioqueta, Apurimac, Ene, Tambo, Ucayali e Amazonas. Ele entra no território brasileiro com o nome de Solimões e, finalmente em Manaus, após a junção com o rio Negro, assim que suas águas se misturam, ele recebe o nome de Amazonas. Sua foz é classificada como mista, por apresentar uma foz em estuário e em delta.

  O barrento Solimões é rico em minerais e microrganismos, o que favorece a reprodução e a variedade de peixes.

O Encontro das Águas na confluência dos rios Negro e Solimões, próximo à cidade de Manaus (AM)

  • Rio Negro

  O rio Negro é o maior afluente da margem esquerda do rio Amazonas. É o sétimo maior rio do mundo em volume de água. Tem sua origem entre as bacias dos rios Orinoco e Amazônica. Conecta-se com o Orinoco através do Canal do Cassiquiare. Na Colômbia, onde está localizada sua nascente, é chamado de rio Guainia. Seus principais afluentes são o rio Branco e o rio Vaupés. Drena a região leste dos Andes na Colômbia. Após passar por Manaus, une-se ao rio Solimões, e a partir dessa união, este último passa a se chamar amazonas.

  Sua coloração escura se deve à decomposição de sedimentos orgânicos, que tornam sua água ácida, com menor variedade de peixes.

Ancoradouro de avionetas no rio Negro, em Manaus (AM)

  • Rio Madeira

  O rio Madeira nasce com o nome de rio Beni, na Cordilheira dos Andes, Bolívia. Ele desce das cordilheiras em direção ao norte, recebendo o rio Mamoré-Guaporé e tornando-se o rio Madeira - um rio de planície que traça a divisória entre o Brasil e a Bolívia. No território brasileiro banha os estados de Rondônia e Amazonas. Possui uma extensão de 3.315 quilômetros e é um dos principais afluentes do rio Amazonas.

  O rio Madeira recebe este nome pois, no período de chuvas, seu nível sobe e inunda grandes porções da planície florestal, trazendo troncos e restos de madeira da floresta, época em que são negociadas pelos madeireiros e transportadas às custas do rio.

  Parte da produção de soja e milho do Centro-Oeste segue para exportação pelo rio Madeira.

Rio Madeira em Porto Velho (RO)

Principais atividades econômicas

  • Pesca

  Os peixes são a principal fonte de proteína animal das populações ribeirinhas. Nos rios da Região Norte, são produzidos 140 mil toneladas de pescados, cerca de 56% da pesca extrativa continental brasileira. A melhor época para a prática da pesca é de outubro a março, quando o nível do rio está baixo.

Pesca do pirarucu, no rio Amazonas

  • Agricultura de várzea

  Os ribeirinhos praticam agricultura nas margens dos rios porque o solo, fertilizado pelos sedimentos trazidos nas cheias, é mais rico do que no restante da floresta. Plantar nesse ambiente, no entanto, exige conhecimentos e técnicas específicas.

  Além das culturas de solo encharcados, como a juta e a malva, os ribeirinhos desenvolvem plantações em canteiros suspensos. Assim, o cultivo de itens de subsistência, como hortaliças, não precisa ser interrompido durante as cheias.

Agricultura de várzea na região da Amazônia

  • Rede logística

  Os rios são um meio eficiente para transportar grandes quantidades de cargas a baixo custo. Além de integrar cidades e regiões no território nacional, eles fazem a integração do Brasil com outros países, através de corredores de circulação de mercadorias.

  Cada comboio de barcaças pode transportar até 32 mil toneladas de carga, o equivalente à capacidade de carga de 850 caminhões.

  Na Bacia Amazônica são feitas, anualmente, 14 milhões de viagens regulares através de 317 linhas hidroviárias de passageiros.

Barcos atracados no porto de Manaus

  • Minas de ferro

  O minério de ferro extraído no Pará é o produto mais transportado pelos rios da Bacia Amazônica.

  O Projeto Grande Carajás (PGC) é um projeto de extração mineral, de produção agrícola, de transformação e beneficiamento mineral e de produção energética, que também inclui infraestrutura logística e de comunicação de uma imensa região do Meio-Norte brasileiro.

  Estende-se por cerca de 900 mil km², numa área que corresponde a um décimo do território brasileiro, e que é cortada pelas bacias dos rios Xingu, Tocantins e Araguaia, e engloba terras do leste do Pará, norte de Tocantins e sudoeste, centro e norte do Maranhão.

