quarta-feira, 24 de novembro de 2021

A DISSOLUÇÃO DA IUGOSLÁVIA

   As origens do Estado da Iugoslávia estão no fim da Primeira Guerra Mundial, quando o Império Austro-Húngaro foi desmembrado. Por meio da Declaração de Corfu, aprovada em 1917, os territórios imperiais remanescentes foram unidos no chamado Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos.

  A República Socialista Federativa da Iugoslávia, foi o Estado iugoslavo que existiu do término da Segunda Guerra Mundial (2 de dezembro de 1945) até o fim da Guerra Fria, em 1992.

  Com a forma de governo de uma república socialista, o país era constituído pela união federal de seis repúblicas: Sérvia e suas regiões autônomas: Kosovo e Voivodina, Croácia, Montenegro, Eslovênia, Bósnia-Herzegovina e Macedônia. Ao longo da Guerra Fria, a Iugoslávia foi um membro importante do Movimento Não-Alinhado.

Mapa da antiga Iugoslávia

  A Iugoslávia tornou-se um Estado unificado após a Primeira Guerra Mundial, agregando várias etnias que foram inimigas durante séculos. Esse conflito vem desde a Idade Média, quando os turcos, de religião muçulmana, invadiram e dominaram a Península Balcânica, submetendo os sérvios croatas. Durante a dominação turca, muitos habitantes da região se converteram ao islamismo.

  Essa rivalidade deu-se da seguinte maneira:

  • a Sérvia histórica (Kosovo), povoou-se de albaneses (muçulmanos);
  • na Bósnia-Herzegovina, apareceram os eslavos muçulmanos;
  • os sérvios retiraram-se para o norte, onde se construiu Krajina;
  • os sérvios de Montenegro conseguiram manter sua independência;
  • com o enfraquecimento dos turcos, no século XIX, a Bósnia-Herzegovina passou para o domínio austríaco;
  • em 1878, Sérvia e Montenegro conseguiram a independência do Império Otomano;
  • em 1912, Sérvia, Montenegro, Grécia e Bulgária derrotaram as forças do Império Otomano. Nesse mesmo ano, os sérvios dominaram os últimos territórios dos turcos;
  • em 1913, a Bulgária declarou guerra aos seus antigos aliados e foi derrotada;
  • o assassinato do herdeiro do trono austro-húngaro, o arquiduque Francisco Ferdinando por um estudante em Saravejo, capital da Bósnia-Herzegovina, deu início a Primeira Guerra Mundial;
  • com o fracasso dos austríacos na Primeira Guerra, os eslavos constituíram o Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos;
  • em 1929, esse reino passou a se chamar Reino da Iugoslávia.

Processo de cisão da Iugoslávia

  Em 1941, diante do perigo da Iugoslávia entrar em favor dos aliados por causa da pressão popular, os alemães e seus aliados ocuparam o país. Com isso, o território iugoslavo foi dividido entre Alemanha, Itália, Bulgária e Hungria.

  Ante Pavelic fundou o movimento fascista e nacionalista da Croácia, abarcando a Bósnia-Herzegovina, e os sérvios foram desumanamente trucidados. A resistência sérvia era controlada pelos Chetniks, de Dragoljub Draža Mihailović (1893-1946) e os Partisans, de Josip Broz Tito (1892-1980). Ao fim da guerra, a monarquia foi abolida. Tito, transformou a Iugoslávia na República Popular Federativa da Iugoslávia, vencendo as eleições.

  O ideal socialista e o carisma de Tito se sobrepuseram às questões nacionais e amenizaram as tensões internas. A partir de 1980, com a morte do líder, os conflitos retornaram com bastante intensidade.

Bandeira da República Socialista Federativa da Iugoslávia

  Em 1990, segundo as regras iugoslavas, cabia ao líder da Croácia ocupar o comando do país, exercício em rodízio com as demais repúblicas. Porém, o governo da Sérvia se opôs, levando a Eslovênia e a Croácia a proclamar sua independência, em junho de 1991, e fizeram eleições presidenciais. O fato, no entanto, deu origem a uma guerra civil, com a invasão das duas repúblicas por tropas do poder central e conflitos que resultaram numa verdadeira limpeza étnica nos territórios ocupados. Apenas no final de 1992 a situação se estabilizaria, diante de uma intervenção internacional e do reconhecimento de independência da Eslovênia e da Croácia.

Mapa estratégico de um plano de ofensiva do Exército Popular da Iugoslávia (JNA) na Croácia, em 1991. O JNA foi incapaz de avançar tão longe como previsto devido a resistência croata e problemas de mobilização

  Em 18 de setembro de 1991, seguindo o exemplo da Eslovênia e da Croácia, a Macedônia (atual Macedônia do Norte) também declarou sua independência, sem receber nenhuma resistência por parte do governo sérvio. Em 15 de outubro desse mesmo ano, a Bósnia-Herzegovina fez o mesmo, porém, provocando intensa reação sérvia, que durou de 6 de abril de 1992 até 14 de dezembro de 1995, promovendo um dos maiores conflitos na Europa após a Segunda Guerra Mundial. Apesar da oposição internacional, o governo sérvio desejava anexar parte do território bósnio para formar a Grande Sérvia, promovendo, para isso, um verdadeiro genocídio na região, com milhares de mortes e mais de 1 milhão de refugiados.

  O governo da Bósnia foi entregue a um governante muçulmano, enquanto que 1/3 da população do país era cristã-ortodoxa. A Organização das Nações Unidas tentou intervir, sem sucesso. O conflito só terminou em 1995, quando os Estados Unidos intervieram, exigindo que o então presidente sérvio, Slobodan Milošević, pusesse fim ao conflito.

  Em 1992, a União Europeia reconheceu todas as nações como independentes. No restante da Iugoslávia, através de um plebiscito, foi decidido que o país passaria a se chamar República Federal da Iugoslávia.

Saravejo, capital da Bósnia-Herzegovina após o cerco das tropas da Otan, em 1995

  Na província de Kosovo, região localizada ao sul da Sérvia, aproximadamente 90% da população era albanesa seguidora da religião islâmica, e 10% era sérvia de religião cristã ortodoxa. Em 1997, iniciou-se um movimento separatista na província. O episódio também foi marcado por outro genocídio, que terminou apenas em 1999 com a intervenção das forças da Otan, lideradas pelos Estados Unidos. Por 78 dias, a Otan lançou ataques que causaram muita destruição. Milosevic foi submetido a julgamento em tribunal internacional. Em 2008, Kosovo declarou sua independência; no entanto, ela foi reconhecida por apenas uma parcela da comunidade internacional, a exemplo dos Estados Unidos, dos países-membros da União Europeia e do Japão.

