quinta-feira, 23 de agosto de 2012

CONFLITOS ÉTNICO-NACIONALISTAS NA ÁSIA

  O continente asiático abriga cerca de 60% da população mundial e milhares de etnias. Nas duas últimas décadas do século XX, alguns conflitos étnico-nacionalistas destacaram-se pelo grande número de pessoas envolvidas e a violência empregada.
ÍNDIA
  A tensão entre hindus (82% da população da Índia) e muçulmanos (12%) iniciou-se com a chegada dos árabes à região, no século VII, responsáveis pela difusão do islamismo no país. Essa religião conquistou muitos adeptos nas camadas mais pobres da sociedade indiana, que viam nela um caminho para se desvencilhar do sistema de castas da religião hindu (hinduísmo), que estrutura a sociedade indiana.
  A região da Caxemira, situada entre o norte da Índia, o nordeste do Paquistão e o sudoeste da China ocupa um extenso vale fértil, habitado principalmente pela população muçulmana. Além da localização estratégica, junto à fronteira da China, o controle da Caxemira significa dispor das águas do curso médio do rio Indo.
  A maior parte da região está sob domínio da Índia, mas os paquistaneses e a guerrilha muçulmana separatista querem anexá-la integralmente ao Paquistão. Desde 1947, quando esses dois países conquistaram a independência da Inglaterra, já ocorreram algumas guerras envolvendo a disputa pela Caxemira. Essa disputa territorial tem preocupado o mundo, pois tanto o Paquistão quanto a Índia possuem armas nucleares.
Mísseis a serviço da Índia
  Na região de Punjab, norte da Índia, conflitos étnico-religiosos têm marcado a história do país nas últimas décadas. O conflito opõe os sikhs, minoria étnica, seguidora de uma seita própria que difunde elementos do islamismo e hinduísmo, aos hindus. Os sikhs lutam pela independência e a formação do Estado do Kalistan, idealizado pelos separatistas. A perseguição aos sikhs  intensificou-se em 1984, após a morte da primeira-ministra indiana Indira Gandhi, assassinada por membros de sua guarda pessoal e adeptos da seita sikh. Um mês antes, Indira Gandhi havia ordenado a invasão do Templo Dourado de Amritsar - local sagrado para os sikhs, onde se reunia a cúpula do movimento separatista.
Região de Punjab, em vermelho
  Além da repressão aos sikhs, grupos nacionalistas ligados ao Partido Bharatiya Janata (BJP), que defendem a supremacia hindu, têm promovido massacres de muçulmanos e cristãos em outras regiões do país. Vários missionários cristãos foram alvos de atentados, principalmente em Goa (cidade colonizada pelos portugueses).
Templo Dourado em Amritsar - templo sagrado para os Sikhs
PAQUISTÃO
  As minorias étnico-religiosas que vivem no Paquistão são objeto de discriminação por parte dos muçulmanos - a imensa maioria da população.
  Os urdus (povo de origem indiana), em especial, têm protestado contra a discriminação de que são vítimas em relação a empregos, vagas nas universidades, cargos políticos etc. Desde a década de 1970, violentos choques entre urdus e muçulmanos vêm ocorrendo no Paquistão.
Grupos étnicos do Paquistão
SRI LANKA
  No Sri Lanka há um forte movimento separatista representado pela minoria tâmil. Os tâmeis concentram-se principalmente na península de Jafna, norte do país.
  Um importante movimento guerrilheiro de origem tâmil vem lutando, desde 1983, contra o exército do Sri Lanka, obtendo significativas vitórias na parte norte da ilha. Esse fato - juntamente com a atuação da Índia, favorável ao separatismo tâmil - vem provocando no governo do Sri Lanka uma disposição de negociar e conceder a autonomia a esse povo, criando assim a pátria tâmil.
Mapa do Sri Lanka mostrando o território reclamado pelos Tigres Tâmeis como o TâmilEelam (verde) e o território controlado pelos guerrilheiros (amarelo)
ORIENTE MÉDIO
  O domínio que o Império Turco-Otomano exercia sobre boa parte do Oriente Médio, o qual prevaleceu até a Primeira Guerra Mundial, foi praticamente substituído pela ocupação inglesa e francesa, que se prolongou até a década de 1940. Durante esse último período, ocorreu um processo de grande fragmentação territorial dessa região. Após essa década, os ingleses e franceses foram afastados do Oriente Médio, consolidando o processo de independência de vários países e favorecendo a criação do Estado de Israel, em 1948.
Mapa do domínio territorial europeu no Oriente Médio e na África do Norte
  A independência desses países não significou o fim dos conflitos na região. Ao contrário, após a Segunda Guerra Mundial, o Oriente Médio transformou-se no principal foco de tensão mundial em função da criação do Estado de Israel; dos interesses econômicos e estratégicos das grande potências pelo controle das jazidas de petróleo; das disputas internas pelo poder numa região marcada por regimes autoritários; dos conflitos religiosos; e das más condições de vida da maioria da população.
  A herança da Guerra Fria é outro importante fator da instabilidade e de intensificação dos conflitos. Durante esse período, os Estados Unidos e a URSS armaram exércitos e grupos de oposição, fortalecendo ditaduras e grupos terroristas. Atualmente, parcela significativa das vendas de armamentos dos Estados Unidos destina-se a países do Oriente Médio.
Mapa do Oriente Médio
GUERRAS ENTRE ISRAEL E OS PAÍSES ÁRABES
  A região da Palestina é o território histórico de dois povos: judeus e palestinos. Os judeus ocuparam a região há mais de 4 mil anos, mas se espalharam pelo mundo devido à repressão sofrida durante o Império Romano. Os palestinos são formados por uma mistura de povos, como filisteus (que ocupavam a Faixa de Gaza), cananeus (que habitavam a Cisjordânia) e árabes, os quais impuseram sua cultura, tradição e a religião islâmica. Os palestinos habitaram a região por um período contínuo de cerca de dois mil anos.
Palestina no tempo de Jesus
  A partir do final do século XIX, com a criação da Organização Sionista Mundial (1897), cuja sede fica na Suíça, o movimento sionista começou a organizar a migração de judeus à Palestina, visando a formação de uma pátria judaica. Na primeira metade do século XX, o aumento da população judaica na região, estimulado pela compra de terras e pelo estabelecimento de diversas colônias, foi contínuo e relativamente pacífico.
  No entanto, depois da Primeira Guerra Mundial, quando os britânicos, que passaram a controlar a região, cogitaram a criação de um Estado judaico (Declaração de Balfour), essa migração tornou-se bastante conflituosa. O secretário das relações exteriores britânico, Arthur Balfour, encorajava a colonização Palestina por judeus e apoiava  o estabelecimento de um "lar nacional judaico na Palestina", o qual teria proteção britânica.
Arthur James Balfour
  A perseguição e o massacre  imposto aos judeus pelos nazistas, na Segunda Guerra Mundial, foi fundamental para o apoio internacional à formação do Estado de Israel, em 1948. A divisão do território da Palestina entre judeus e palestinos, já fazia parte de acordos firmados entre Estados Unidos, Reino Unido e URSS. Em 1947, a ONU aprovou o plano de partilha da Palestina e a criação do Estado de Israel, que ocupava 57% daquele território.
  A formação de um Estado judaico no Oriente Médio provocou a reação contrária dos países árabes. Ainda em 1948, Egito, Jordânia, Líbano e Síria invadiram Israel, dando início à Primeira Guerra Árabe-Israelense (1948-1949).