Vista aérea de uma das minas da Serra dos Carajás, no Pará

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

SOUSA, Rafaela. "Amazônia". Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol. com.br/brasil/amazonia.htm. Acesso em: 18 de outubro de 2022.

TOCANTINS, Leandro. O Rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia. Rio De Janeiro: Livraria J. Olympio, 1983.

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

A DECLARAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

   O dia 10 de dezembro traz como marca o Dia Internacional dos Direitos Humanos e constitui-se em mais uma oportunidade de rejeitar que o trabalho digno é um direito humano fundamental. A data abriga a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos - DUDH -, documento que delineia os direitos humanos básicos, adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948.

  Nascida no pós-guerra, nos conflitos mais odiosos do mundo, a bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki e depois do terror dos campos de concentração nazistas, onde milhões de seres humanos foram cruelmente assassinados em nome da intolerância racial na Alemanha, a declaração veio para reconhecer que a dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e para desenvolver relações amistosas entre nações e promover a paz e a segurança no planeta.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos é um importante documento que estabelece os direitos básicos de todos ser humano

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

  No contexto da Revolução Francesa, a Assembleia Nacional promulgou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789. No título desse documento, encontram-se os termos homem e cidadão. Tais termos não se confundem: homem designa toda a humanidade, ao passo que cidadão indica a pessoa dotada de direitos políticos. Desse modo, a Declaração possuía o duplo objetivo de indicar os valores comuns a todas as pessoas, influenciando decisivamente a luta contra o absolutismo, e definir a forma de participação política dos cidadãos.

  Para compreendermos a letra desse documento, é importante entendermos as ideias que o geraram. A França no século XVIII era um Estado absolutista, e isso significa que o poder estava centralizado nas mãos do monarca. A classe burguesa possuía interesses conflitantes com essa ordem: no plano político, buscava a expressão de seus ideais, fundados na liberdade; na economia, almejava a superação da organização do trabalho em corporações, o que impedia o desenvolvimento da livre-iniciativa e da liberdade de concorrência; nas relações sociais, propunha uma nova moral; na área jurídica, defendia a autonomia da vontade.

Declaração dos Direitos Humanos e do Cidadão: o patriotismo revolucionário toma emprestado a iconografia familiar dos Dez Mandamentos

  Assim, o processo revolucionário, influenciado pela filosofia iluminista, questionou diversos aspectos da vida humana. É importante ressaltar que, apesar do teor da Declaração, a qual destacava a liberdade, a igualdade e a fraternidade, afirmando em seu primeiro artigo, que "Os homens nascem e são livres e iguais em direitos", um rol de pessoas esteve, na prática, excluído dos direitos nela preconizados, como as mulheres. Em reação a isso, a escritora francesa Olympe de Gouges, publicou, em 1791, a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã.

  A partir da Declaração de 1789, revoluções eclodiram em boa parte do mundo ocidental. Deve ser notado, contudo, que a Revolução Francesa consagrou direitos humanos de primeira geração (ou dimensão), consistentes na proteção do indivíduo contra os abusos do Estado. O valor primordial era a liberdade individual.

Preâmbulo da Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã de 1791

  Os direitos humanos possuem dimensões, ou seja, desenvolvem-se historicamente, e cada direito soma-se a outro já conquistado. De acordo com o jurista e cientista político Paulo Bonavides, são cinco as dimensões de direitos. Além da primeira dimensão, existem os direitos de segunda geração, consistentes na estipulação de direitos sociais, como garantias trabalhistas e o acesso à educação, que impõem uma ação estatal em benefício das pessoas. Seu valor é a igualdade. Há, ainda, os direitos de terceira geração, coletivos ou difusos, que se destinam a todo gênero humano, incluindo ainda os direitos do consumidor e o meio ambiente, tendo como valor a solidariedade/fraternidade; os direitos de quarta geração, que compreendem a democracia, a informação e o pluralismo; e os direitos de quinta geração, que fundam-se na paz.

O Cilindro de Ciro é considerado a primeira declaração dos direitos humanos registrados na história

A Declaração Universal dos Direitos Humanos no pós-Segunda Guerra Mundial

  Os fatos vivenciados no início do século XX deram indícios de que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, apesar de intentar dirigir-se a toda a humanidade, não foi capaz de garantir o respeito à dignidade de todo e qualquer ser humano. O terror perpetrado pelo nazismo, por exemplo, expôs o abismo entre as teorias da justiça, baseadas unicamente na razão, e a realidade. O aniquilamento de milhares de indivíduos em câmaras de gás foi o último ato de um processo que se iniciou com a perseguição de minorias étnicas e de opositores ao totalitarismo.