Locais no Kosovo e no sul da Sérvia Central, onde a Otan utilizou munições com urânio empobrecido

  De toda a Iugoslávia, só restaram Sérvia e Montenegro. Em 21 de maio de 2006, houve um plebiscito, no qual 55,5% dos montenegrinos expressaram o desejo de separação. Em 3 de junho de 2006, Montenegro declarou-se independente, e com isso, a Iugoslávia foi extinta. Dois dias depois, a Sérvia também declarou sua independência.

  A série de conflitos ao longo desses anos provocou a completa dissolução da Iugoslávia, com a formação de novos países: Bósnia-Herzegovina, Croácia, Eslovênia, Macedônia, Montenegro e Sérvia, além de Kosovo, que ainda possui reconhecimento limitado. Devido às tensões étnico-religiosas, porém, a estabilidade na região permanece frágil até os dias atuais.

Mapa político da antiga Iugoslávia e os países que se originaram da sua desintegração

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

ESTADO-NAÇÃO E NAÇÕES SEM ESTADO

   Os Estados centralizados administram um território formado por um povo que compartilha tradições e costumes e possui uma história em comum. Por isso, esse povo recebe o nome de nação.

  Quando falamos do conceito de Estado, referimo-nos aos mecanismos de controle político de um governo que rege determinado território. Organizações como um Parlamento ou um Congresso, instituições legais ou um exército permanente são ferramentas utilizadas por um governo para controlar as várias esferas que compõem a sociedade de um Estado-nação.

  O Estado-nação é um desdobramento do processo de formação dos Estados centralizados. Durante a Idade Média, uma pessoa que vivia no norte do atual território da França e outra que vivia no sul desse mesmo território não se imaginavam como membros de uma mesma nação.

  Um Estado-nação é constituído por uma massa de cidadãos que se considera parte de uma mesma nação. Sob essa perspectiva, podemos afirmar que todas as sociedades modernas são Estados-nações isto é, todas as sociedades modernas estão organizadas sob o comando de um governo instituído que controla e impõe suas políticas.

  O processo de construção dos Estados centralizados foi acompanhado por ações como a construção de estátuas, a produção de pinturas, a composição de hinos nacionais, o registro de narrativas folclóricas e de outras tradições que representariam o conjunto dessa população. Desse modo, os membros do Estado passaram a se identificar como membros da mesma nação. É por isso que os Estados centralizados também são chamados de Estados-nação.

  Esse movimento de construção da ideia de nação ganhou mais força a partir do século XIX, quando o nacionalismo se tornou uma forma de pensamento importante em diferentes partes do mundo. Segundo o historiador Eric Hobsbawm (1917-2012), o nacionalismo é um pensamento que defende que a unidade política de um território deve corresponder à unidade de uma nação.

  Indivíduos e grupos inspirados por ideias nacionalistas passaram a lutar pelo direito de criar Estados sob o controle de nações que até então se encontravam sob o domínio de outras nacionalidades.

  Muitas vezes, o nacionalismo inspira ações que enxergam outras nacionalidades de forma negativa. Assim, o nacionalismo pode ser usado para defender o direito de uma nação se impor sobre outras nações, inclusive de forma violenta. Uma das causas da Primeira Guerra Mundial foi o nacionalismo exacerbado entre os europeus.

Planisfério mostrando o mapa-múndi

Nacionalismo e conflitos contemporâneos

  O nacionalismo é uma tese ideológica, surgida após a Revolução Francesa. Em sentido estrito, seria um sentimento de valorização marcado pela aproximação e identificação de uma nação. Costuma diferenciar-se do patriotismo devido à sua definição mais estreita. O patriotismo é considerado mais uma manifestação de amor aos símbolos do Estado, como o hino, a bandeira, suas instituições ou representantes. Já o nacionalismo apresenta uma definição política sobretudo da preservação da nação enquanto entidade, por vezes na defesa de território delineado por fronteiras terrestres, mas, acima de tudo, nos campos linguístico, cultural, contra processos de destruição identitária ou transformação.

  No mundo todo existem regiões que vivem intensos conflitos, originados pelos mais diversos motivos, que podem ser disputas por territórios, pela independência, por questões religiosas, recursos minerais, entre outros. Em todos os continentes, é possível identificar focos de tensão que colocam em risco a paz daqueles que vivem em locais que estão envolvidos.

  A base do nacionalismo é a ideia de que a nação tem o direito de criar o seu próprio Estado. Essa ideia incentivou movimentos variados, como a formação da Itália e da Alemanha (que se tornaram Estados centralizados somente no final do século XIX) e a emancipação das colônias africanas e asiáticas ao longo do século XX.

  No mundo contemporâneo, ocorrem diversos conflitos e tensões envolvendo diferentes povos que reivindicam a criação de um Estado, como os curdos e os palestinos, no Oriente Médio; bascos, catalães e ciganos, na Europa; chechenos, no Cáucaso; tibetanos, na Ásia Meridional, entre outros.

  Há, contudo, Estados multinacionais onde vive mais de uma nação, como é o caso da Federação Russa, que possui territórios historicamente habitados por povos de distintas origens, culturas e tradições. Há também nações que se espalham por diversos Estados, como os curdos.

  O nacionalismo pode dar origem a posturas violentas contra outras nações, resultando em práticas de xenofobia, racismo e intolerância, o que pode causar conflitos entre nações.

  Um exemplo de conflito provocado pela luta de uma nação sem Estado é o que ocorre na região da Palestina, no Oriente Médio.

Planisfério mostrando alguns conflitos e movimentos nacionalistas no mundo

O conflito na Palestina

  Os palestinos são uma nação sem Estado que conta com mais de 11 milhões de pessoas. O processo de construção da identidade nacional palestina, se deu principalmente após 1948, com a criação do Estado de Israel.

  Motivada pela perseguição religiosa que causou a morte de mais de 6 milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas (ONU) decidiu, em 1947, criar um Estado judeu na Palestina, estabelecendo a divisão do território em três partes: Estado de Israel, Estado da Palestina e Cidade Internacional de Jerusalém considerada sagrada por judeus e árabes.

  Na proposta de partilha da ONU, o Estado árabe e o Estado judeu teriam seus territórios divididos. A Palestina seria constituída pelas áreas conhecidas como Faixa de Gaza (oeste) e Cisjordânia (leste). Israel ficaria com o restante do território. Os palestinos não aceitaram a proposta da ONU. Mesmo assim, em 1948, Israel declarou sua independência.

Plano da ONU de 1947

  A presença de um Estado judeu na Palestina não foi aceita pelos demais países árabes. Egito, Síria, Iraque, Jordânia e Líbano declararam guerra à Israel, um dia após a sua fundação. O conflito, conhecido como Guerra da Partilha, se estendeu de maio de 1948 a janeiro de 1949, quando chegou ao fim com a vitória de Israel e a ampliação de seu poder sobre as áreas que seriam destinadas ao Estado palestino. Os palestinos passaram a viver em um território que lhes pertence, mas sem autonomia para administrá-lo, já que está sob o domínio de Israel.