Proposta da divisão da Palestina
  Em 1949, foi estabelecido um armistício, que retirou totalmente dos palestinos as decisões sobre os seus tradicionais territórios, inclusive dos que tinham sido delimitados pela ONU, em 1947. O acordo de paz estabeleceu que o Estado Árabe da Palestina seria dividido entre Israel (que conquistara a Galileia e o deserto de Neguev); Transjordânia, que incorporaria a Cisjordânia (a oeste do rio Jordão); e Egito, que ocuparia a Faixa de Gaza. Após o armistício, os conflitos não cessaram. Diversas questões opuseram árabes e israelenses. Os palestinos reagiram à ocupação de suas terras organizando atos terroristas contra os judeus.
  Em 1967, a Síria tentou desviar o fluxo de água do rio Jordão mediante a construção de uma grande represa, nas colinas de Golã. Com o apoio da Jordânia e do Egito, a Síria bloqueou o golfo de Ácaba - utilizado pelos navios israelenses para chegar ao mar Vermelho. O crescimento das tensões colocou em alerta as tropas de todos os países envolvidos.
  Entre 5 e 10 de junho daquele ano, os israelenses iniciaram um fulminante ataque ao Egito, à Jordânia e à Síria, que imobilizaram totalmente as tropas árabes numa das guerras mais curtas da história, denominada Guerra dos Seis Dias ou Terceira Guerra Árabe-Israelense. Nesse terceiro conflito, os israelenses anexaram a península do Sinai e a faixa de Gaza, pertencentes aos egípcios; as colinas de Golã, que pertencia à Síria; e a Cisjordânia, que fazia parte da Jordânia.
  Em 1973, na tentativa de reaver os territórios ocupados, Egito e Síria atacaram Israel de surpresa, dando início à Quarta Guerra Árabe-Israelense - Guerra do Yom Kippur (Dia do Perdão). A princípio, conquistaram algumas posições, mas foram obrigados a recuar com forte reação do exército israelense, que conseguiu mobilizar e organizar suas tropas rapidamente. A guerra durou três semanas, e Israel manteve sob seu domínio as conquistas da Guerra dos Seis Dias. Em 1979, Israel concordou em devolver o Egito a península do Sinai, mediante o Acordo de Camp David, intermediado pelos Estados Unidos.
Presidentes Anwar Al Sadat (Egito) e Jimmy Cartter (EUA)  com o Primeiro-Ministro de Israel Menachem Begin durante a assinatura do Acordo de Camp David
A QUESTÃO PALESTINA
  Nos conflitos ocorridos após a criação do Estado de Israel, os palestinos foram bastante prejudicados. Na partilha estabelecida pela ONU, eles ficaram com 43% das terras da região. Após a Primeira Guerra Árabe-Israelense, transformaram-se em uma nação sem território.
  As guerras envolvendo árabes e israelenses expulsaram milhares de palestinos de suas terras, que se refugiaram em acampamentos no Líbano, na Síria, no Egito e na Jordânia. Desorganizados, espalhados por diversos países e enfraquecidos militarmente, os palestinos criaram várias organizações terroristas para lutar contra o Estado de Israel, entre elas a Al Fatah, em 1959, e a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), em 1964.
  No final da década de 1960, a OLP foi reconhecida pela ONU como única e legítima organização representante dos interesses do povo palestino. Em 1969, Yasser Arafat, palestino nascido no Egito, assumiu a presidência da organização. Até 1987, Arafat utilizava métodos extremistas - atos de terrorismo - para alcançar seus objetivos. Em 14 de dezembro de 1988, o líder da OLP apresentou um plano de paz na Assembleia Geral da ONU, no qual reconhecia o Estado de Israel.
Yasser Arafat
  Esse acontecimento marcou o início de uma nova fase para a OLP, que conquistou mais espaço no campo diplomático, passando a negociar com os Estados Unidos e, posteriormente, com Israel. No dia 13 de setembro de 1993, após dois meses de negociações secretas mediadas pelo governo da Noruega, Arafat e o primeiro-ministro de Israel, Yitzak Rabin, assinaram um acordo de paz na Casa Branca, Estados Unidos, que ficou conhecido como Acordo de Oslo.
  Por esse acordo, a faixa de Gaza e parte da Cisjordânia - incorporadas por Israel, em 1967, na Guerra dos Seis Dias - foram devolvidas aos palestinos e se tornaram regiões autônomas. Foi criada, também, a Autoridade Nacional Palestina (ANP), entidade liderada por Arafat, com sede em Ramallah, na Cisjordânia. A ANP passou a ser a representação legal dos palestinos e responsável pela administração dos seus territórios. Em setembro de 1995, um novo acordo estendeu a autonomia a outras 456 cidades da Cisjordânia.
A Palestina pelo Acordo de Oslo
RETOMADA E INTENSIFICAÇÃO DOS CONFLITOS
  No final da década de 1990, as negociações entre Israel e a ANP tornaram-se extremamente difíceis. Em 2000, Ariel Sharon, que no ano seguinte seria escolhido primeiro-ministro de Israel, visitou a Esplanada das Mesquitas (local mais sagrado para os muçulmanos em Jerusalém), provocando a segunda Intifada.
  A partir desse acontecimento, instaurou-se uma espiral de violência: de um lado, atentados suicidas fomentados por grupos radicais palestinos contra israelenses; de outro, retaliações a essas agressões, com ações militares promovidas pelo exército israelense. Israel colocou o exército dentro da ANP e passou a retaliar todos os suspeitos de integrar grupos terroristas, promovendo, ao mesmo tempo, ataques à população civil palestina.
Esplanada das Mesquitas em Jerusalém
QUARTETO DE MADRI E MAPA DO CAMINHO
  Em 2003, contando com o apoio da ONU, da União Europeia, dos Estados Unidos e da Rússia (Quarteto de Madri), líderes palestinos e judeus reuniram-se na capital espanhola para estabelecer os primeiros passos na consolidação de um acordo de paz proposto pelos Estados Unidos. Chamado de Mapa do Caminho, objetivava amenizar o sentimento antiamericano e demonstrar o interesse do governo Bush em buscar uma solução negociada para a crise no Oriente Médio.
  O acordo previa, entre outras medidas, a constituição de um Estado palestino em 2005, cujas fronteiras seriam aquelas existentes até a Guerra dos Seis Dias. Segundo a proposta original, várias etapas deveriam ser cumpridas por judeus e palestinos até 2005, entre elas, na sequência:

  • fim das ações terroristas de organizações palestinas, retirada das tropas israelenses e remoção dos assentamentos judaicos dos territórios palestinos;
  • convocação de eleições e elaboração de uma Constituição democrática para o novo Estado palestino, bem como a delimitação de suas fronteiras;
  • fortalecimento político e econômico do novo Estado, apoiado por toda a comunidade internacional.

O Quarteto reunido no prédio da ONU em Nova York, em setembro de 2011
  As metas previstas pelo Mapa do Caminho não tiveram o encaminhamento esperado devido à forte oposição de grupos radicais (judeus e palestinos) e dos obstáculos impostos pelos Estados Unidos e pelo governo israelense, que alegavam que Yasser Arafat era um interlocutor pouco confiável e pouco empenhado em controlar as ações de grupos terroristas.
  Com a morte de Arafat em 2004, a ANP passou a ser presidida por Mahmoud Abbas, conhecido por Abbu Mazen, eleito num processo livre e democrático, no início de 2005. As ações de Abbas foram pautadas pelas negociações com o governo de Israel e com os grupos radicais palestinos com o objetivo de retomar e avançar as questões traçadas pelo Mapa do Caminho. Essas negociações levaram à retirada dos assentamentos judaicos da faixa de Gaza e de uma pequena parte da Cisjordânia.