  Após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 24 de outubro de 1945, fundou-se a Organização das Nações Unidas (ONU), entidade responsável por congregar  esforços mundiais com a finalidade de proteger a humanidade contra a guerra, o extermínio e a desigualdade, promovendo ações conjuntas entre as nações para estabelecer meios concretos de defesa da paz e da dignidade humana. O preâmbulo da Carta das Nações Unidas contém a seguinte mensagem:

  "Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço de nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla".

Eleonor Roosevelt exibe a edição em espanhol do Jornal das Nações Unidas contendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1949)

  A consciência mundial de que a dignidade humana deveria ser tutelada para além das fronteiras dos Estados, inclusive contra ações estatais que ensejassem tratamento desumano e cruel, reuniu países, órgãos e entidades comprometidas em criar condições pacíficas de convívio internacional, fundados na valorização da diversidade.

  A humanidade deixa de ser a expressão abstrata de uma ideia ou de uma filosofia para manifestar a pluralidade. Desse modo, o princípio da dignidade encontra uma base segura: a vida humana em todas as suas manifestações.

  A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 10 de dezembro de 1948 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, insere-se nesse processo de consagração e efetivação da dignidade da pessoa humana. O artigo primeiro desse documento traça um paralelo com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão ao afirmar que "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade". Reafirmam-se direitos já conhecidos, como a liberdade e a igualdade, mas a eles se acrescentam aqueles de terceira geração, que manifestam a proteção universal dos seres humanos e o direito a um ambiente equilibrado, entre outros.

  Cria-se uma ponte entre o passado e o futuro evidenciando que as promessas de liberdade e autonomia e de desenvolvimento econômico e social não foram esquecidas. Com efeito, a existência humana deve ser tutelada integralmente, possibilitando aos indivíduos e aos povos o pleno desenvolvimento de suas diversas habilidades.

  Cabe ressaltar que inúmeros tratados e convenções foram aprovados pela ONU, destacando-se os referentes aos direitos políticos e sociais, das mulheres, crianças e adolescentes, das pessoas com deficiência e à preservação e repressão do genocídio.

  Desse modo, os direitos humanos devem ser compreendidos em termos de reconhecimento e proteção da dignidade comum a todas as pessoas, sem distinção e preconceitos.

A diplomata brasileira Bertha Lutz durante a Conferência de São Francisco, Estados Unidos. Foto de 1945. As reuniões dessa conferência deram origem à ONU. Estudiosos apontam que Bertha foi uma das responsáveis por incluir o termo mulheres na Carta das Nações Unidas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

COMPARATO, Fábio K. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2017.

MAGNOLI, Demétrio. História da Paz. São Paulo: Editora Contexto, 2008.

ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Carta das Nações Unidas. Disponível em <https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2017/11/A-Carta-das-
Na%C3%B5es-Unidas.pdf>. Acesso em: 13 out. 2022.

terça-feira, 11 de outubro de 2022

A ÁFRICA E AS RELAÇÕES DE TRABALHO E PRODUÇÃO

   Com 30 milhões de quilômetros quadrados e mais de 1,3 bilhão de habitantes, o continente africano apresenta um histórico de intensa exploração no período neocolonial, que durou até o século XX; uma complicada inserção no contexto da Guerra Fria; e guerras inconclusas.

  A África tornou-se o mais pobre dos continentes ao longo dos últimos séculos, mas o ressurgimento econômico africano verificado recentemente faz muitas organizações acreditarem na sustentabilidade do seu desenvolvimento.

Tabela com taxas de crescimento para os países africanos, outros países em desenvolvimento e países de desenvolvimento elevado (2000-2020)

  A África procura atingir metas de crescimento contidas na Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável e na Agenda 2063, estabelecida em 2015 pela União Africana. A Agenda 2063 objetiva que a África chegue naquele ano como um continente próspero, inclusivo, com meios e recursos para impulsionar seu próprio desenvolvimento sustentável e integrado, com união em torno do pan-africanismo, da justiça social e da paz, valorizando as identidades culturais, valores e éticas comuns. Para isso, essa agenda estipula investimentos em educação, ciência, tecnologia e saúde de alto padrão, além de cidades estruturadas, políticas ambientais sustentáveis e tecnologias de informação.