  Desde então, ocorrem conflitos entre palestinos e israelenses. A partir da década de 1990, foram empreendidas ações para construir um acordo de paz na região e assegurar os direitos das duas nações. Entretanto, os conflitos retornaram e voltaram a se intensificar nos últimos anos.

  O conflito entre israelenses e palestinos se torna mais complexo a cada ano. Frequentemente, há um motivo ou outro para que recomecem os ataques de ambas as partes. A paz entre os dois povos, bem como a criação do Estado da Palestina, continua distante.

Situação da região da Palestina de 1946 até 2011

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

HOBSBAWN, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780: programa mito e realidade. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998

LÖWY, Michael. Nacionalismo e internacionalismos: da época de Marx até os nossos dias. São Paulo: Xamã, 2000.

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

OS POVOS PRÉ-COLOMBIANOS: INCAS

   Os incas foram uma importante civilização pré-colombiana que desenvolveu um vasto império na região da Cordilheira dos Andes. O Império Inca estendia-se por territórios que atualmente correspondem desde parte da Colômbia até o norte do Chile e da Argentina. Os incas constituíram uma civilização complexa, notabilizada pela construção de um enorme sistema de estradas. Essa civilização desapareceu a partir da conquista realizada pelos espanhóis no século XVI.

  Os incas não deixaram registros escritos de sua história antes da chegada dos espanhóis. Com base em crônicas escritas após a conquista espanhola  das terras andinas e fontes materiais (inclusive cidades inteiras), conhecemos certas crenças, alguns valores e as práticas da sociedade inca.

Extensão máxima da civilização inca na América do Sul

Origem

  A região andina, local onde se desenvolveu a Civilização Inca, era habitada por grupos humanos desde aproximadamente 4.500 a.C., e, antes dos incas, havia abrigado uma outra grande civilização conhecida como chavín, entre 900 a.C. e 200 a.C.

  Os incas, também chamados de quéchua, chegaram aos Andes no século XIII d.C. e, nas terras altas passaram a viver sobretudo da agricultura e do pastoreio, mas foi somente a partir de 1470 que começaram a estender seus domínios sobre territórios e povos da região andina e construíram um grande império.  No processo de formação do seu império, os incas assimilaram elementos de outras culturas, inclusive o quéchua, a língua que mais tarde espalhariam pelos Andes.

Império de Tiauanaco-Huari

  O surgimento oficial do Império Inca aconteceu, segundo os historiadores, com o reinado do Sapa Inca (termo em quéchua para imperador) Pachacuti. Durante seu reinado, os incas iniciaram a conquista territorial da região andina, processo que foi continuado por outros imperadores incas.

  Os incas conseguiram construir um império territorialmente muito vasto, que se estendia por mais de 4 mil quilômetros. Os povos conquistados por eles eram obrigados a pagar impostos e as regiões dominadas eram integradas ao império por meio da construção de estradas (os incas possuíram mais de 40 mil quilômetros de estradas) por ordem do Sapa Inca, e culturalmente absorvidas com o deslocamento da população quéchua para essas regiões.

  O grandioso império dos incas era denominado por eles próprios de Tawantisuyu (o Império das quatro direções, em quéchua) e era dividido em quatro grandes províncias chamadas de: Chinchasuyuy (norte), Antisuyu (leste), Contisuyu (oeste) e Collasuyuy (sul).

Expansão inca (1438-1533)

Características dos incas

  Os incas construíram um império que era baseado em um sistema de governo conhecido como teocracia. Nesse sistema político, o governo sofre forte influência das crenças religiosas. No caso dos incas, o Sapa Inca era visto como um descendente do Sol e, por isso, possuía poderes irrestritos. Os poderes do Sapa Inca chegavam a interferir na vida das pessoas e a determinar quando poderiam casar, viajar e mudar para outras áreas do império.

  Além da grandiosidade territorial, o Império Inca era caracterizado pela grande diversidade de povos e de culturas, possuindo em torno de seis a dez milhões de habitantes. Nessa vasta população, existiam, pelo menos, 30 idiomas diferentes.

Os quatro suyus ou quadrantes do Império Inca

Economia inca

  A base da economia inca era a agricultura, que produzia tudo o que os incas possuíam. A alimentação baseava-se no milho e na batata, no entanto, os incas produziam grandes quantidades de itens como algodão e pimenta. A fertilidade da agricultura dos incas era resultado de uma técnica conhecida como curvas de nível.

  Habitando regiões montanhosas, os incas adotavam a irrigação sistemática e construíam terraços na forma de uma imensa escada para a prática da agricultura. Nos degraus mais altos, cultivavam espécies vegetais resistentes ao frio, como a batata; nos do meio, milho abóbora e feijão; nos mais baixos, semeavam as árvores frutíferas. Com isso, conseguiam colheitas variadas e fartas o ano inteiro. Os incas se dedicavam também à pesca, a coleta de produtos e ao pastoreio: criavam a lhama, animal de carga com grande resistência, além da alpaca e guanaco, dos quais obtinham a lã e o leite.

Panorama dos terraços agrícolas de Pisac, no Vale Sagrado dos Incas

O ayllu e a mita

  A maioria da população inca era composta de famílias camponesas que trabalhavam na agricultura ou no pastoreio. Um conjunto de famílias unidas por laços de parentesco ou aliança formava o ayllu, unidade social básica administrada pelo curaka (chefe comunitário). Era dever do ayllu produzir tudo o que fosse necessário para sua própria sobrevivência, além de pagar os impostos que eram devidos ao Sapa Inca.

  Entre os incas havia um antigo hábito segundo o qual os membros do ayllu tinham de prestar serviços gratuitos ao curaka. Essa obrigação tem o nome de mita. Com a formação do império, os membros das comunidades passaram a ter de prestar serviços gratuitos também para o chefe do Estado, o Inca. Entre os serviços gratuitos, estavam: semear, plantar, colher, construir, consertar estradas, templos e fazer vestimentas e armas para ser usados na guerra. Esses serviços e produtos contribuíam para a grandeza do império e, em caso de invernos rigorosos, epidemias ou inundações, deviam ser distribuídos à população.

Figura mostrando uma representação da mita

A filosofia inca

  Os incas também possuíam um pensamento filosófico próprio, que ficou conhecido como filosofia andina, em referência à região onde esse pensamento floresceu: a Cordilheira dos Andes. Nesta filosofia, todos os elementos da vida fazem parte de uma mesma trama, sendo impossível isolá-los. Por isso, ao contrário de filosofias de matriz europeia, eles não opunham o sagrado ao profano, por entender que essas duas dimensões são complementares. Outra particularidade que a diferencia frontalmente da maneira europeia de pensar é que a filosofia andina não é andocêntrica, ou seja, não pensa o masculino superior ao feminino.

  Muitos filósofos europeus estudaram o conceito de virtude, palavra que tem a mesma raiz de viril e possui valor positivo. Assim, a ação humana considerada positiva foi, durante séculos, vinculada a uma característica que pertence aos homens.