Mahmoud Abbas
  Apesar disso, o governo de Israel insistiu em dar continuidade à construção de um muro que separa Israel da parte da Cisjordânia controlada pelos palestinos. Iniciada em 2002, a imensa muralha tem postos de vigilância de entrada e de saída. Uma extensa região (dentro e fora do muro) controlada pelo exército israelense, chamada zona tampão, isola a comunidade palestina em seu próprio território. Além disso, o muro incorpora terras palestinas (negociadas pelo Acordo de Oslo) ao território israelense.
Mapa do Muro da Palestina ou Muro de Israel
  O muro inviabiliza a demarcação das fronteiras acertadas pelo Mapa do Caminho confisca cerca de 50% das terras situadas na Cisjordânia e anexa a Israel os assentamentos judaicos construídos nos territórios ocupados. Além disso, Israel incorpora todo o vale do rio Jordão, a única fonte de abastecimento de água da região (situado na zona tampão, junto à fronteira com a Jordânia e controlada por Israel).
Muro de Israel no lado palestino
LIMITES ÀS NEGOCIAÇÕES DE PAZ
  Existem ainda outros impasses para se atingir um acordo de paz definitivo entre israelenses e palestinos. Um deles é a cidade de Jerusalém. Israel a declara como capital indivisível do país; já os palestinos não abrem mão de incorporá-la a um futuro Estado da Palestina. O extremismo de grupos judeus e palestinos, contrários a qualquer processo de negociação, constituem outro obstáculo à paz na região.
Parte antiga de Jerusalém
  Em 2006, o Hamas conquistou legitimamente o poder e manteve a posição de não reconhecimento do Estado de Israel e a oposição a qualquer negociação de paz. Essas circunstâncias isolaram internacionalmente a ANP e determinaram o corte da ajuda financeira proveniente da União Europeia e dos Estados Unidos, quantia correspondente, na época, a cerca de metade de toda a receita da ANP. Além disso, essa situação colocou em confronto  direto os dois principais grupos palestinos da atualidade: o Hamas (que controla a faixa de Gaza) e o Fatah, de Mahmoud Abbas (que controla as terras palestinas da Cisjordânia).
  Em 2009, o governo de Binyamin Netanyahu entravou as negociações com a ANP ao permitir a ampliação dos assentamentos  judaicos na Cisjordânia, o que inviabiliza a formação de um território palestino contínuo. Israel passou a admitir a existência de um Estado Palestino desmilitarizado, sem a possibilidade de controle de suas fronteiras, de seu espaço aéreo e sem capacidade de defesa. O governo de Barack Obama posicionou-se contrário às ações de Netahyahu e, pela primeira vez, os Estados Unidos endossaram a posição palestina nas negociações, no que diz respeito à interrupção dos assentamentos judaicos.
Binyamin Netanyahu
A QUESTÃO CURDA
  Outro conflito étnico-nacionalista no continente asiático é bastante peculiar, pois envolve uma nação cuja população se encontra distribuída por seis países: Iraque, Armênia, Azerbaijão, Turquia, Síria e Irã. Trata-se dos curdos, que constituem a maior nação sem Estado do mundo, somando mais de 23 milhões de pessoas, das quais 14 milhões vivem na Turquia.
  Os curdos têm raízes muito remotas no Oriente Médio, na antiga Mesopotâmia. Apesar de serem um povo islâmico, mantêm suas próprias tradições e costumes e habitam o Curdistão há mais de 2.600 anos. O movimento separatista curdo sofreu e sofre repressão no Iraque e na Turquia.
  O ex-ditador iraquiano Saddam Hussein (1937-2006) ordenou a matança de milhares de curdos e autorizou, nesse massacre, o uso de armas químicas, após a Guerra do Golfo de 1991. Na guerra dos Estados Unidos contra o Iraque,  os curdos colaboraram com a coalizão na luta contra as tropas iraquianas e conquistaram relativa autonomia nas terras que ocupam, situadas ao norte do Iraque.
  Na Turquia, o ensaio da língua curda nas escolas é proibido, assim como a comemoração de suas datas nacionais. A luta pela formação de um Curdistão independente sempre foi duramente reprimida pelos sucessivos governos turcos. Por outro lado, grupos guerrilheiros ligado ao Partido dos Trabalhadores Curdos (PKK) promoveram uma série de atentados com o objetivo de desestabilizar o governo e conquistar a independência.
Curdos protestando contra o governo da Turquia
CHINA
  Dos cerca de 1 bilhão e 300 milhões de habitantes da China, mais de 90% pertencem à etnia han. No entanto, outras 55 etnias que representam menos de 10% da população total do país ocupam mais da metade do território, especialmente em regiões que atingem grandes dimensões nas áreas desérticas e montanhosas do oeste e norte do país. Em algumas províncias dessa região, a população original e majoritária considera o povo chinês um ocupante ilegítimo e luta por sua independência e autonomia.
TIBETE
  O Tibete é uma vasta região situada a sudoeste do território da China. Apesar de ter constituído um Estado independente entre 1911 e 1950, a China alega que o Tibete faz parte do seu território desde o século XIII. Os tibetanos afirmam que o domínio chinês na região não foi constante nem contínuo.
  No ano posterior à Revolução Socialista de 1949, o Tibete foi novamente anexado pela China Popular. Antes institucionalizado como Estado teocrático, o Tibete, sob o domínio chinês, passou por grandes transformações, como a supressão do poder da aristocracia religiosa e civil, a abolição da servidão rural e da escravidão doméstica e a redistribuição de terras. Além disso, o planalto tibetano e a cidade de Lhasa, capital dessa província autônoma, receberam um grande contingente de migrantes chineses de origem han.
Província do Tibete
  A reação diante da anexação, durante a década de 1950, colocou em confronto as forças de ocupação e parte da população tibetana separatista, organizada no Exército de Defesa da Religião, que atacou a todos que apoiavam a incorporação do Tibete à China Popular. No entanto, essa reação foi esmagada pelo exército vermelho de Mao Tsé-Tung. O líder espiritual do Tibete, o Dalai Lama, exilou-se em 1959, na cidade indiana de Dharamsala, onde vive até hoje.
Tenzin Gyatso - 14° Dalai Lama
  Em 1989, uma onda de movimentos pela democratização do regime chinês foi acompanhada por uma nova revolta de monges budistas e de civis. O governo chinês, além de impor a lei marcial, restringiu a relativa autonomia religiosa e cultural ainda presente no Tibete.
  Em 2008, novas manifestações levaram monges e jovens separatistas às ruas em Lhasa, Drepung, Sera, Gansu e Gamden, locais onde se situam importantes monastérios. Apesar da recomendação do Dalai Lama para que empregassem uma estratégia de luta apoiada na não violência e centrassem suas reivindicações na autonomia, os rebeldes tibetanos insistiram em sinalizar sua luta pela independência com ataques a cidadãos civis de origem chinesa e autoridades alinhadas com o governo de Pequim. Mais uma vez, o Estado chinês reprimiu os manifestantes com violência. Na ocasião, a atenção mundial estava focada na China, em função da Olimpíada ali realizada, fato que ampliou negativamente a repercussão dos acontecimentos e da repressão ocorridos nessa região autônoma.
Monge tibetano enfrentando a polícia na cidade de Lhasa - Tibete, em 2008
XINJIANG
  A provícia autônoma de Xinjiang está situada ao norte do Tibete e a noroeste do território chinês. Ocupada originalmente por muçulmanos da etnia uigure, anexada pela China no século XIX, e hoje corresponde a 15% do seu território. A terra dos uigures passou a ter importância econômica estratégica com a descoberta de grandes reservas de petróleo, correspondendo à terça parte das reservas existentes em toda a China.