  A tendência é que tais perspectivas continuem a contribuir para o aquecimento da economia e do mercado de trabalho no continente. Nos últimos anos, o crescimento do PIB médio anual dos países africanos foi superior à média do PIB dos países emergentes.

Gráfico do crescimento do PIB da África em relação à média mundial (2020)

  As taxas de pobreza extrema da população africana vêm apresentando quedas nos últimos anos: em 2018, por exemplo, foi de 33,4%. A expectativa é que caia para 24,7% em 2030, ainda assim, muito acima dos 3% previstos na meta de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030. No entanto, a África não é homogênea, e esses índices econômicos mostram-se bastante desiguais, com a economia de alguns países se destacando muito, como Angola, Egito, Marrocos, Nigéria e África do Sul.

  Embora as populações pobres da África tenham se beneficiado do crescimento econômico do período 2000-2017, o consumo da população média aumentou mais rapidamente do que o das populações pobres. Apenas 37 países africanos apresentaram crescimento médio de consumo naquele período, sendo que em apenas 12 deles houve crescimento com inclusão de populações pobres no consumo.

Gráfico com as cinco grandes economias da África e o crescimento do continente

A África na economia global

  É fato que a África adentrou o século XXI demonstrando notáveis índices de crescimento econômico. De acordo com a OCDE (2018), o continente apresentou no período 2000-2017 um crescimento médio de 4,7%, o segundo maior do mundo, só superado pelas economias asiáticas. Por sua vez, o Relatório 2019 do African Development Bank Group afirma que o desempenho econômico africano segue em crescimento. Em 2021, a economia africana cresceria em torno de 4%, porém, ainda insuficiente para reduzir o desemprego e a pobreza.

  Embora com crescimento econômico, a economia africana não possui uma aderência significativa a atividades industriais.

  A maior parte das exportações africanas é de produtos não transformados, ou seja, do setor primário da economia. Por outro lado, nas importações, a maior parte é de produtos transformados, ou seja, do setor secundário, que possuem muito valor agregado.

  A demanda mundial por commodities minerais, principal produto de exportação africana, é o fator mais importante do bom desempenho da balança comercial africana. Contudo, apesar do inegável crescimento econômico verificado no período, o mesmo não se reverteu em um melhor bem-estar para a população.

Gráfico da distribuição por setores de atividades na África (2006-2016)

As relações com a China

  O principal destino das exportações africanas é a China, e os investimentos chineses em países africanos vêm crescendo ano a ano. O país asiático vem se transformando num fundamental parceiro comercial em diversos setores econômicos. Sozinha, a China concentra cerca de um terço de todo o comércio do continente.

  A China investiu solidamente em muitos países africanos em busca de commodities e também tem patrocinado o desenvolvimento industrial de alguns deles. São claras suas intenções geopolíticas e econômicas em estabelecer sua hegemonia na África. Um exemplo dessa parceria  sino-africana foi o anúncio, em 2016, de um fundo bilionário de investimentos, da ordem de 10 bilhões de dólares, focado na aplicação de recursos na indústria, no desenvolvimento tecnológico e na infraestrutura, evidenciando a cooperação entre as partes. Antes a China já havia anunciado um recurso de US$ 20 bilhões para investir em obras estruturais no continente, como portos, ferrovias e usinas e para a exploração mineral, entre outras.

Gráfico mostrando a distribuição do comércio na África (2000-2016)

  Em 2018, a China divulgou que disponibilizaria 60 bilhões de dólares para serem investidos no projeto Cinturão e Rota - também chamado de Um Cinturão, uma Rota - de construção de estradas, pontes, portos marítimos e infraestrutura de energia e telecomunicações. Parte desse projeto, no Quênia, é a ferrovia Standard Gauge Railway (SGR, na sigla em inglês para Ferrovia Bitola Padrão). A obra está revolucionando os transportes e o comércio no país. A bitola (a largura entre os trilhos ferroviários) deve ser padronizada em toda a sua extensão, para atender as pretensões do projeto, que é extrapolar o país e o continente.

  Desde o seu lançamento, em maio de 2017, o serviço de passageiros SGR, popularmente conhecido como Madaraka Express, tem transportado aproximadamente 4 milhões de passageiros. O serviço teve impacto econômico ao gerar meios de subsistência a muitos cidadãos quenianos, além de criar empregos e transferir tecnologia ao Quênia.