  No pensamento andino, a oposição entre homem e mulher não estabelecia nenhum tipo de hierarquia. Ao contrário, o masculino e o feminino eram oposições complementares e nenhum dos dois ocupava uma posição dominante.

Machu Picchu - também chamada de "cidade perdida dos incas", é o símbolo mais típico do Império Inca

Guerra Civil Inca e a conquista espanhola

  Os conquistadores espanhóis, liderados por Francisco Pizarro (1476-1541) e seus irmãos, exploraram o sul do que hoje é o Panamá, chegando ao território em 1526. Era claro que haviam chegado a uma terra rica com perspectivas de grandes tesouros e, após outra expedição, em 1529, Pizarro viajou para a Espanha e recebeu a aprovação real para conquistar a região e ser seu vice-rei.

  Animado pela descoberta de ouro e prata nas terras astecas, Pizarro partiu do Panamá e chegou à cidade inca de Tumbez, em 1532.  Pizarro e seus homens se aproveitaram da desunião entre os irmãos Atahualpa e Huáscar (c. 1491-1533), cujo pai havia morrido acometido de varíola. Além disso, Pizarro, à semelhança de Cortez, também se aliou a povos nativos insatisfeitos com a dominação exercida sobre eles.

  O primeiro confronto entre incas e espanhóis foi a Batalha de Puná, próximo da atual Guayaquil, no Equador. Pizarro então fundou a cidade de Piura em julho de 1532. Hernando de Soto foi enviado para explorar o interior e voltou com um convite para conhecer o inca Atahualpa, que havia derrotado seu irmão na guerra civil e repousavam em Cajamarca com seu exército.

  De Tumbez, Pizarro e seus homens se deslocaram para Cajamarca, onde aprisionaram o imperador inca Atahualpa (c. 1502-1532).A seguir, Pizarro prometeu libertar o imperador inca em troca de todo o ouro que coubesse no quarto onde ele estava preso. Os incas pagaram o resgate, mas Pizarro não cumpriu o prometido e ordenou a morte de Atahualpa na fogueira.

  Os  wankas, um povo guerreiro do sul do atual Peru, e vários outros povos indígenas ajudaram na conquista espnhola de Cuzco, a capital inca, em 1533. Dois anos depois, Pizarro fundou a Ciudad de los Reys, atual Lima, que veio a ser capital do novo domínio espanhol.

Imagem retratando o Massacre de Cajamarca, que deixou milhares de nativos mortos

  Os auxiliares de Pizarro projetaram Lima seguindo o modelo das cidades espanholas. Na praça central, ergueram a igreja, os prédios públicos e, a partir dela, construíram ruas retas e casas que lembravam a da Espanha. Quanto mais próximo da praça residia uma família, maior era o seu prestígio. Ou seja, a localização da residência em relação à praça simbolizava o status social de cada família. Próximo à costa do Oceano Pacífico e distante de Cuzco, Lima contava inclusive com uma instituição de ensino superior, a Universidade de São Marcos, fundada em 1551 e existente até hoje.

Visão geral da atual Cuzco. Até a colonização, era a capital do império inca

A resistência indígena

  Ao contrário do que se disse durante muito tempo, os nativos reagiram ao domínio espanhol de diversas formas: praticando o suicídio, revoltando-se, fugindo para a mata sozinhos ou em grandes grupos, e também por meio de armas.

  A resistência inca no sul do Peru, durou quase 40 anos. Protegidos pela muralha de neve da Cordilheira dos Andes, eles resistiram aos espanhóis de 1532 a 1572. Só com muito esforço e com a ajuda de efetivos vindos da Espanha foi que os espanhóis conseguiram vencer os incas. Na ocasião, o lendário Túpac Amaru (1545-1572), considerado o último líder da resistência inca, foi capturado e decapitado pelos espanhóis.

Representação da fundação de Lima

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

PRADO, M. L.; PEREGRINO, G. História da América Latina. São Paulo: Contexto, 2014.

RAMINELLI, R. A era das conquistas: América espanhola, séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: FGV, 2013.

RESTALL, M. Sete mitos da conquista espanhola. São Paulo: Civilização Brasileira, 2006.

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

AS IDEIAS ANARQUISTAS

   Anarquismo é uma ideologia política que se opõe a todo tipo de hierarquia e dominação, seja ela política, econômica, social ou cultural, como o Estado, o capitalismo, as instituições religiosas, o racismo e o patriarcado.

  O termo "anarquia" vem do grego anarchos, que significa "sem governo". Os adeptos do anarquismo, doutrina criada em meados do século XIX, contestavam a autoridade do Estado e responsabilizavam os governos pelas desigualdades sociais.

  Os meios para se alcançar tais objetivos são motivos de debates e divergências entre os anarquistas. Com base em discussões estratégicas acerca da organização anarquista, das lutas de curto prazo e da violência, estabelecem-se duas correntes do anarquismo: o anarquismo insurrecionário e o anarquismo social ou de massas.

  O anarquismo insurrecionário afirma que as lutas de curto prazo por reformas e que os movimentos de massa organizados são incompatíveis com o anarquismo, dando ênfase à propaganda pelo ato como o principal meio para despertar uma revolta espontânea revolucionária.

  O anarquismo social ou de massas enfatiza a noção de que apenas movimentos de massa podem ser capazes de provocar a transformação social desejada pelos anarquistas, e que tais movimentos, constituídos normalmente por meio de lutas por reformas e questões imediatas, devem contar com a presença dos anarquistas, que devem trabalhar no sentido de radicalizá-los e transformá-los em agentes revolucionários.

Símbolo do anarquismo cristão

  O anarquismo surgiu das reflexões do escritor e filósofo inglês William Godwin. Em seus estudos, ele combateu a propriedade privada e a autoridade dos governos e das instituições políticas, apontadas como as causas das injustiças sociais e da opressão. Essas ideias contribuíram para dar suporte ao pensamento anarquista e foram desenvolvidas como campo teórico ao longo do século XIX.

  O anarquismo foi um movimento muito amplo e complexo que adquiriu particularidades variadas ao longo da história. Mesmo entre os primeiros anarquistas havia diferenças de objetivos e métodos. Apesar disso, algumas características comuns os unia. A contestação a todas as formas de autoridade, como a dos governos, o anseio por liberdades individuais e a crença de que a natureza humana seria suficiente para que as pessoas se organizassem, livres de opressões, eram aspectos presentes nas ideias de quase todos os primeiros pensadores anarquistas.

  Outro elemento comum na primeira fase do anarquismo era a oposição ao marxismo. A ditadura do proletariado ou mesmo qualquer outra forma de governo, mesmo que temporário, era recusada. Além disso, acreditava-se que a organização dos trabalhadores na luta revolucionária pela formação de uma sociedade anarquista deveria ser feita de baixo para cima, sem hierarquias. Para pensadores anarquistas, as ideias marxistas igualavam as pessoas, negando a individualidade e a independência de cada uma.