Província de Xinjiang - China
  O partido comunista utilizou em Xinjiang a mesma política de ocupação empregada no Tibete: estimulou a migração de colonos chineses para que estes suplantassem numericamente os uigures. Em 1949, a etnia han representava apenas 6% do total dos tibetanos. Em 2009, os chineses dessa etnia representavam 40% da população, proporcionalmente pouco menos da metade da população uigure. Em Urumqi, capital da província, a população majoritária é han.
Urumqi - capital da província de Xinjiang
  O objetivo dessa política migratória foi assegurar o controle do território e inibir qualquer tentativa separatista, pois os uigures são mais ligados cultural e etniciamente à Ásia Central do que à China. No entanto, o movimento separatista ganhou força após a independência das ex-repúblicas soviéticas em 1990, situadas em sua fronteira: o Casaquistão, o Tajiquistão e o Quirguistão. Na última década, o movimento separatista promoveu uma série de ataques às tropas de ocupação chinesas, aos serviços públicos e à população civil han.
Pastores da etnia uigure
  As ações do governo chinês em relação à população uigure são responsáveis pelo recrudescimento dos conflitos étnicos locais e pelo crescimento dos adeptos do separatismo. Dentre as mais desaprovadas estão a discriminação contra os habitantes originais, os privilégios dos hans nos empregos públicos e o boicote às práticas culturais e religiosas da população uigure.
FONTE: Lucci, Elian Alabi. Território e sociedade no mundo globalizado: geografia: ensino médio, volume 3 / Elian Alabi Lucci, Anselmo Lázaro Branco, Cláudio Mendonça. - 1. ed. - São Paulo: Saraiva, 2010.

sábado, 18 de agosto de 2012

OS PRINCIPAIS MOVIMENTOS INTERNOS DA POPULAÇÃO E A EMIGRAÇÃO NO BRASIL

  Segundo dados do IBGE, em 2010, 40% dos habitantes do Brasil não eram naturais do município de residência, e cerca de 16% deles não eram procedentes da unidade da federação em que moravam. O censo de 2000 detectou que 75% dos movimentos migratórios realizados durante os cinco anos anteriores tinham como origem e destino as áreas urbanas, 12,4% eram rurais-urbanos, 7,7% urbano-rurais e 4,8% originaram-se e destinaram-se a áreas rurais.
  Esses números mostram que predominam movimentos migratórios dentro do estado de origem. E que há um crescimento do fluxo urbano-urbano e intra-metropolitano, ou seja, aumenta o número de pessoas que migram de uma cidade para outra no mesmo estado ou numa determinada região metropolitana em busca de melhores condições de moradia. No entanto, permanecem os movimentos migratórios interestaduais.
  Outro ponto revelado pelos dados sobre os movimentos migratórios atuais é o dos fluxos de retorno, principalmente para o Nordeste: entre 1995 e 2000, 48,3% das saídas do Sudeste se dirigiram ao Nordeste. Entre 1986 e 1991, a porcentagem foi de 42,5%. Apesar desse retorno de migrantes, os estados que apresentam maior emigração continuam sendo os nordestinos: Paraíba, Piauí, Bahia e Pernambuco.
  Analisando a história brasileira, percebe-se, desde o tempo da colonização, que os movimentos migratórios estão associados a fatores econômicos. Quando terminou o ciclo da cana-de-açúcar no Nordeste e se iniciou o do ouro em Minas Gerais, houve um grande deslocamento de pessoas e um intenso processo de urbanização no novo centro econômico do país. Mais tarde, com o ciclo do café e com o processo de industrialização, o eixo São Paulo-Rio de Janeiro se tornou o grande polo de atração de migrantes, que saíam de sua região de origem em busca de empregos e de melhores salários. Somente a partir da década de 1970, com o processo de desconcentração da atividade industrial e a criação de políticas públicas de incentivo à ocupação das regiões Norte e Centro-Oeste, a migração em direção ao Sudeste começou a apresentar significativa queda.
O processo de industrialização foi um dos principais motivos que incentivou a migração para o Sudeste a partir da década de 1950
  Qualquer região do país que receba investimentos produtivos, públicos ou privados, que aumentem a oferta de emprego, receberá também pessoas dispostas a preencher os novos postos de trabalho. É o que acontece atualmente no estado de São Paulo. As cidades médias e grandes do interior - como Campinas, Ribeirão Preto, São José dos Campos, Sorocaba e São José do Rio Preto, assim como algumas menores em suas respectivas regiões - apresentam índices de crescimento econômico maiores que os da Grande São Paulo, o que gera aumento populacional. Essa situação ocorreu graças ao desenvolvimento dos sistemas de transportes, energia e comunicações, que integraram o interior do estado não só ao país, mas ao mundo. Boa parte da produção econômica estadual é destinada ao mercado externo.
  Atualmente, São Paulo e Rio de Janeiro são as capitais cuja população menos cresce no Brasil. Em primeira posição, figuram algumas capitais da região Norte, com destaque para Palmas (TO), Macapá (AP) e Rio Branco (AC), localizadas em áreas de expansão das atuais fronteiras agrícolas do país. Em seguida, vêm as capitais nordestinas e, finalmente, as do Sul do Brasil.
Macapá - uma das capitais que mais crescem no Brasil
ÊXODO RURAL E MIGRAÇÃO PENDULAR
  Em 1920, apenas 10% da população brasileira vivia em cidades. Cinquenta anos depois, em 1970, esse percentual era de 56%. De acordo com o censo do IBGE 2010, 84,35% da população brasileira é urbana. Estima-se que entre 1950 e 2000, 50 milhões de pessoas migraram do campo para as cidades, fenômeno conhecido como êxodo rural. É importante lembrar que na maioria dos casos esses migrantes se deslocaram para as cidades, com pouquíssimo dinheiro e em condições muito precárias, consequência de uma política agrária que modernizou o trabalho do campo e concentrou a posse da terra. Esse processo ocorreu associado a uma indutrialização que permanecia concentrada nas principais regiões metropolitanas, que, por isso, tornavam-se áreas muito atrativas.
Êxodo rural - saída em massa de pessoas do campo para as cidades, gera abandono de residências na zona rural
  No entanto, como as cidades receptoras desse enorme contingente populacional não receberam investimentos públicos suficientes em obras de infraestrutura urbana, passaram a crescer desmesuradamente, com acelerada construção de submoradias e surgimento de loteamentos (em grande parte clandestinos) em suas periferias. Esse processo reduziu os vazios demográficos que existiam entre uma cidade e outra e, somado a outros fatores, colaborou para a formação de regiões metropolitanas. Entre as cidades que compõem cada região metropolitana ocorre um deslocamento diário da população, movimento conhecido como migração pendular. Muitas dessas cidades passam a ser conhecidas como "cidades dormitório".
Migração pendular - deslocamento diário de pessoas de uma cidade para outra para trabalhar ou estudar
A EMIGRAÇÃO
  A partir da década de 1980 o Brasil começou a se tornar um país com fluxo migratório negativo - número de emigrantes maior que o de imigrantes.