  Outros empreendimentos também se destacam: a linha ferroviária que liga Mombaça a Nairóbi, que é a primeira ferrovia construída no Quênia desde sua independência, em 1963. Além disso, ela foi entregue com 18 meses de antecedência. E, além das obras de infraestrutura relacionadas ao projeto Um Cinturão, uma Rota, Quênia e China assinaram em 2018 acordos de cooperação internacional para facilitar o desenvolvimento de uma cidade inteligente e uma via expressa para descongestionar a capital Nairóbi.

Mapa mostrando o plano da China de extensão de redes de transportes e navegação

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CHICHAVA, Sergio. Moçambique na rota da China: uma oportunidade para o desenvolvimento? IN: DE BRITO, Luís et al. Desafios para Moçambique 2010. Editor: Instituto de Estudos Sociais e Econômicos, Maputo, 2010.

POTGIETER, Thean. Capacitação para o desenvolvimento sustentável. IN: AMDIN. Revista Africana de Desenvolvimento e Governação do Sector Público, 1ª edição, Volume 2, South Africa.

SOUSA, Rafaela. "África". Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/geografia/africa-continente.htm. Acesso em: 11 de outubro de 2022.

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

A CULTURA ERUDITA E A CULTURA POPULAR

   O sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990) chamou de processo civilizador aquele em que costumes são desenvolvidos e aceitos socialmente para controlar o comportamento dos indivíduos com base na definição das regras de que é considerado "correto". Segundo ele, esse processo se definiu durante o Renascimento europeu, no século XVI. A característica fundamental da civilização foi o enrijecimento das regras sociais, que passaram a nortear os modos de se portar em público, à mesa, nas vestimentas e na formar de apreciar expressões artísticas, como música, literatura e teatro. Quem as conhecia e as seguia se diferenciava na sociedade. Isso contribuiu para distinguir os integrantes da nobreza cortesã, os primeiros a adotar tais hábitos, das pessoas que faziam parte dos outros estratos sociais, especialmente da burguesia ascendente, que passaram a imitar os modos e os comportamentos da corte.

  A partir do Renascimento também se modificaram as relações entre a arte e sociedade e, em particular, o conceito de beleza. O ideal de beleza se tornou referência na Antiguidade clássica (por volta do século V a.C.), período em que a cidade-Estado grega de Atenas foi reconhecida como centro disseminador das artes. Em Atenas, foram atribuídas características específicas às expressões artísticas, relacionadas à capacidade de representar algo alegre, agradável e saudável. Retomado no Renascimento, esse ideal de beleza tornou-se um modelo universal, e foi criado um conjunto de princípios que determinavam o que seria a "boa arte".

  Nesse contexto, desenvolveu-se um mercado de arte. A produção artística organizou-se de forma que assegurasse aos artistas algum destaque e importância na sociedade. Eles deixaram de ser reconhecidos apenas como artesãos (como na Idade Média) e passaram a ser respeitados por sua criatividade e originalidade. Contribuiu-se, para isso, a criação de academias e de conservatórios, em que se debatiam e se formulavam regras para a arte e padrões de beleza artística. Mantidas por mecenas, pessoas ricas que financiavam as viagens e a formação de artistas, essas instituições criaram métodos e saberes essenciais para o desenvolvimento da arte considerada "boa".

  Esse conjunto de hábitos e gostos ligados à arte, combinados às regras de civilização ocidental, constitui as bases da denominada cultura erudita.

Festival dos tolos, pintura de Pieter Bruegel, 1570. Celebração medieval que passou a assombra a Igreja Católica

  No decorrer do período do Renascimento, as regras de comportamento passaram a ser cada vez mais incorporadas pelos indivíduos, sobretudo os integrantes da sociedade de corte. Os artistas que buscavam o equilíbrio e o racionalismo para expressar a noção de civilidade em obras musicais, na literatura ou no teatro formaram o movimento chamado Classicismo.

  Essa estratégia chegou ao auge no século XVIII, mas nem todos a seguiam. O compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), por exemplo, desafiou os rígidos padrões culturais do período. Não ajustado plenamente às expectativas artísticas da corte, ele buscou autonomia autoral, mas não foi aceito pela sociedade cultural da época e perdeu o encanto pela criação artística. Com 35 anos, foi vítima de uma doença infecciosa fatal e seu corpo acabou enterrado, por motivos até hoje não esclarecidos, em uma vala comum, distante da ostentação palaciana e do público que o consagrou.