  Os anarquistas também eram contrários à democracia, pois para eles o desejo da maioria não poderia sobrepor-se ao da minoria. Além disso, não acreditavam na eleição para cargos representativos.

Símbolo do anarquismo insurrecionário

Pensadores anarquistas

  Muitos teóricos formularam e divulgaram o pensamento anarquista na Europa no século XIX, entre eles o francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) e o russo Mikhail Bakunin (1814-1876).

  Proudhon foi o primeiro pensador a se autoproclamar anarquista e exerceu muita influência sobre o movimento operário da segunda metade do século XIX e início do século XX. Ele não se opunha à propriedade privada, mas sim ao acúmulo de propriedades, que possibilitava a exploração, por grupos ociosos, do trabalho daqueles que não tinham a propriedade dos meios de produção.

  Para Proudhon, a sociedade ideal seria composta de pequenos produtores e operários independentes, que se organizariam em sociedade por relações contratuais livres, nas quais, a individualidade seria mantida. Deveriam ser criados bancos de crédito para os trabalhadores e espaços onde eles pudessem trocar suas produções. Essas ideias, que compunham o denominado mutualismo, inspiraram vários movimentos sindicais e organizações cooperativas.

  Proudhon também foi um dos primeiros críticos do nacionalismo. Ele pregava a organização social por meio de um modelo federalista, que se estenderia por todo o mundo. Nessa proposta é possível perceber a ideia da organização partindo das bases, que formariam as federações, até alcançar a escala mundial.

Pierre-Joseph Proudhon - político e econômico francês, membro do Parlamento da França, foi o primeiro grande ideólogo anarquista da história

  De origem aristocrática, Bakunin foi fiel ao regime czarista até 1840, ano em que saiu da Rússia e entrou em contato com outros lugares e ideias. Em 1844, conheceu Proudhon, pensador que exercia grande influência sobre ele. A partir de 1861, Bakunin passou a difundir o anarquismo em várias partes da Europa, sobretudo nos Estados italianos, nos quais fundou as organizações que dariam origem ao movimento anarquista italiano.

  Bakunin defendia a proposta de que o Estado deveria ser dissolvido imediatamente, discordando da ditadura do proletariado marxista. Ele não compartilhava das ideias de Proudhon em defesa da propriedade privada nem das relacionadas ao individualismo, mas era adepto da teoria de associação do pensador francês.

Mikhail Bakunin - teórico político, sociólogo, filósofo e revolucionário russo, é um dos principais fundadores  da tradição social anarquista


Historicamente, o anarquismo é um fenômeno moderno, surgindo na segunda metade do século XIX no contexto da Segunda Revolução Industrial, a partir da radicalização do mutualismo de Pierre-Joseph Proudhon no seio da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), durante o final da década de 1860. Entre 1868 e 1894, o anarquismo já havia se desenvolvido significativamente e também havia sido difundido globalmente, exercendo, até 1949, grande influência entre os movimentos operários e revolucionários, embora tenha continuado a exercer influência significativa em diversos movimentos sociais do período pós-guerra até a contemporaneidade, entre fluxos e refluxos.[9]

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

A REVOLUÇÃO FRANCESA

   Em 1789, acontecia na França uma revolução que marcaria o fim da Idade Moderna e o início da Idade Contemporânea, a chamada Revolução Francesa. Essa revolução causou a queda de uma monarquia, o enfraquecimento da Igreja Católica e o fim da aristocracia, e é considerada por muitos como o marco da história francesa e mundial devido à radicalização política que o caracterizou.

  A monarquia absolutista que tinha governado a nação durante séculos entrou em colapso. A sociedade francesa passou por uma transformação, com o fim dos privilégios feudais, aristocráticos e religiosos promovidos por grupos políticos radicais, pela revolução em massa nas ruas e por camponeses no espaço rural francês. Antigos ideais da tradição e da hierarquia monárquica, aristocrática e religiosa foram derrubados pelos novos princípios de Liberté, Égalité e Fraternité (Liberdade, Igualdade e Fraternidade).

A Liberdade guiando o povo. Pintura de Delacroix

Antecedentes da Revolução

  Até o século XVIII, a França era regido pelo Absolutismo Monárquico. Com a formação dos Estados nacionais, os reis assumiram o papel que antes era da nobreza feudal na formulação de leis, na cobrança de tributos e nas funções militares. Durante o processo de centralização política, os monarcas formaram exércitos profissionais e permanentes. Além disso, criaram e instituíram impostos e uma burocracia ligada à administração do Estado, composta em grande parte de membros da nobreza, que tinham vários privilégios - como as isenções fiscais, um conjunto de leis que os beneficiavam - e acesso exclusivo aos postos elevados do exército.

  Durante o processo de consolidação do poder real, entre os séculos XVI e XVIII, o absolutismo monárquico se instalou em vários Estados da Europa Ocidental. Nesse sistema de governo, o poder real era hereditário (transmitido de pai para filho), e o monarca era considerado o representante de Deus na Terra. O apogeu do absolutismo ocorreu na França, durante o reinado de Luís XIV, que ficou conhecido como Rei Sol, entre 1643 e 1715. Esse rei associou sua figura ao próprio Estado, promovendo um grande culto à sua imagem por meio de extensa produção de pinturas, esculturas e tapeçarias, além de fomentar o uso de normas de etiqueta como distinção social, bem como a valorização de ambientes de luxo, de roupas sofisticadas e de refeições ritualizadas.

Jean-Baptiste Colbert apresentando os membros da Academia Real da Ciência para Luís XIV, pintura de Henri Testelin, 1667. Colbert foi um influente ministro de economia que coordenou a política protecionista do governo do rei Luís XIV

  No absolutismo, o monarca tratava diretamente de assuntos do Estado, exercendo grande controle sobre o comércio, as manufaturas e a máquina administrativa. O pagamento de impostos pelos trabalhadores do campo e das cidades assegurava o funcionamento de toda a estrutura do Estado. A centralização política garantiu maior controle da nobreza feudal sobre os camponeses, que continuavam em sua posição social tradicional - dependentes dos proprietários das terras nas quais trabalhavam e pagando a maior parte dos impostos.

  Os nobres se integravam ao Estado absolutista assumindo cargos e atividades em funções administrativas e burocráticas junto ao poder real. A nascente burguesia, mercantil e manufatureira, pagava por posições nos aparelhos públicos em troca de privilégios. A venda de cargos públicos foi um dos alicerces financeiros desses governos.