  Do início da década de 1980 até a crise mundial que se iniciou em 2008, muitos brasileiros se transferiram para os Estados Unidos, Japão e Europa (especialmente Portugal, Inglaterra, Espanha e França), entre outros destinos, em busca de melhores condições de vida, já que no Brasil os salários pagos são muito baixos se comparados aos desses países e os índices de desemprego e subemprego costumam ser mais elevados. Há também um grande número de brasileiros estabelecidos no Paraguai, quase todos produtores rurais que ali se dirigiram em busca de terras baratas e de uma carga tributária menor que a brasileira. Como a maioria dos emigrantes entram clandestinamente nos países a que se dirigem, há estimativas precárias sobre o volume total do fluxo migratório.
Brazilian Day 2011 - festa dos brasileiros que moram em Nova York, Estados Unidos
  Entretanto, desde a eclosão da crise econômica que se iniciou em 2008, o Brasil passou a receber muitos imigrantes vindos de países latino-americanos, com destaque para a Bolívia, Peru e Paraguai e, muitos brasileiros que moravam no exterior retornaram. A partir de 2008, o Brasil deixou de ser um país onde predominava a emigração e passou a receber muitos estrangeiros. Tradicionalmente, os principais destinos dos emigrantes de países da América do Sul e Central são os Estados Unidos e a Espanha. Porém, como a economia brasileira conseguiu enfrentar a crise com muito mais rigor que a de muitos países desenvolvidos e existe grande facilidade de deslocamento terrestre para cá, muitos emigrantes latinos trocaram de destino.
Haitianos em praça na cidade de Brasileia - AC
  Uma das consequências dessa inversão, ou seja, com a redução no volume da emigração, aumento na entrada de imigrantes e o retorno de brasileiros que viviam  em países onde a crise aumentou o desemprego, vêm ocorrendo redução do ingresso e aumento do envio de remessas de dinheiro. Em 1995, os brasileiros residentes no exterior enviavam 37 dólares para cada dólar que era remetido daqui para o exterior; em 2009, essa proporção tinha caído ao nível de US$ 2,7 para US$ 1,0, o que demonstra claramente o aumento do retorno de brasileiros e, ao mesmo tempo, do número de imigrantes que aqui residem.
FONTE: SENE, Eustáquio de. Geografia geral e do Brasil, volume 3: espaço geográfico e globalização: ensino médio / Eustáquio de Sene, João Carlos Moreira. - São Paulo: Scipione, 2010.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

A GLOBALIZAÇÃO DA POBREZA

  "A crise global não está concentrada em uma única região do mundo. As economias nacionais estão interligadas, os bancos comerciais e os negócios (controlados por cerca de 750 corporações globais) transcendem limites econômicos, o comércio internacional está integrado e os mercados financeiros de todo o mundo conectam-se por um sistema de telecomunicação em tempo real. A crise real é muito mais complexa do que a do período entreguerras; suas consequências sociais e implicações geopolíticas, de longo alcance, são sentidas particularmente nesse incerto período pós-Guerra Fria.
  O movimento da economia global é regulado por um processo de cobrança de  dívida em âmbito mundial, que sufoca as instituições do Estado nacional e contribui para eliminar empregos e reduzir a atividade econômica. No mundo em desenvolvimento, o peso da dívida externa atinge dois trilhões de dólares: países inteiros foram desestabilizados em consequência do colapso das moedas nacionais, o que resultou frequentemente na eclosão de lutas sociais, conflitos étnicos e guerra civil.
  As reformas macroeconômicas são um reflexo concreto do sistema capitalista pós-guerra e de sua evolução destrutiva. A direção macroeconômica adotada nos âmbitos nacional e internacional desempenha um papel central no surgimento de uma nova ordem econômica global: essas reformas regulam o processo de acumulação capitalista no mundo todo.
  Todavia esse não é um sistema de livre-mercado: embora sustentado por um discurso neoliberal, o chamado 'programa de ajuste estrutural' patrocinado pelas instituições de Bretton Woods constitui um novo esquema intervencionista.
  Desde a crise da dívida do início dos anos 80, a busca do lucro máximo tem sido engendrada pela política macroeconômica, ocasionando o desmantelamento das instituições do Estado, o rompimento das fronteiras econômicas e o empobrecimento de milhões de pessoas.
A ECONOMIA BASEADA NA MÃO DE OBRA BARATA
  A análise do sistema de economia global concentra-se no papel do desemprego mundial. Nesse contexto, as reformas patrocinadas pelo FMI têm sido decisivas no controle dos custos de mão da obra em grande número de países. Todavia, a minimização desses custos solapa a expansão dos mercados consumidores, ou seja, o empobrecimento de grandes setores da população mundial, derivado da reforma macroeconômica, conduz a uma redução crítica do poder de compra.
  Por sua vez, os baixos níveis salariais, tanto nos países em desenvolvimento como nos desenvolvidos, repercutem sobre a produção, contribuindo para uma série de fechamentos e falências de fábricas. Em cada fase da crise, o movimento se dá em direção à superprodução global e ao declínio da demanda do consumidor. Reduzindo a capacidade de consumo da sociedade, as reformas macroeconômicas aplicadas em todo o mundo obstruem, por fim, a expansão do capital.
  Num sistema que gera superprodução, as corporações internacionais e as sociedades mercantis só podem 'expandir' seus mercados solapando ou destruindo concomitantemente a base produtiva doméstica dos países em desenvolvimento, por meio da desorganização e do aniquilamento da produção local destinada ao mercado interno. A pobreza é um item introduzido no lado da oferta. Os mercados emergentes são abertos à custa da substituição simultânea de um sistema produtivo preexistente; pequenas e médias empresas são empurradas à falência ou obrigadas a produzir para um distribuidor global; empresas estatais são privatizadas ou fechadas; agricultores independentes são empobrecidos.
  O sistema econômico global, portanto, caracteriza-se por duas forças contraditórias: a consolidação de uma economia de mão de obra barata global e a procura de novos mercados consumidores. A primeira solapa a segunda. A ampliação de mercados para a corporação global requer a fragmentação e a destruição da economia doméstica. As barreiras para o movimento de dinheiro e mercadorias são removidas, o crédito é desregulamentado, a terra e os bens do Estado são assumidos pelo capital internacional...
DÍVIDA E REFORMA MACROECONÔMICA NOS PAÍSES DESENVOLVIDOS
  Esse estudo concentra-se principalmente nas experiências dos países em desenvolvimento. Contudo, desde a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o fim da União Soviética, o processo de reestruturação de economia mundial vem se modificando. Desenvolveu-se em todo o mundo um 'consenso político' sobre política macroeconômica; os governos têm adotado inequivocadamente uma agenda política neoliberal. Desde o início da década de 1990, as reformas macroeconômicas adotadas nos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) têm apresentado muitos dos ingredientes essenciais dos programas de ajuste estrutural (PAEs) aplicadas no Terceiro Mundo e no Leste Europeu.
  Os mecanismos institucionais, todavia, são diferentes. Nos países desenvolvidos, as instituições de Bretton Woods não têm papel importante na 'fiscalização política'. No Ocidente, os credores tende a exercer suas pressões sobre os governos nacionais sem a intermediação da burocracia sediada em Washington. Os débitos das empresas paraestatais e de serviços públicos, e dos governos municipais, estaduais e federais são cuidadosamente separados por categorias e 'classificados' por mercados financeiros (por exemplo, pela Moody's e pela Standard & Poor). Além disso, espera-se cada vez mais que os ministros da Fazenda estejam ligados a grandes firmas de investimento e bancos comerciais. O rebaixamento da categoria da dívida consolidada da Suécia em 1995 pela Moody's foi instrumental para a decisão  do governo social-democrata de minoria de cortar programas de bem-estar social essenciais, entre eles a pensão das crianças e o seguro-desemprego. Da mesma forma, a classificação do crédito da dívida pública do Canadá pela Moody's foi um dos principais fatores na adoção do PAE desse país em 1995-1996, que envolveu grandes cortes nos programas sociais e demissões  de funcionários públicos. Nos Estados Unidos, a controversa 'emenda do orçamento equilibrado', requerida por Wall Street (que por pouco não foi aprovada no Senado) em 1995, teria inserido os direitos dos credores do Estado na Constituição norte-americana.
  No grupo dos países da OCDE, as dívidas públicas aumentaram além dos limites durante a década de 1980. Por ironia, o próprio processo de 'reembolso dessa dívida global' levou ao seu aumento através da criação sistemática de novas dívidas. Nos Estados Unidos - que são de longe os maiores devedores -, a dívida pública cresceu cinco vezes durante o período Reagan-Bush. O acúmulo de grandes dívidas públicas nos países do Ocidente, por sua vez, conferiu aos interesses financeiros e bancários não só uma 'alavancagem política' mas também o poder de ditar a política social e econômica do governo.
MONOPÓLIOS GLOBAIS
  Conforme a recessão aumenta, a economia mundial é dominada por um punhado de bancos internacionais e monopólios globais. Esses poderosos interesses financeiros e industriais entram cada vez mais em conflitos com os da sociedade civil. Embora o espírito do liberalismo anglo-saxão tenha um compromisso com o 'fomento da competição', a política macroeconômica do G-7 tem sido, na prática (por meio de um rígido controle fiscal e monetário), responsável por uma onda de fusões (mergers) e compras em corporação, bem como pela falência planejada de empresas de pequeno e médio porte.
  Grandes companhias multinacionais (particularmente nos Estados Unidos e no Canadá) têm assumido o controle de mercados em âmbito local (especialmente na economia de serviços) por meio do sistema de incorporação de franquias. Pequenas empresas são erradicadas ou encerradas, como as chamadas 'franqueadas', na rede de um distribuidor global. esse processo permite que o grande capital da corporação ('o franqueador') tenha controle sobre o capital humano e o empreendimento. Uma grande fatia dos lucros de pequenas firmas e/ou varejistas é apropriada desse modo, embora o ônus das despesas de investimento seja assumido pelo produtor independente.
  Um processo paralelo pode ser observado na Europa Ocidental. Com o Tratado de Maastrich, o processo de reestruturação política da União Europeia atende cada vez mais a interesses financeiros dominantes às expensas da unidade das sociedades europeias. Nesse sistema, o poder do Estado tem sancionado deliberadamente o progresso de monopólios privados: o grande capital destrói o pequeno em todas as suas formas. Com o avanço da formação de blocos econômicos, tanto na Europa como na América do Norte, o empresário local e regional é aniquilado, transforma-se a vida da cidade e elimina-se a propriedade individual de pequena escala. O 'livre-comércio' e a integração econômica proporcionam maior mobilidade à empresa global, enquanto, simultaneamente, suprimem (através de isenção de impostos e barreiras institucionais) o movimento do pequeno capital local. A 'integração econômica' (sob o domínio da empresa global), embora apresentando uma aparência de unidade política, promove frequentemente o facciosismo e o conflito entre as sociedades nacionais e dentro delas.
INSTABILIDADE FINANCEIRA
  A desintegração da 'economia real' sob o impacto da reforma macroeconômica é acompanhada de um sistema financeiro global altamente instável. Desde a Segunda-feira negra, 19 de outubro de 1987, que os analistas consideram quase uma derrocada total da Bolsa de Valores de Nova York, vem se desenvolvendo um padrão altamente volátil, marcado por convulsões frequentes e cadas vez mais sérias nas principais bolsas de valores, pela ruína de moedas nacionais no Leste Europeu e na América Latina e pela queda espetacular dos novos 'mercados financeiros periféricos' (por exemplo, Cidade do México, Bangcoc, Cairo, Bombaim) precipitada pela 'realização de lucros' e pela súbita retirada dos grandes investidores institucionais. Assim, os mercados de ações periféricos transformaram-se em um novo meio de extração de excedente de países em desenvolvimento.
Segunda-feira negra (19 de outubro de 1987) - foi uma queda profunda e inesperada das ações nas bolsas de valores do mundo
  Houve também o florescimento de um novo ambiente financeiro global: a onda de fusões em corporações no final da década de 1980 abriu caminho para a consolidação de uma nova geração de financeiras agrupadas em torno dos bancos mercantis: investidores institucionais, corretoras de ações, grandes companhias de seguros etc. Nesse processo, as funções dos bancos comerciais aglutinaram-se com as dos bancos de investimentos e das corretoras de ações.
  Embora tenham grande poder nos mercados financeiros, esses 'administradores de dinheiro' são cada vez mais afastados de funções empresariais na economia real. Suas atividades (que escapam da regulamentação do Estado) incluem transações especulativas no mercado de futuros e derivativos e a manipulação de mercados monetários. Os grandes operadores financeiros estão rotineiramente envolvidos em 'depósitos de hot money' nos 'mercados emergentes' da América Latina e do Sudeste Asiático, sem falar na lavagem de dinheiro e no estabelecimento de 'bancos privados' (especializados em 'dar assessoria a clientes ricos') em muitos paraísos bancários do exterior. O movimento diário de transações com divisas estrangeiras é da ordem de US$ 1 trilhão por dia, do qual apenas 15% correspondem efetivamente ao comércio de commodities e fluxos de capital. Nessa trama financeira global, o dinheiro transita em alta velocidade de um paraíso bancário no exterior para outro, na forma de transferências eletrônicas. Atividades comerciais 'legais' e 'ilegais' ficaram cada vez mais entrelaçadas e grandes somas de riqueza privada não declaradas têm sido acumuladas. Favorecidas pelo PAE e pela concomitante desregulamentação do sistema financeiro, as máfias têm estendido sua atuação à esfera dos bancos internacionais. Em vários países em desenvolvimento, os governos federais estão sob a tutela dessas facções criminosas, que também têm adquirido grande participação acionária em empresas estatais por meio dos programas de privatização patrocinados pelo Banco Mundial. [...]
COBRANDO A DÍVIDA EM ÂMBITO MUNDIAL
  O sistema financeiro global chegou a uma perigosa encruzilhada: no núcleo da crise econômica estão os mercados de dívidas públicas, nos quais centenas de bilhões de dólares em títulos de governo e letras do Tesouro são transacionados diariamente. A situação do mercado de títulos e a negociação maciça de dívidas expressas em dólares são, por sua vez, acompanhadas (numa relação quase simbiótica) por uma intensa disputa entre a América, a Europa e o Japão nos mercados de moeda do mundo. A queda do dólar norte-americano é também consequência do fato de grande parte da dívida pública dos Estados Unidos ser garantida por instituições financeiras alemãs e japonesas, sem contar a enorme quantidade de títulos bancários em dólar norte-americano que circula no Terceiro Mundo e no Leste Europeu. A depreciação do dólar norte-americano, embora não reconhecida formalmente como decorrente do 'atraso no pagamento da dívida consolidada', denota uma contração de fato no valor real da dívida pública dos Estados Unidos transacionada nos mercados de capital internacionais.
  Além disso, no incerto período posterior à crise financeira do México, de 1995, nada foi resolvido: o 'pacote de salvamento' patrocinado pelo Tesouro dos Estados Unidos, pelo FMI e pelo BIS (Banco para Pagamentos Internacionais) foi programado em grande parte para que o México quitasse suas obrigações do serviço da dívida (tesobonos de curto prazo expresso em dólar) junto aos bancos e instituições financeiras internacionais credores. As dívidas privadas foram convenientemente recicladas e transformadas em dívidas públicas. A economia mexicana está enfraquecida durante os próximos anos, levando a uma ruptura política e social ainda mais profunda: nos termos do acordo, os bancos do país serão abertos à aquisição estrangeira e todas as receitas provenientes da exportação de petróleo serão depositadas numa conta bancária em Nova York e administradas pelos credores internacionais. A crise mexicana, todavia, é apenas um fragmento de um complexo vaivém financeiro: o mesmo mecanismo de cobrança da dívida tem sido repetido, paralelamente, à adoção de reformas de mercado ao estilo do FMI, em todas as principais regiões do mundo em desenvolvimento. O FMI fez uma referência intimidatória a esse respeito, dizendo que outros países endividados poderiam ter o mesmo destino do México: 'introduziremos, portanto, uma vigilância ainda mais estreita para ter certeza de que a convalescença vai bem'.
A CONVERSÃO DE DÍVIDAS PRIVADAS
  Desde o começo dos anos 1980, grandes somas da dívida de grandes corporações e bancos comerciais dos países desenvolvidos foram anuladas e transformadas em dívida pública. Seguindo a mesma tendência, concederam-se empréstimos multilaterais e bilaterais a países em desenvolvimento para possibilitar que reembolsassem os bancos comerciais, ou seja, a dívida privada foi convenientemente transformada em dívida pública (bilateral e multilateral), ficando assim reduzido o 'risco' dos bancos comerciais.
  Esse processo de 'conversão da dívida' é uma característica fundamental da crise: as perdas comerciais e bancárias, entre elas os non-performing loans, têm sido sistematicamente transferidos para o Estado. O 'socorro' mexicano é apenas um exemplo desse processo.
  Do mesmo modo, nos Estados Unidos, durante o boom das fusões nos anos 80, o ônus das perdas das corporações foi transferido para o Estado por meio da aquisição de empresas falidas. Essas podiam, então, ser fechadas e escrituradas como perdas fiscais. Os non-performing loans dos grandes bancos comerciais eram, por sua vez, rotineiramente transformados em perdas anteriores à tributação. Os 'pacotes de salvamento' para corporações e bancos comerciais em dificuldade baseiam-se em grande parte no mesmo princípio de transferência do ônus dos débitos de corporações para o Tesouro Nacional.
  Já os vários subsídios do governo nos países da OCDE, em vez de estimularem a criação de empregos, eram rotineiramente usados por grandes corporações para financiar suas fusões, introduzir tecnologia de redução de mão de obra e transferir a produção para os paraísos de mão de obra barata no Terceiro Mundo e no Leste Europeu. Não só os custos associados com a reestruturação da corporação eram arcados pelo Estado, como também os gastos públicos contribuíram diretamente para aumentar a concentração da propriedade e para uma importante diminuição da força de trabalho industrial. Além disso, a série de falências de pequenas e médias empresas e a dispensa de trabalhadores (que também pagam impostos) levaram a uma significativa queda na arrecadação de impostos.
A CRISE FISCAL DO ESTADO
  A crise da dívida no Ocidente provocou também o desenvolvimento de um sistema de tributação altamente regressivo, que contribuiu igualmente para o aumento da dívida pública. Enquanto os impostos das corporações eram reduzidos, as novas arrecadações apropriadas dos assalariados de baixa e média renda (entre elas, os impostos sobre valor agregado) eram recicladas e destinadas ao serviço da dívida. Ao mesmo tempo em que cobrava impostos de seus cidadãos, o Estado pagava um 'tributo' (sob a forma de 'favores' e subsídios) para os grandes negócios.
  Estimuladas pelas novas tecnologias bancárias, a fuga dos lucros das corporações para paraísos bancários no exterior, como Bahamas, Suíça, Ilhas do Canal, Luxemburgo etc., contribuindo para exacerbar ainda mais a crise fiscal. As Ilhas Cayman, colônia da Coroa Britânica no Caribe, por exemplo, são o quinto maior centro bancário do mundo em termos de volume de depósitos (feitos, na maioria, pelas corporações Shell). O aumento do déficit orçamentário dos Estados Unidos está diretamente ligado à evasão em massa de impostos e à fuga dos lucros não declarados das corporações. Grandes somas de dinheiro depositadas nas Ilhas Cayman e nas Bahamas (parte das quais é controlada pelo crime organizado) são usadas para financiar investimentos em negócios nos Estados Unidos.
SOB A TUTELA POLÍTICA DO CAPITAL FINANCEIRO
  Nos países desenvolvidos, criou-se um círculo vicioso. Os receptores de 'favores' do governo tornaram-se credores do Estado. A dívida pública que o Tesouro transformava em títulos para financiar grandes negócios era adquirida por instituições bancárias e financeiras que, ao mesmo tempo, recebiam subsídios estatais. Uma situação absurda: o Estado 'financiava seu próprio endividamento'; os 'favores' do governo estavam sendo reutilizados para comprar obrigações e títulos do Tesouro. O governo estava espremido entre grupos empresariais que faziam lobby para obter subsídios, de um lado, e seus credores financeiros, do outro. E, uma vez que grande parte da dívida pública era garantida por bancos privados e instituições financeiras, estes também podiam pressionar os governos para ter maior domínio sobre os recursos públicos.
A 'INDEPENDÊNCIA' ILUSÓRIA DOS BANCOS CENTRAIS
  Os estatutos dos bancos centrais, nos países, tanto em desenvolvimento como desenvolvidos, têm sido modificados para satisfazer as exigências dos mercados financeiros. Esses bancos estão cada vez mais sob a tutela dos credores do Estado. No Terceiro Mundo e no Leste Europeu, eles são amplamente regulados pelo FMI, segundo os interesses dos Clubes de Paris e de Londres.
  No Ocidente, eles devem tornar-se 'independentes' e 'protegidos de influência política'. Na prática, isso significa que os tesouros nacionais estão cada vez mais à mercê dos credores comerciais privados. De acordo com seus novos estatutos, o Banco Central não pode ser usado como credor do Estado. Pelo artigo 104 do Tratado de Maastrich, por exemplo, ele não pode ser forçado a emprestar para o governo. Esses estatutos, portanto, levam diretamente ao aumento da dívida pública garantida por instituições financeiras e bancárias privadas.
  Na prática, o Banco Central (que não responde nem ao governo nem ao Poder Legislativo) opera como uma burocracia autônoma, porém, sob a tutela dos interesses das instituições finaceiras e bancárias privadas. Estas (e não o governo) determinam a direção da política monetária.
  A política monetária em todos os países não é mais um meio de intervenção do Estado: está amplamente sob o domínio dos bancos privados. Em contraste com a marcante escassez de fundos do Estado, a emissão de moeda (que inclui o comando sobre os recursos reais) ocorre na trama interna do sistema bancário internacional, tendo por único objetivo a busca da riqueza privada. Poderosos agentes financeiros têm a habilidade não só de criar e movimentar dinheiro sem impedimentos, mas também de manipular as taxas de juros e precipitar a desvalorização das moedas fortes, como ocorreu com a queda espetacular da libra esterlina em setembro de 1992. Isso significa, na prática, que os bancos centrais não são mais capazes de regular a emissão de dinheiro de acordo com os grandes interesses da sociedade (por exemplo, para mobilizar a produção e gerar empregos).
  A base monetária, instrumento fundamental que regula a mobilização dos recursos humanos e materiais, está nas mãos dos credores privados. No Terceiro Mundo e no Leste Europeu, o 'congelamento da emissão de moeda' (ou seja, de dinheiro para financiar as despesas do governo) imposto pelo FMI constitui um instrumento tão poderoso que é capaz de paralisar economias inteiras. Na Federação Russa, por exemplo, as restrições que o Banco Central fez aos créditos sob responsabilidade do FMI para empresas estatais estão levando, desde 1992, à desintegração de setores inteiros da economia russa.
CRISE DO ESTADO
  No Ocidente, o sitema democrático foi colocado diante de um dilema: os eleitos para altos cargos públicos atuam cada vez mais como burocratas e os credores do Estado tornaram-se depositários do poder político real, agindo discretamente nos bastidores. Paralelamente, desenvolveu-se uma ideologia política uniforme, e um 'consenso' em torno da reforma macroeconômica abrange todo o espectro político. Nos Estados Unidos, democratas e republicanos uniram-se; na União Europeia, governos socialistas tornaram-se protagonistas do 'forte remédio econômico'. O destino da política pública é negociada nos mercados de USbônus e Eurobônus, opções políticas são apresentadas mecanicamente através dos mesmos slogans econômicos convencionais: 'É preciso reduzir o déficit, devemos combater a inflação'; 'A economia está superaquecida: é preciso detê-la!'.
  Os interesses do establishment financeiro (particularmente nos Estados Unidos) têm premeado os altos escalões do Tesouro e dos bancos multilaterais; o secretário do Tesouro norte-americano no governo de Bill Clinton, Robert Rubin, foi um alto executivo bancário do Goldman Sachs; o antigo presidente do Banco Mundial, Lewis Preston, foi diretor-presidente do J. P. Morgan, e assim por diante. Enquanto os financistas são envolvidos na política, os políticos adquirem cada vez maior participação financeira na comunidade de negócios. Prejudicado pelos conflitos de interesses, o sistema de governo no Ocidente está em crise, como resultado de sua relação ambivalente com preocupações econômicas e financeiras privadas. Nessas condições, a prática da democracia nos países desenvolvidos tornou-se também um ritual. Nenhuma política alternativa é oferecida para os eleitores. Como em um Estado monopartidário, os resultados das urnas não têm virtualmente qualquer impacto sobre a real conduta da política econômica e social do Estado. Este, por sua vez, tornou-se, sob a agenda da política neoliberal, crescentemente repressivo no controle dos direitos democráticos de seus cidadãos.
CRISE ECONÔMICA GLOBAL
  A depressão dos anos 1930 - concentrada principalmente nos países capitalistas avançados - testemunhou (apesar da queda dos preços das commodities) um abrandamento da dependência colonial, dando, portanto, a muitos países em desenvolvimento um 'espaço temporário para respirar'. Durante a década de 1930, registrou-se um importante crescimento econômico nos que estavam parcialmente 'desligados' do mercado mundial (como os da América Latina) ou (politicamente) isolados (como a União Soviética, durante seus primeiros planos quinquenais). Em nítido contraste, a atual crise econômica fez os desenvolvidos apertarem o cerco em torno de suas antigas colônias e, ao mesmo tempo, empurrou os antigos países 'socialistas' para a órbita do mercado mundial. Com algumas exceções, o sistema do mercado global marca o desaparecimento da 'economia nacional' (isto é, da indústria nacional voltada para o mercado doméstico). No Terceiro Mundo e no antigo bloco comunista, as estruturas de comércio regional foram abolidas e grande parte da base industrial (que anteriormente supria o mercado interno) foi desmantelada.
  Tanto no sul como no leste, a compressão dos padrões de vida (sem falar na falência das instituições), desde o começo dos anos 1980, foi consideravelmente maior do que a experimentada pelos países ricos durante os anos 1930. A globalização da pobreza no final do século XX e início do século XXI não tem precedentes na história mundial. Todavia, essa pobreza não se deve a uma 'escassez' de recursos humanos e materiais, mas, antes, a um sistema global de oferta nutrido pelo desemprego e pela minimização do preço da mão de obra em todo o mundo.
  Não há 'soluções' objetivas e fáceis para a crise financeira global que se prenuncia perigosamente para os anos vindouros. A simples acusação a governos nacionais e à burocracia sediada em Washington não pode constituir a base da ação social. Os agentes financeiros, até mesmo os bancos e as corporações transnacionais, devem ser colocados em mira. Movimentos sociais e organizações populares, agindo solidariamente nos âmbitos nacional e internacional, devem ter por alvo os vários interesses financeiros que se alimentam desse destrutivo modelo econômico.
  Exigem-se mecanismos financeiros concretos, que assegurem o cancelamento da dívida externa dos países em desenvolvimento e a write-down das dívidas públicas dos países desenvolvidos, ao mesmo tempo em que as políticas regulatórias monitorem cuidadosamente as atividades das instituições de Bretton Woods e 'democratizem' as estruturas dos bancos centrais. Contudo, essas medidas não são suficientes por si sós, não questionam o papel e a legitimidade dos credores, não modificam o funcionamento do capitalismo global. A acumulação de grandes dívidas públicas (e a pressão exercida pelos credores sobre o Estado nacional em todo o mundo) está no núcleo desta crise, exigindo regulação e intervenção sociais efetivas nos mercados financeiros, mais precisamente uma forma de 'desarmamento financeiro', energicamente adotado pela sociedade e em oposição a esses interesses financeiros.
  A comunidade mundial deve reconhecer o fracasso do sistema neoliberal dominante. À medida que a crise vai se aprofundando, há cada vez menos vias políticas disponíveis. Além disso, sem reformas econômicas e sociais fundamentais, a ruína fundamental não pode ser contida. É de crucial importância a articulação de novas regras para governar o comércio mundial,  bem como o desenvolvimento de uma agenda política macroeconômica expansionista (pelo 'lado da demanda') voltada para a diminuição da pobreza e para a geração de empregos e o aumento do poder de compra no mundo inteiro.
  O que resta saber é se esse sistema econômico global, baseado no incessante acúmulo de riqueza privada, pode ser submetido a um processo de reforma significativo, ou seja, se as alterações nas regras do comércio e das finanças mundiais, implicando a remodelação da Organização Mundial do Comércio (OMC) e das instituições de Bretton Woods, são de algum modo viáveis com a organização política e social existente.
  Não há 'soluções técnicas' para essa crise. É improvável que se implementem reformas significativas sem uma persistente luta social. O que está em jogo é a maciça concentração de riqueza financeira e o dominio dos recursos reais por uma minoria social que também controla a emissão de moeda no interior do sistema bancário internacional.
  A 'reapropriação da política monetária' pela sociedade, tirando o Banco Central das garras dos credores privados, é parte dessa luta, que deve ter uma base ampla e democrática, abrangendo todos os setores da sociedade em todos os níveis, em todos os países, unindo, numa grande investida, trabalhadores, agricultores, produtores independentes, profissionais liberais, artistas, funcionários públicos, membros do clero, estudantes e intelectuais. A 'globalização' dessa luta é fundamental, exigindo um grau de solidariedade e internacionalismo sem precedente na história mundial. O sistema econômico global alimenta-se da dissensão social entre os países e dentro deles. A unidade de propósitos e a coordenação em âmbito mundial entre diversos grupos e movimentos sociais são cruciais. É necessária uma grande investida, que una os movimentos sociais de todas as principais regiões do mundo em torno de um objetivo e de um compromisso comuns para a eliminação da pobreza e uma duradoura paz mundial."
FONTE:  CHOSSUDOVSKY, Michel. A globalização da pobreza: impacto das reformas do FMI e do Banco Mundial. São Paulo: Moderna, 1999.

ADSENSE

Pesquisar este blog