  A população que não fazia parte da corte continuou a se expressar culturalmente. Festivais populares cômicos, por exemplo, ocupavam as ruas das cidades europeias para celebrar o fim da colheita (naquela época a economia se baseava na produção agrícola dos feudos). O teórico russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) estudou estes festivais e destacou a importância de outro tipo de cultura, alheia às regras estéticas do Classicismo, nas sociedades europeias. Durante esses festivais, entre os quais se incluía o Carnaval, não havia relações sociais hierárquicas e neles as pessoas podiam viver, momentaneamente, a expectativa de uma sociedade sem distinções.

  Esses festivais eram manifestações do que podemos chamar de cultura popular tradicional. Algumas características da cultura popular a distinguem da erudita, como o fato de não ter finalidade comercial, mas cumprir a função social de gerar uma forma específica de identificação entre os membros de determinado grupo. Diferentemente do exemplo de Mozart, na cultura popular tradicional não há a extrema valorização da figura do autor, pois geralmente essa produção deriva de um processo de criação coletiva, transmitida oralmente entre gerações. Por conta disso, a cultura popular é erroneamente reconhecida como uma expressão artística primitiva sem complexidade estética, em geral conservadora, pois não busca a inovação.

  De acordo com o historiador inglês E. P. Thompson (1924-1993), essa concepção equivocada deve-se ao fato de a cultura popular ser sempre analisada em contraposição negativa à cultura erudita - ligada a setores econômicos e politicamente dominantes da sociedade. Conforme essa ideia, em razão de sua "superioridade", a cultura erudita deveria ser tomada como modelo a ser seguido, por contar com elementos representativos da civilização. Essa é uma visão etnocêntrica, muito criticada pelos antropólogos.

  Durante o século XVIII, a relação da subordinação da cultura popular à cultura erudita dominou o interesse dos estudos pelas artes populares, consideradas representativas de um passado remoto que envolvia estranhos rituais ou hábitos. A procura por objetos culturais populares, alimentou uma onda de colecionismo entre estudiosos europeus denominados folcloristas. Thompson afirmou que, em sua maioria, os folcloristas viam a cultura popular como inferior, sendo expressão de indivíduos privados de alfabetização, que apenas perpetuavam seus costumes por meio da transmissão oral.

A luta entre o Carnaval e a Quaresma (detalhe), pintura de Pieter Bruegel, O Velho, 1559. Acredita-se que o Carnaval como festa da subversão da ordem, como apontado por Bakhtin, tenha origem medieval. Durante o período dessa festa popular, as pessoas poderiam extravasar seus desejos sem julgamento antes de se submeterem aos jejuns, às restrições e às orações do período da Quaresma.

  Para compreender quem de fato produziu cultura popular e que de forma na Europa entre os anos 1500 e 1800, o historiador inglês Peter Burke, nascido em 1937, definiu "povo" como o estrato social que não fazia parte nem da burguesia nem da aristocracia. Em uma análise mais detalhada, descobriu-se que havia várias camadas culturais no que genericamente se denominava "povo".

  Na ânsia de separar aquilo que não pertencia à cultura erudita, estudiosos ergueram um "muro" para deixar de um lado todas as expressões consideradas incultas, não civilizadas, como as camponesas, as urbanas (como o Carnaval parisiense) e as originadas das manifestações dos andarilhos, os quais misturavam abordagens e interpretavam as influências religiosas e regionais que encontravam pelos caminhos que trilhavam.

  Em sua pesquisa, Burke percebeu que havia contrastes e interações entre as manifestações culturais desenvolvidas em distintas condições geográficas (terras altas e baixas, fronteiras e áreas centrais, regiões costeiras e interioranas). Agrupada na categoria única de cultura popular, toda essa diversidade havia sido deixada em segundo plano.

  Tal visão também ignorou uma forma específica de contato entre culturas, que Mikhail Bakhtin chamou de carnavalização. Segundo ele, as manifestações populares tendem a expressar os padrões da cultura dominante de forma invertida, por meio do riso, da máscara, do grotesco e da paródia. Esse autor considerava o Carnaval não apenas uma festa popular, mas também uma manifestação do desejo de subversão da ordem estabelecida.

Carnaval - uma das maiores manifestações culturais do mundo, faz parte da cultura popular

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BURKER, Peter. Cultura popular e transformação social. In: Cultura popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

ORTIZ, Renato. As ciências sociais e a cultura. Tempo Social, v. 14, n. 1, maio 2002. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo. Acesso em: 05/10/2022.

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