  Dentro da estrutura do Estado Absolutista, havia três diferentes estados, nos quais a população se enquadrava:

  • Primeiro Estado - era representado pelos bispos do Alto Clero;
  • Segundo Estado - tinha como representantes a nobreza ou a aristocracia francesa - que desempenhava funções militares (nobreza da espada) ou funções jurídicas (nobreza de toga).
  • Terceiro Estado - era representado pela burguesia, que se dividia entre membros do Baixo Clero, comerciantes, banqueiros, empresários, os sans-culottes ("sem calções"), trabalhadores urbanos e os camponeses, no qual representava cerca de 97% da população.

Figurinha mostrando como funcionava o Absolutismo Monárquico

Teóricos do absolutismo

  A partir do século XVI, foram formuladas teorias filosóficas para justificar o poder absoluto dos reis. Os pensadores que se dedicaram a essa questão refletiram sobre o Estado e a política em busca de um modelo ideal de governo.

  O florentino Nicolau Maquiavel (1469-1527) apresentou dois conceitos significativos para o pensamento político moderno: o de virtú e o de fortuna. Para o filósofo, virtú era a capacidade de escolher a melhor estratégia administrativa, enquanto fortuna remetia às circunstâncias do acesso a que os seres humanos estavam submetidos.

  Maquiavel definia virtú também como a vontade política de uma pessoa, ou seja, sua ação política. Em uma personagem política concreta (o rei, por exemplo), era a capacidade de escolher a melhor estratégia de ação para o seu governo.

  Um bom governante, era aquele que, com sabedoria, combinava virtú e fortuna, sem priorizar uma ação em detrimento da outra. Para alcançar a plenitude na política, de acordo com o florentino, os reis não poderiam estar submetidos a nenhuma instituição, nem mesmo à Igreja Católica.

Nicolau Maquiavel - filósofo, historiador, poeta, diplomata e músico de origem florentina do Renascimento, é reconhecido como o fundador do pensamento da ciência política moderna pelo fato de ter escrito sobre o Estado e o governo como realmente são, e não como deveriam ser.

  O inglês Thomas Hobbes (1588-1679), outro importante teórico do absolutismo e autor da obra Leviatã, defendia a ideia de que os seres humanos, em estado de natureza, se autodestruiriam, promovendo uma guerra de todos contra todos.

  De acordo com Hobbes, sem um governo forte, os indivíduos não respeitariam os limites necessários a uma boa convivência social. Por isso, deveria renunciar à liberdade do estado de natureza e abdicar do direito natural a tudo o que existe em nome do rei, figura capaz de manter a ordem social e a segurança nacional.

  Hobbes considerava o Estado um monstruoso aparato administrativo que, por meio de um contrato social firmado com a população, poderia resolver as questões referentes ao bem comum.

Frontispício da edição original do Leviatã ou Matéria, Palavra e Poder de um Governo Eclesiástico e Civil (1651). Escrito por Thomas Hobbes, esse livro é intitulado em referência ao Leviatã bíblico, e diz respeito à estrutura da sociedade e do governo legítimo.

O direito divino dos reis

  Para outra corrente de filósofos, a legitimação jurídica da monarquia estava assentada na religião. Esses pensadores consideravam os reis a expressão mais perfeita da autoridade delegada por Deus e, por isso, tratavam a monarquia como direito divino.

  Um dos defensores do direito divino dos reis foi o francês Jean Bodin (1530-1596). Conhecido como "procurador geral do Diabo", por perseguir manifestações consideradas heréticas, ele negava veemente a necessidade de existência do Parlamento, sustentando a ideia de que tal órgão, diante de Deus, não tinha soberania para resolver qualquer questão, principalmente se estivesse em desacordo com o rei.

  Segundo Bodin: "Nada havendo de maior sobre a terra, depois de Deus, que os príncipes soberanos e sendo por Ele estabelecidos como seus representantes para governar os outros homens, é necessário lembrar-se de sua qualidade, a fim de respeitar-lhes e reverenciar-lhes a majestade com toda a obediência, a fim de sentir e falar deles com toda a honra, pois quem despreza seu príncipe soberano, despreza a Deus, do qual é a imagem na terra."

BODIN J. Seis livros da república. In: CHEVALLIER, J.-J. As grandes obras políticas: de Maquiavel a nossos dias. 8. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1999. p. 62

  Considerando o principal teórico do pensamento da monarquia por direito divino, o bispo e teólogo francês Jacques Bossuet,  afirmava que o poder do rei emanava de Deus e, nesse sentido, o soberano era seu representante no mundo.

Jean Bodin - teórico político, jurista francês, membro do Parlamento de Paris e professor de Direito em Toulouse, é reconhecido pelos seus estudos que foram de suma importância para o avanço dos conceitos de soberania e absolutismo dos Estados.

O poder sou eu

  Na França, os reis da dinastia Bourbon, sem se apoiar na teoria do contrato social ou da natureza divina do poder, declaravam que toda autoridade emanava do soberano. Segundo o rei Luís XV:

  "É somente na minha pessoa que reside o poder soberano. [...] é somente de mim que meus tribunais recebem a sua existência e a sua autoridade; a plenitude desta autoridade, que eles não exercem senão em meu nome, permanece sempre em mim, e o seu uso nunca pode ser contra mim voltado; é unicamente a mim que pertence o Poder Legislativo, sem dependências e sem partilha; é somente por minha autoridade que os funcionários dos meus tribunais procedem, não à formação, mas ao registro, à execução da lei, e que lhes é permitido advertir-me o que é do dever de todos os úteis conselheiros; toda a ordem pública emana de mim, e os direitos e interesses da nação, de que se pretende ousar fazer um corpo separado do monarca, estão necessariamente unidos com os meus e repousam inteiramente em minhas mãos."

LUÍS XV. Resposta do rei ao Parlamento de Paris, na sua sessão de 3 de março de 1766. In: FREITAS, G. 900 textos e documentos da história. Lisboa: Plátano, 1976, p. 201.

Luís XV (1710-1774), também conhecido como Luís, o Bem Amado, Rei da França e Navarra de 1715 até sua morte, em 1774

Sociedade francesa no Antigo Regime

  Ao longo da segunda metade do século XVIII, a França se envolveu em várias guerras, como a Guerra dos Sete Anos (1756-1763) contra a Inglaterra, e o auxílio dado aos Estados Unidos na Guerra de Independência (1776). Ao mesmo tempo, a Corte absolutista francesa, que possuía um elevado custo de vida, era financiada pela Estado.

  Além disso, a França teve que enfrentar duas graves crises: uma no campo, devido às péssimas colheitas nas décadas de 1770 e 1780, o que gerou uma elevada inflação; e uma crise financeira, derivada da vida pública que se acumulava, sobretudo decorrente da falta de modernização econômica.

  No final do século XVIII, os franceses realizaram um dos mais importantes movimentos políticos da história do Ocidente: a Revolução Francesa. As críticas e as contestações  eram direcionadas à nobreza privilegiada e à política econômica conduzida pela monarquia absolutista. Os ideais defendidos pelos revolucionários - liberdade, igualdade e fraternidade - foram disseminados  no continente europeu e em outras partes do mundo.

  Na França revolucionária, difundiram-se princípios e termos até hoje utilizados nos embates políticos, como cidadania, direito natural, política liberal, nacionalismo, "esquerda" e "direita".

Foto do Parlamento da França, com os representantes da Esquerda e Direita

  No final do século XVIII, o regime político vigente na França era o absolutismo monárquico, e o rei francês concentrava todo o poder do Estado em suas mãos. A divisão da sociedade em ordens ou estados garantia à nobreza honras e privilégios hereditários, como isenção de impostos, direito à cobrança de impostos dos camponeses pelo uso da terra e direito à participação em atividades políticas e militares. Esse conjunto de características, típico da França da Idade Moderna, passou a ser chamada de Antigo Regime.

  Na organização social vigente nesse período, o primeiro estado era composto do clero, que em 1789 representava 0,5% da população francesa e se dividia em alto clero (originário da nobreza) e baixo clero (proveniente das camadas burguesas e populares); o segundo estado, constituído pela nobreza, reunia 1,5% dos franceses; e o terceiro estado, correspondente a 90% da população, que abrigava os camponeses, os operários, os profissionais liberais, os burgueses, entre outros grupos.

  Essa estrutura impedia a ascensão política dos setores burgueses, uma vez que os privilégios, as honras e os títulos estavam reservados à nobreza e ao alto clero. No decorrer dos séculos XVII e XVIII, apenas alguns juízes e altos funcionários de origem burguesa conseguiam transpor essas barreiras por meio do recebimento (ou aquisição de títulos), passando a constituir a nobreza togada.

O Terceiro-Estado carregando o Primeiro e o Segundo Estados nas costas

Crise do Antigo Regime

  Vários motivos levaram à crise do absolutismo na França. O terceiro estado - principalmente a burguesia, inspirada pelo Iluminismo - passou a contestar os privilégios que favoreciam a nobreza e o clero e constituíam entraves para sua ascensão política, econômica e social. O déficit público, já acumulado com os altos gastos do governo para sustentar os privilégios daqueles dois grupos, além da administração desordenada das províncias, foi agravado pelas despesas oriundas do apoio da França ao movimento de independência das Treze Colônias (1776-1783) contra a Grã-Bretanha.

  Os tratados de comércio e navegação, assinados pelos governos da França, dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha, da Suécia, entre outros países, para reduzir as tarifas alfandegárias desagradaram a burguesia comercial e manufatureira francesa, que associou esses acordos à queda da produção e do comércio de seus produtos. Outro problema econômico foi a crise de abastecimento, gerada por um longo período de seca e más colheitas que provocaram a queda drástica da produção de alimentos.

  A crise se agravou em 1787, quando o ministério de Luís XVI propôs uma reforma fiscal que, além de suprimir as isenções fiscais que beneficiavam nobres e clérigos, submetia todos os proprietários, nobres ou não, ao pagamento de uma subvenção territorial, ou seja, imposto sobre a propriedade da terra. Para salvaguardar seus privilégios, a nobreza e o clero recusaram a proposta. A crise financeira desdobrou-se em um desequilíbrio político e administrativo. Pressionado, o monarca convocou a assembleia dos Estados-Gerais, formada por ele e pelos deputados representantes dos três estados.

Luís XVI (1754-1793) foi acusado de ser o principal responsável pela crise ocorrida na França na década de 1780

Assembleia Nacional Constituinte

  Tão logo os Estados-Gerais reuniram-se em Versalhes, em 5 de maio de 1789, os três grupos manifestaram suas divergências sobre o sistema de votação, que tradicionalmente era feita por estado. O terceiro estado, constituído de um número maior de representantes, exigia o voto individual, o que equilibraria a representação nos Estados-Gerais de acordo com a composição da população francesa. Diante do impasse, os deputados do terceiro estado, apoiados por alguns representantes do clero, retiraram-se da reunião. Em junho, reuniram-se em uma assembleia geral permanente e juraram se manter unidos até conseguirem aprovar uma Constituição para a França que, entre outros objetivos, limitasse os poderes do rei.

  Em 9 de julho de 1789 foi proclamada a Assembleia Nacional Constituinte, composta dos seguintes representantes: 291 do primeiro estado (clero), 270 do segundo estado (nobreza) e 578 do terceiro estado. O primeiro e o segundo estados defendiam o voto orgânico (por estado), mas o terceiro estado defendia o voto inorgânico (por cabeça), pois constituía a maioria absoluta.

  Sem força política para resistir à pressão popular, Luís XVI ordenou que os deputados do primeiro e do segundo estados se unissem a ele, enquanto mobilizava tropas nas proximidades de Versalhes e Paris para submeter o terceiro estado pela força.

Encontro da Assembleia dos Estados Gerais, em 5 de maio de 1789

A tomada da Bastilha

  Em julho de 1789, as ruas de Paris foram tomadas pela população, que, revoltada com a escassez de alimentos e a pobreza em geral, protestava contra o governo. No dia 14, uma multidão invadiu a Bastilha, fortaleza utilizada como prisão política do regime absolutista, em busca de armas e munição para combater as tropas reais. Essa invasão tornou-se símbolo da queda do Antigo Regime e marcou o início do movimento revolucionário.

  A agitação popular parisiense se espalhou por outras cidades e pelo campo. Os camponeses invadiam os castelos e, em muitos casos, massacravam os moradores. Paralelamente, corriam boatos da vingança terrível que os nobres preparavam, e essas notícias criaram uma onda de pânico que se espalhou pela maioria das províncias do país entre fins de julho e princípios de agosto de 1789, época que ficou conhecida como O Grande Medo (La Grande Peur).

Queda da Bastilha, em 14 de julho de 1789, de Jean-Pierre Louis Laurent Houel

  Enquanto a revolução se espalhava pelo país, a Assembleia Constituinte preparava as medidas que formalmente destruiriam o Antigo Regime. No dia 4 de agosto, foram abolidos diversos direitos feudais. No dia dia 26, a Assembleia aprovou o confisco das terras da Igreja e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, documento fundamental para o desenvolvimento da noção moderna de cidadania e direitos humanos e que serviu de referência para a elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Entre outros princípios, ela difundiu a concepção de os seres humanos, por sua natureza, têm direitos iguais que não dependem da decisão do reconhecimento de governantes nem de regimes.

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

As mulheres na revolução

  As mulheres tiveram um papel de destaque durante a Revolução Francesa: participaram ativamente de várias ações, fundaram clubes políticos, apoiaram a difusão das ideias revolucionárias, influenciaram as discussões nas sessões da Assembleia, lutaram pelo direito de formar uma guarda feminina e alistaram-se no exército.

  A atuação feminina na França já era significativa nos anos que antecederam a revolução de 1789. As mulheres da burguesia organizavam os famosos "salões" em que os pensadores iluministas debatiam suas ideias. As mulheres das classes populares, por sua vez, trabalhavam em lojas e mercados, enfrentando, muitas vezes, as autoridades responsáveis por prender devedores e confiscar mercadorias. Com a tomada da Bastilha, a participação delas na cena pública aumentou.

  Em um dos episódios mais famosos da Revolução Francesa, ocorrido em outubro de 1789 e conhecido como Marcha sobre Versalhes, cerca de 7 mil mulheres caminharam de Paris até o palácio real em Versalhes com o objetivo de protestar contra o preço alto do pão e a escassez de alimentos, e também para pressionar a família real a retornar à capital.

  Empunhando lanças, machados, foices e mosquetões (arma de fogo semelhante a uma espingarda), essas mulheres invadiram o palácio real e interromperam uma sessão da Assembleia Constituinte. Diante da pressão, a família real voltou a Paris escoltada pela Guarda Nacional.

  Além de defender os ideais da revolução, as francesas reivindicaram igualdade de direitos entre homens e mulheres, pois elas não eram consideradas cidadãs, não podiam exercer cargo público nem votar ou ser votadas para o Parlamento.

Ilustração contemporânea de um Clube de Mulheres Revolucionárias, de Pierre-Étienne Lesueur  \

Da Monarquia Constitucional à proclamação da república

  Em outubro de 1789, a família real foi retirada do Palácio de Versalhes e levada para o Palácio das Tulherias, em Paris. Luís XVI, inconformado com sua situação, organizou tropas fora da França para retomar o poder. Em junho de 1791, o rei e sua família tentaram fugir da França com o apoio das monarquias da Áustria e da Prússia, mas foram detidas na comuna de Varennes e levados de volta a Paris. Em seguida, o monarca foi obrigado a jurar a Constituição de 1791 aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte. Iniciava-se, assim, a fase da revolução conhecida como Monarquia Constitucional.

  O Estado francês passou a ser organizado em três poderes: o Executivo, exercido pelo rei, mas subordinado à Constituição; o Legislativo, formado por 745 deputados eleitos por meio do voto censitário (conquista do próprio documento); e o Judiciário, composto de juízes eleitos. A nova Constituição também aboliu alguns impostos, favorecendo o livre-comércio, estabeleceu novos tributos sobre a propriedade e instituiu o voto censitário masculino (mulheres e trabalhadores pobres eram excluídos do processo eleitoral).

Proclamação da Constituição francesa de 1791

  Após a elaboração da Carta Magna, a Assembleia Nacional Constituinte foi substituída pela Assembleia Legislativa, que reunia deputados de diferentes tendências políticas:

  • Girondinos - do francês girondin, por ter sido formado em torno de deputados do departamento de Gironda, eram os republicanos moderados e monarquistas constitucionais, que representavam os interesses da alta burguesia e da nobreza liberal. Seu violento enfrentamento com o grupo dos jacobinos, dominou os primeiros meses da Convenção Nacional.
  • Jacobinos - o termo jacobinismo ou jacobinos, é evolutivo ao longo dos tempos. Mas como expressão é, às vezes, usada na Grã-Bretanha de maneira pejorativa para políticas radicais revolucionárias de esquerda e qualquer corrente de pensamento republicana e laicista  (que rejeita a influência da Igreja na esfera pública do Estado) de extrema-esquerda, representavam a pequena e média burguesia, e defendiam a igualdade de todos perante a lei.
  • Cordeliers - mais ligados aos trabalhadores urbanos, pequenos comerciantes e artesãos, eram os franciscanos estabelecidos na França, e as propostas desse grupo eram consideradas as mais radicais, como o fim do voto censitário, a proclamação de uma república e o estabelecimento de um governo popular. Seus deputados recebiam apoio dos sans-culottes, grupos urbanos que defendiam o sufrágio universal masculino e a república. Os sans-culottes eram, principalmente, artesãos, lojistas e operários. O nome refere-se ao traje que usavam - calças compridas -, em oposição aos culottes ("calças curtas") usadas pelos nobres.
  • Planície ou Pântano - A Planície (La Plaine), O Pântano (Le Marais) e, desdenhosamente Os Sapos (Les Crapauds), era um grupo de representantes moderados da burguesia e sem posições políticas definidas. Era também, o grupo mais numeroso, com cerca de 400 deputados.
  • Feuillants - também chamados de Folietani, eram os membros de uma ordem monástica beneditina da regra de Cister, oriunda da Ordem Cisterciense, pertenciam à alta burguesia e defendiam a monarquia constitucional.

Gravura que retrata uma reunião da Assembleia Nacional Constituinte ocorrida em 4 de fevereiro de 1790

  A Assembleia Legislativa enfrentou a ameaça de intervenção estrangeira e também a profunda crise econômica, que gerava especulação financeira e inflação. Em abril de 1792, a França declarou guerra à Áustria e à Prússia. Os setores mais radicais do movimento revolucionário proclamaram a "pátria em perigo" e distribuíram armas à população de Paris para combater as forças estrangeiras.

  Em setembro, o exército popular derrotou os austríacos e prussianos na Batalha de Valmy. Acusado de colaborar com os estrangeiros, Luís XVI foi declarado traidor da pátria e levado à prisão com sua família. Foram convocadas eleições e a Assembleia Legislativa foi substituída pela Convenção Nacional. Em clima de vitória, a República foi instituída.

Detenção de Luís XVI e sua família, Varennes, 1791 (Museu da Revolução Francesa

Convenção Nacional

  Nas plenárias da Convenção, os deputados girondinos sentavam-se à direita da presidência das sessões e os deputados jacobinos sentavam-se à esquerda. Ao centro, ficavam os deputados da Planície. Daí originou-se a conotação política dos termos "esquerda" e "direita", adotado hoje para definir posições e partidos políticos.

  Coube à Convenção Nacional (1792-1794) julgar o rei Luís XVI - considerado culpado de traição à pátria e guilhotinado em 21 de janeiro de 1793 -, bem como traçar estratégias para enfrentar as coligações estrangeiras que se formaram após a morte do rei e que eram apoiadas pelos nobres emigrados.

  Inicialmente, a hegemonia na Convenção pertencia aos girondinos, interessados em conter o avanço popular, mas o governo deles foi marcado pela instabilidade decorrentes da formação de novas coalizões estrangeiras contra a França, da persistência da crise econômica e da forte oposição dos jacobinos e dos sans-culottes, que exigiam mudanças mais radicais para atender aos anseios das camadas populares.

  A Convenção instituiu um novo calendário para a França. Oficialmente introduzido em 1793, ele tinha como marco inicial o dia 21 de setembro de 1792, data da proclamação da república, e dividia-se em doze meses e trinta dias. Os meses tinham nomes relacionados aos ciclos agrícolas e da natureza.

Figura mostrando como era a divisão na Assembleia Legislativa da França

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA: FURET, François. A Revolução Francesa em debate. Bauru: Edusc, 2000

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