segunda-feira, 16 de novembro de 2015

O CÉU SEGUNDO OS ÍNDIOS E OS POVOS ANTIGOS

  Muito antes de Fernão de Magalhães aparecer no Novo Mundo guiado pelas estrelas, os habitantes destas terras já direcionavam suas vidas pelos pontos luminosos do céu. Celebrações religiosas, épocas de plantio e colheita são apenas alguns dos propósitos dos estudos indígenas do firmamento. Para além da função prática, viam também no céu uma cópia de seu próprio mundo.
  A observação do céu está na base da cultura de todos os povos antigos. O céu seria a morada de divindades e espíritos que controlariam as forças da natureza. Por meio da observação da posição dos astros, essas civilizações previam eventos climáticos, marcavam a passagem do tempo e se localizavam.
  Os indígenas americanos - inclusive os brasileiros - contemplavam o céu imaginando desenhos e os associavam a lendas e divindades. Para eles a Terra é um reflexo imperfeito de tudo que há no céu. Baseavam o cultivo e a colheita e épocas de caça e pesca na posição dos astros.
  Ao contrário dos demais povos, os índios formavam desenhos no céu utilizando não só as estrelas, mas qualquer mancha visível (galáxias ou nebulosas). Além disso, suas constelações estão quase todas situadas na região da Via Láctea - a mancha esbranquiçada observada à noite no céu e que se trata da porção visível da nossa galáxia. A essa mancha esbranquiçada, os índios chamavam Tapi'i rapé - Caminho da Anta. Duas constelações muito conhecidas pelos extintos tupinambás do norte e pelos tupi-guaranis do sul são o Homem Velho e a Ema.
As constelações do céu
  Os índios tupi-guaranis têm uma rosa-dos-ventos. Para eles, no céu existiam palmeiras azuis representando os quatro deuses (os quatro pontos cardeais: norte, sul, leste, oeste) e suas quatro esposas (os pontos colaterais: nordeste, noroeste, sudeste, sudoeste), formando, assim, uma rosa dos ventos. Para eles, tudo que existe no céu existe também na Terra.
Constelação da Ema
  Quando surge ao leste no anoitecer, na segunda quinzena de junho, a Ema indica o início do inverno para os índios do sul do Brasil e o início da estação seca para os índios do norte. É limitada pela constelação de Escorpião e pelo Cruzeiro do Sul ou Curuxu, que, segundo o mito guarani, segura a cabeça da ave, garantindo a vida na Terra - caso ela se solte, beberá toda a água do nosso planeta.
  Os Tupinambá conhecem uma constelação denominada Iandutim, ou Avestruz Branca, formada de estrelas muito grandes e brilhantes, algumas das quais representam um bico. Segundo a crença indígena, ela procura devorar duas outras estrelas que lhes estão juntas e às quais denominam uirá-upiá. Essa constelação seria a mesma constelação da Ema.
  A constelação da Ema fica na região do céu limitada pelas constelações ocidentais Cruzeiro do Sul e Escorpião. Ela é formada utilizando, também, estrelas das constelações Mosca, Centauro, Triângulo Austral, Antares e Lobo.
Conjunto de estrelas que pertencem à constelação da Ema
  A cabeça da Ema é formada pelas estrelas que envolvem o Saco de Carvão, uma nebulosa escura que fica perto do Cruzeiro do Sul, sendo que a parte superior fica perto da estrela Mimosa e o bico próximo à estrela de Magalhães, ambas pertencentes ao Cruzeiro do Sul. Próximo ao seu bico existem dois ovos de pássaro que ela tenta devorar. Esses ovos são as estrelas Alfa e Beta, da constelação de Mosca. Dentro do corpo da Ema, as manchas claras e escuras da Via Láctea ajudam a visualizar a plumagem da Ema.
  As estrelas Alfa e Beta, pertencentes à constelação de Centauro, estão dentro do pescoço da Ema, que também é formado por uma mancha escura da Via Láctea. A cauda da Ema é formada por Antares e outras estrelas da constelação de Escorpião, e um dos pés é formado pela cauda de Escorpião.
  A parte de baixo do corpo da Ema começa a ser formado pela estrela Beta e por estrelas da constelação de Altar, sendo que a parte de cima de seu corpo é formado principalmente por estrelas pertencentes às constelações de Escorpião e do Lobo.
Desenho da constelação da Ema
Constelação de Escorpião
  De todas as constelações, a de Escorpião é uma das que mais se destaca. Notável por sua extensão, forma e pela riqueza em objetos interessantes à observação, Scorpius (nome latino) sempre surpreendeu aqueles que já se dedicaram à astronomia nos últimos milhares de anos.
  A constelação de Escorpião foi identificada como tal tanto pelos gregos quanto pelos egípcios e persas. A origem egípcia remete às secas que devastavam a região do Nilo, já que nessa época o Sol passava por essa constelação. Antares, a estrela mais brilhante de Escorpião, era considerada uma das "guardiãs" do céu, segundo os persas. