segunda-feira, 13 de agosto de 2012

A GLOBALIZAÇÃO DA POBREZA

  "A crise global não está concentrada em uma única região do mundo. As economias nacionais estão interligadas, os bancos comerciais e os negócios (controlados por cerca de 750 corporações globais) transcendem limites econômicos, o comércio internacional está integrado e os mercados financeiros de todo o mundo conectam-se por um sistema de telecomunicação em tempo real. A crise real é muito mais complexa do que a do período entreguerras; suas consequências sociais e implicações geopolíticas, de longo alcance, são sentidas particularmente nesse incerto período pós-Guerra Fria.
  O movimento da economia global é regulado por um processo de cobrança de  dívida em âmbito mundial, que sufoca as instituições do Estado nacional e contribui para eliminar empregos e reduzir a atividade econômica. No mundo em desenvolvimento, o peso da dívida externa atinge dois trilhões de dólares: países inteiros foram desestabilizados em consequência do colapso das moedas nacionais, o que resultou frequentemente na eclosão de lutas sociais, conflitos étnicos e guerra civil.
  As reformas macroeconômicas são um reflexo concreto do sistema capitalista pós-guerra e de sua evolução destrutiva. A direção macroeconômica adotada nos âmbitos nacional e internacional desempenha um papel central no surgimento de uma nova ordem econômica global: essas reformas regulam o processo de acumulação capitalista no mundo todo.
  Todavia esse não é um sistema de livre-mercado: embora sustentado por um discurso neoliberal, o chamado 'programa de ajuste estrutural' patrocinado pelas instituições de Bretton Woods constitui um novo esquema intervencionista.
  Desde a crise da dívida do início dos anos 80, a busca do lucro máximo tem sido engendrada pela política macroeconômica, ocasionando o desmantelamento das instituições do Estado, o rompimento das fronteiras econômicas e o empobrecimento de milhões de pessoas.
A ECONOMIA BASEADA NA MÃO DE OBRA BARATA
  A análise do sistema de economia global concentra-se no papel do desemprego mundial. Nesse contexto, as reformas patrocinadas pelo FMI têm sido decisivas no controle dos custos de mão da obra em grande número de países. Todavia, a minimização desses custos solapa a expansão dos mercados consumidores, ou seja, o empobrecimento de grandes setores da população mundial, derivado da reforma macroeconômica, conduz a uma redução crítica do poder de compra.
  Por sua vez, os baixos níveis salariais, tanto nos países em desenvolvimento como nos desenvolvidos, repercutem sobre a produção, contribuindo para uma série de fechamentos e falências de fábricas. Em cada fase da crise, o movimento se dá em direção à superprodução global e ao declínio da demanda do consumidor. Reduzindo a capacidade de consumo da sociedade, as reformas macroeconômicas aplicadas em todo o mundo obstruem, por fim, a expansão do capital.
  Num sistema que gera superprodução, as corporações internacionais e as sociedades mercantis só podem 'expandir' seus mercados solapando ou destruindo concomitantemente a base produtiva doméstica dos países em desenvolvimento, por meio da desorganização e do aniquilamento da produção local destinada ao mercado interno. A pobreza é um item introduzido no lado da oferta. Os mercados emergentes são abertos à custa da substituição simultânea de um sistema produtivo preexistente; pequenas e médias empresas são empurradas à falência ou obrigadas a produzir para um distribuidor global; empresas estatais são privatizadas ou fechadas; agricultores independentes são empobrecidos.
  O sistema econômico global, portanto, caracteriza-se por duas forças contraditórias: a consolidação de uma economia de mão de obra barata global e a procura de novos mercados consumidores. A primeira solapa a segunda. A ampliação de mercados para a corporação global requer a fragmentação e a destruição da economia doméstica. As barreiras para o movimento de dinheiro e mercadorias são removidas, o crédito é desregulamentado, a terra e os bens do Estado são assumidos pelo capital internacional...
DÍVIDA E REFORMA MACROECONÔMICA NOS PAÍSES DESENVOLVIDOS
  Esse estudo concentra-se principalmente nas experiências dos países em desenvolvimento. Contudo, desde a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o fim da União Soviética, o processo de reestruturação de economia mundial vem se modificando. Desenvolveu-se em todo o mundo um 'consenso político' sobre política macroeconômica; os governos têm adotado inequivocadamente uma agenda política neoliberal. Desde o início da década de 1990, as reformas macroeconômicas adotadas nos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) têm apresentado muitos dos ingredientes essenciais dos programas de ajuste estrutural (PAEs) aplicadas no Terceiro Mundo e no Leste Europeu.
  Os mecanismos institucionais, todavia, são diferentes. Nos países desenvolvidos, as instituições de Bretton Woods não têm papel importante na 'fiscalização política'. No Ocidente, os credores tende a exercer suas pressões sobre os governos nacionais sem a intermediação da burocracia sediada em Washington. Os débitos das empresas paraestatais e de serviços públicos, e dos governos municipais, estaduais e federais são cuidadosamente separados por categorias e 'classificados' por mercados financeiros (por exemplo, pela Moody's e pela Standard & Poor). Além disso, espera-se cada vez mais que os ministros da Fazenda estejam ligados a grandes firmas de investimento e bancos comerciais. O rebaixamento da categoria da dívida consolidada da Suécia em 1995 pela Moody's foi instrumental para a decisão  do governo social-democrata de minoria de cortar programas de bem-estar social essenciais, entre eles a pensão das crianças e o seguro-desemprego. Da mesma forma, a classificação do crédito da dívida pública do Canadá pela Moody's foi um dos principais fatores na adoção do PAE desse país em 1995-1996, que envolveu grandes cortes nos programas sociais e demissões  de funcionários públicos. Nos Estados Unidos, a controversa 'emenda do orçamento equilibrado', requerida por Wall Street (que por pouco não foi aprovada no Senado) em 1995, teria inserido os direitos dos credores do Estado na Constituição norte-americana.
  No grupo dos países da OCDE, as dívidas públicas aumentaram além dos limites durante a década de 1980. Por ironia, o próprio processo de 'reembolso dessa dívida global' levou ao seu aumento através da criação sistemática de novas dívidas. Nos Estados Unidos - que são de longe os maiores devedores -, a dívida pública cresceu cinco vezes durante o período Reagan-Bush. O acúmulo de grandes dívidas públicas nos países do Ocidente, por sua vez, conferiu aos interesses financeiros e bancários não só uma 'alavancagem política' mas também o poder de ditar a política social e econômica do governo.
MONOPÓLIOS GLOBAIS
  Conforme a recessão aumenta, a economia mundial é dominada por um punhado de bancos internacionais e monopólios globais. Esses poderosos interesses financeiros e industriais entram cada vez mais em conflitos com os da sociedade civil. Embora o espírito do liberalismo anglo-saxão tenha um compromisso com o 'fomento da competição', a política macroeconômica do G-7 tem sido, na prática (por meio de um rígido controle fiscal e monetário), responsável por uma onda de fusões (mergers) e compras em corporação, bem como pela falência planejada de empresas de pequeno e médio porte.
  Grandes companhias multinacionais (particularmente nos Estados Unidos e no Canadá) têm assumido o controle de mercados em âmbito local (especialmente na economia de serviços) por meio do sistema de incorporação de franquias. Pequenas empresas são erradicadas ou encerradas, como as chamadas 'franqueadas', na rede de um distribuidor global. esse processo permite que o grande capital da corporação ('o franqueador') tenha controle sobre o capital humano e o empreendimento. Uma grande fatia dos lucros de pequenas firmas e/ou varejistas é apropriada desse modo, embora o ônus das despesas de investimento seja assumido pelo produtor independente.
  Um processo paralelo pode ser observado na Europa Ocidental. Com o Tratado de Maastrich, o processo de reestruturação política da União Europeia atende cada vez mais a interesses financeiros dominantes às expensas da unidade das sociedades europeias. Nesse sistema, o poder do Estado tem sancionado deliberadamente o progresso de monopólios privados: o grande capital destrói o pequeno em todas as suas formas. Com o avanço da formação de blocos econômicos, tanto na Europa como na América do Norte, o empresário local e regional é aniquilado, transforma-se a vida da cidade e elimina-se a propriedade individual de pequena escala. O 'livre-comércio' e a integração econômica proporcionam maior mobilidade à empresa global, enquanto, simultaneamente, suprimem (através de isenção de impostos e barreiras institucionais) o movimento do pequeno capital local. A 'integração econômica' (sob o domínio da empresa global), embora apresentando uma aparência de unidade política, promove frequentemente o facciosismo e o conflito entre as sociedades nacionais e dentro delas.
INSTABILIDADE FINANCEIRA
  A desintegração da 'economia real' sob o impacto da reforma macroeconômica é acompanhada de um sistema financeiro global altamente instável. Desde a Segunda-feira negra, 19 de outubro de 1987, que os analistas consideram quase uma derrocada total da Bolsa de Valores de Nova York, vem se desenvolvendo um padrão altamente volátil, marcado por convulsões frequentes e cadas vez mais sérias nas principais bolsas de valores, pela ruína de moedas nacionais no Leste Europeu e na América Latina e pela queda espetacular dos novos 'mercados financeiros periféricos' (por exemplo, Cidade do México, Bangcoc, Cairo, Bombaim) precipitada pela 'realização de lucros' e pela súbita retirada dos grandes investidores institucionais. Assim, os mercados de ações periféricos transformaram-se em um novo meio de extração de excedente de países em desenvolvimento.
Segunda-feira negra (19 de outubro de 1987) - foi uma queda profunda e inesperada das ações nas bolsas de valores do mundo
  Houve também o florescimento de um novo ambiente financeiro global: a onda de fusões em corporações no final da década de 1980 abriu caminho para a consolidação de uma nova geração de financeiras agrupadas em torno dos bancos mercantis: investidores institucionais, corretoras de ações, grandes companhias de seguros etc. Nesse processo, as funções dos bancos comerciais aglutinaram-se com as dos bancos de investimentos e das corretoras de ações.
  Embora tenham grande poder nos mercados financeiros, esses 'administradores de dinheiro' são cada vez mais afastados de funções empresariais na economia real. Suas atividades (que escapam da regulamentação do Estado) incluem transações especulativas no mercado de futuros e derivativos e a manipulação de mercados monetários. Os grandes operadores financeiros estão rotineiramente envolvidos em 'depósitos de hot money' nos 'mercados emergentes' da América Latina e do Sudeste Asiático, sem falar na lavagem de dinheiro e no estabelecimento de 'bancos privados' (especializados em 'dar assessoria a clientes ricos') em muitos paraísos bancários do exterior. O movimento diário de transações com divisas estrangeiras é da ordem de US$ 1 trilhão por dia, do qual apenas 15% correspondem efetivamente ao comércio de commodities e fluxos de capital. Nessa trama financeira global, o dinheiro transita em alta velocidade de um paraíso bancário no exterior para outro, na forma de transferências eletrônicas. Atividades comerciais 'legais' e 'ilegais' ficaram cada vez mais entrelaçadas e grandes somas de riqueza privada não declaradas têm sido acumuladas. Favorecidas pelo PAE e pela concomitante desregulamentação do sistema financeiro, as máfias têm estendido sua atuação à esfera dos bancos internacionais. Em vários países em desenvolvimento, os governos federais estão sob a tutela dessas facções criminosas, que também têm adquirido grande participação acionária em empresas estatais por meio dos programas de privatização patrocinados pelo Banco Mundial. [...]
COBRANDO A DÍVIDA EM ÂMBITO MUNDIAL
  O sistema financeiro global chegou a uma perigosa encruzilhada: no núcleo da crise econômica estão os mercados de dívidas públicas, nos quais centenas de bilhões de dólares em títulos de governo e letras do Tesouro são transacionados diariamente. A situação do mercado de títulos e a negociação maciça de dívidas expressas em dólares são, por sua vez, acompanhadas (numa relação quase simbiótica) por uma intensa disputa entre a América, a Europa e o Japão nos mercados de moeda do mundo. A queda do dólar norte-americano é também consequência do fato de grande parte da dívida pública dos Estados Unidos ser garantida por instituições financeiras alemãs e japonesas, sem contar a enorme quantidade de títulos bancários em dólar norte-americano que circula no Terceiro Mundo e no Leste Europeu. A depreciação do dólar norte-americano, embora não reconhecida formalmente como decorrente do 'atraso no pagamento da dívida consolidada', denota uma contração de fato no valor real da dívida pública dos Estados Unidos transacionada nos mercados de capital internacionais.
  Além disso, no incerto período posterior à crise financeira do México, de 1995, nada foi resolvido: o 'pacote de salvamento' patrocinado pelo Tesouro dos Estados Unidos, pelo FMI e pelo BIS (Banco para Pagamentos Internacionais) foi programado em grande parte para que o México quitasse suas obrigações do serviço da dívida (tesobonos de curto prazo expresso em dólar) junto aos bancos e instituições financeiras internacionais credores. As dívidas privadas foram convenientemente recicladas e transformadas em dívidas públicas. A economia mexicana está enfraquecida durante os próximos anos, levando a uma ruptura política e social ainda mais profunda: nos termos do acordo, os bancos do país serão abertos à aquisição estrangeira e todas as receitas provenientes da exportação de petróleo serão depositadas numa conta bancária em Nova York e administradas pelos credores internacionais. A crise mexicana, todavia, é apenas um fragmento de um complexo vaivém financeiro: o mesmo mecanismo de cobrança da dívida tem sido repetido, paralelamente, à adoção de reformas de mercado ao estilo do FMI, em todas as principais regiões do mundo em desenvolvimento. O FMI fez uma referência intimidatória a esse respeito, dizendo que outros países endividados poderiam ter o mesmo destino do México: 'introduziremos, portanto, uma vigilância ainda mais estreita para ter certeza de que a convalescença vai bem'.
A CONVERSÃO DE DÍVIDAS PRIVADAS
  Desde o começo dos anos 1980, grandes somas da dívida de grandes corporações e bancos comerciais dos países desenvolvidos foram anuladas e transformadas em dívida pública. Seguindo a mesma tendência, concederam-se empréstimos multilaterais e bilaterais a países em desenvolvimento para possibilitar que reembolsassem os bancos comerciais, ou seja, a dívida privada foi convenientemente transformada em dívida pública (bilateral e multilateral), ficando assim reduzido o 'risco' dos bancos comerciais.
  Esse processo de 'conversão da dívida' é uma característica fundamental da crise: as perdas comerciais e bancárias, entre elas os non-performing loans, têm sido sistematicamente transferidos para o Estado. O 'socorro' mexicano é apenas um exemplo desse processo.
  Do mesmo modo, nos Estados Unidos, durante o boom das fusões nos anos 80, o ônus das perdas das corporações foi transferido para o Estado por meio da aquisição de empresas falidas. Essas podiam, então, ser fechadas e escrituradas como perdas fiscais. Os non-performing loans dos grandes bancos comerciais eram, por sua vez, rotineiramente transformados em perdas anteriores à tributação. Os 'pacotes de salvamento' para corporações e bancos comerciais em dificuldade baseiam-se em grande parte no mesmo princípio de transferência do ônus dos débitos de corporações para o Tesouro Nacional.
  Já os vários subsídios do governo nos países da OCDE, em vez de estimularem a criação de empregos, eram rotineiramente usados por grandes corporações para financiar suas fusões, introduzir tecnologia de redução de mão de obra e transferir a produção para os paraísos de mão de obra barata no Terceiro Mundo e no Leste Europeu. Não só os custos associados com a reestruturação da corporação eram arcados pelo Estado, como também os gastos públicos contribuíram diretamente para aumentar a concentração da propriedade e para uma importante diminuição da força de trabalho industrial. Além disso, a série de falências de pequenas e médias empresas e a dispensa de trabalhadores (que também pagam impostos) levaram a uma significativa queda na arrecadação de impostos.
A CRISE FISCAL DO ESTADO
  A crise da dívida no Ocidente provocou também o desenvolvimento de um sistema de tributação altamente regressivo, que contribuiu igualmente para o aumento da dívida pública. Enquanto os impostos das corporações eram reduzidos, as novas arrecadações apropriadas dos assalariados de baixa e média renda (entre elas, os impostos sobre valor agregado) eram recicladas e destinadas ao serviço da dívida. Ao mesmo tempo em que cobrava impostos de seus cidadãos, o Estado pagava um 'tributo' (sob a forma de 'favores' e subsídios) para os grandes negócios.
  Estimuladas pelas novas tecnologias bancárias, a fuga dos lucros das corporações para paraísos bancários no exterior, como Bahamas, Suíça, Ilhas do Canal, Luxemburgo etc., contribuindo para exacerbar ainda mais a crise fiscal. As Ilhas Cayman, colônia da Coroa Britânica no Caribe, por exemplo, são o quinto maior centro bancário do mundo em termos de volume de depósitos (feitos, na maioria, pelas corporações Shell). O aumento do déficit orçamentário dos Estados Unidos está diretamente ligado à evasão em massa de impostos e à fuga dos lucros não declarados das corporações. Grandes somas de dinheiro depositadas nas Ilhas Cayman e nas Bahamas (parte das quais é controlada pelo crime organizado) são usadas para financiar investimentos em negócios nos Estados Unidos.
SOB A TUTELA POLÍTICA DO CAPITAL FINANCEIRO
  Nos países desenvolvidos, criou-se um círculo vicioso. Os receptores de 'favores' do governo tornaram-se credores do Estado. A dívida pública que o Tesouro transformava em títulos para financiar grandes negócios era adquirida por instituições bancárias e financeiras que, ao mesmo tempo, recebiam subsídios estatais. Uma situação absurda: o Estado 'financiava seu próprio endividamento'; os 'favores' do governo estavam sendo reutilizados para comprar obrigações e títulos do Tesouro. O governo estava espremido entre grupos empresariais que faziam lobby para obter subsídios, de um lado, e seus credores financeiros, do outro. E, uma vez que grande parte da dívida pública era garantida por bancos privados e instituições financeiras, estes também podiam pressionar os governos para ter maior domínio sobre os recursos públicos.
A 'INDEPENDÊNCIA' ILUSÓRIA DOS BANCOS CENTRAIS
  Os estatutos dos bancos centrais, nos países, tanto em desenvolvimento como desenvolvidos, têm sido modificados para satisfazer as exigências dos mercados financeiros. Esses bancos estão cada vez mais sob a tutela dos credores do Estado. No Terceiro Mundo e no Leste Europeu, eles são amplamente regulados pelo FMI, segundo os interesses dos Clubes de Paris e de Londres.
  No Ocidente, eles devem tornar-se 'independentes' e 'protegidos de influência política'. Na prática, isso significa que os tesouros nacionais estão cada vez mais à mercê dos credores comerciais privados. De acordo com seus novos estatutos, o Banco Central não pode ser usado como credor do Estado. Pelo artigo 104 do Tratado de Maastrich, por exemplo, ele não pode ser forçado a emprestar para o governo. Esses estatutos, portanto, levam diretamente ao aumento da dívida pública garantida por instituições financeiras e bancárias privadas.
  Na prática, o Banco Central (que não responde nem ao governo nem ao Poder Legislativo) opera como uma burocracia autônoma, porém, sob a tutela dos interesses das instituições finaceiras e bancárias privadas. Estas (e não o governo) determinam a direção da política monetária.
  A política monetária em todos os países não é mais um meio de intervenção do Estado: está amplamente sob o domínio dos bancos privados. Em contraste com a marcante escassez de fundos do Estado, a emissão de moeda (que inclui o comando sobre os recursos reais) ocorre na trama interna do sistema bancário internacional, tendo por único objetivo a busca da riqueza privada. Poderosos agentes financeiros têm a habilidade não só de criar e movimentar dinheiro sem impedimentos, mas também de manipular as taxas de juros e precipitar a desvalorização das moedas fortes, como ocorreu com a queda espetacular da libra esterlina em setembro de 1992. Isso significa, na prática, que os bancos centrais não são mais capazes de regular a emissão de dinheiro de acordo com os grandes interesses da sociedade (por exemplo, para mobilizar a produção e gerar empregos).
  A base monetária, instrumento fundamental que regula a mobilização dos recursos humanos e materiais, está nas mãos dos credores privados. No Terceiro Mundo e no Leste Europeu, o 'congelamento da emissão de moeda' (ou seja, de dinheiro para financiar as despesas do governo) imposto pelo FMI constitui um instrumento tão poderoso que é capaz de paralisar economias inteiras. Na Federação Russa, por exemplo, as restrições que o Banco Central fez aos créditos sob responsabilidade do FMI para empresas estatais estão levando, desde 1992, à desintegração de setores inteiros da economia russa.
CRISE DO ESTADO
  No Ocidente, o sitema democrático foi colocado diante de um dilema: os eleitos para altos cargos públicos atuam cada vez mais como burocratas e os credores do Estado tornaram-se depositários do poder político real, agindo discretamente nos bastidores. Paralelamente, desenvolveu-se uma ideologia política uniforme, e um 'consenso' em torno da reforma macroeconômica abrange todo o espectro político. Nos Estados Unidos, democratas e republicanos uniram-se; na União Europeia, governos socialistas tornaram-se protagonistas do 'forte remédio econômico'. O destino da política pública é negociada nos mercados de USbônus e Eurobônus, opções políticas são apresentadas mecanicamente através dos mesmos slogans econômicos convencionais: 'É preciso reduzir o déficit, devemos combater a inflação'; 'A economia está superaquecida: é preciso detê-la!'.
  Os interesses do establishment financeiro (particularmente nos Estados Unidos) têm premeado os altos escalões do Tesouro e dos bancos multilaterais; o secretário do Tesouro norte-americano no governo de Bill Clinton, Robert Rubin, foi um alto executivo bancário do Goldman Sachs; o antigo presidente do Banco Mundial, Lewis Preston, foi diretor-presidente do J. P. Morgan, e assim por diante. Enquanto os financistas são envolvidos na política, os políticos adquirem cada vez maior participação financeira na comunidade de negócios. Prejudicado pelos conflitos de interesses, o sistema de governo no Ocidente está em crise, como resultado de sua relação ambivalente com preocupações econômicas e financeiras privadas. Nessas condições, a prática da democracia nos países desenvolvidos tornou-se também um ritual. Nenhuma política alternativa é oferecida para os eleitores. Como em um Estado monopartidário, os resultados das urnas não têm virtualmente qualquer impacto sobre a real conduta da política econômica e social do Estado. Este, por sua vez, tornou-se, sob a agenda da política neoliberal, crescentemente repressivo no controle dos direitos democráticos de seus cidadãos.
CRISE ECONÔMICA GLOBAL
  A depressão dos anos 1930 - concentrada principalmente nos países capitalistas avançados - testemunhou (apesar da queda dos preços das commodities) um abrandamento da dependência colonial, dando, portanto, a muitos países em desenvolvimento um 'espaço temporário para respirar'. Durante a década de 1930, registrou-se um importante crescimento econômico nos que estavam parcialmente 'desligados' do mercado mundial (como os da América Latina) ou (politicamente) isolados (como a União Soviética, durante seus primeiros planos quinquenais). Em nítido contraste, a atual crise econômica fez os desenvolvidos apertarem o cerco em torno de suas antigas colônias e, ao mesmo tempo, empurrou os antigos países 'socialistas' para a órbita do mercado mundial. Com algumas exceções, o sistema do mercado global marca o desaparecimento da 'economia nacional' (isto é, da indústria nacional voltada para o mercado doméstico). No Terceiro Mundo e no antigo bloco comunista, as estruturas de comércio regional foram abolidas e grande parte da base industrial (que anteriormente supria o mercado interno) foi desmantelada.
  Tanto no sul como no leste, a compressão dos padrões de vida (sem falar na falência das instituições), desde o começo dos anos 1980, foi consideravelmente maior do que a experimentada pelos países ricos durante os anos 1930. A globalização da pobreza no final do século XX e início do século XXI não tem precedentes na história mundial. Todavia, essa pobreza não se deve a uma 'escassez' de recursos humanos e materiais, mas, antes, a um sistema global de oferta nutrido pelo desemprego e pela minimização do preço da mão de obra em todo o mundo.
  Não há 'soluções' objetivas e fáceis para a crise financeira global que se prenuncia perigosamente para os anos vindouros. A simples acusação a governos nacionais e à burocracia sediada em Washington não pode constituir a base da ação social. Os agentes financeiros, até mesmo os bancos e as corporações transnacionais, devem ser colocados em mira. Movimentos sociais e organizações populares, agindo solidariamente nos âmbitos nacional e internacional, devem ter por alvo os vários interesses financeiros que se alimentam desse destrutivo modelo econômico.
  Exigem-se mecanismos financeiros concretos, que assegurem o cancelamento da dívida externa dos países em desenvolvimento e a write-down das dívidas públicas dos países desenvolvidos, ao mesmo tempo em que as políticas regulatórias monitorem cuidadosamente as atividades das instituições de Bretton Woods e 'democratizem' as estruturas dos bancos centrais. Contudo, essas medidas não são suficientes por si sós, não questionam o papel e a legitimidade dos credores, não modificam o funcionamento do capitalismo global. A acumulação de grandes dívidas públicas (e a pressão exercida pelos credores sobre o Estado nacional em todo o mundo) está no núcleo desta crise, exigindo regulação e intervenção sociais efetivas nos mercados financeiros, mais precisamente uma forma de 'desarmamento financeiro', energicamente adotado pela sociedade e em oposição a esses interesses financeiros.
  A comunidade mundial deve reconhecer o fracasso do sistema neoliberal dominante. À medida que a crise vai se aprofundando, há cada vez menos vias políticas disponíveis. Além disso, sem reformas econômicas e sociais fundamentais, a ruína fundamental não pode ser contida. É de crucial importância a articulação de novas regras para governar o comércio mundial,  bem como o desenvolvimento de uma agenda política macroeconômica expansionista (pelo 'lado da demanda') voltada para a diminuição da pobreza e para a geração de empregos e o aumento do poder de compra no mundo inteiro.
  O que resta saber é se esse sistema econômico global, baseado no incessante acúmulo de riqueza privada, pode ser submetido a um processo de reforma significativo, ou seja, se as alterações nas regras do comércio e das finanças mundiais, implicando a remodelação da Organização Mundial do Comércio (OMC) e das instituições de Bretton Woods, são de algum modo viáveis com a organização política e social existente.
  Não há 'soluções técnicas' para essa crise. É improvável que se implementem reformas significativas sem uma persistente luta social. O que está em jogo é a maciça concentração de riqueza financeira e o dominio dos recursos reais por uma minoria social que também controla a emissão de moeda no interior do sistema bancário internacional.
  A 'reapropriação da política monetária' pela sociedade, tirando o Banco Central das garras dos credores privados, é parte dessa luta, que deve ter uma base ampla e democrática, abrangendo todos os setores da sociedade em todos os níveis, em todos os países, unindo, numa grande investida, trabalhadores, agricultores, produtores independentes, profissionais liberais, artistas, funcionários públicos, membros do clero, estudantes e intelectuais. A 'globalização' dessa luta é fundamental, exigindo um grau de solidariedade e internacionalismo sem precedente na história mundial. O sistema econômico global alimenta-se da dissensão social entre os países e dentro deles. A unidade de propósitos e a coordenação em âmbito mundial entre diversos grupos e movimentos sociais são cruciais. É necessária uma grande investida, que una os movimentos sociais de todas as principais regiões do mundo em torno de um objetivo e de um compromisso comuns para a eliminação da pobreza e uma duradoura paz mundial."
FONTE:  CHOSSUDOVSKY, Michel. A globalização da pobreza: impacto das reformas do FMI e do Banco Mundial. São Paulo: Moderna, 1999.

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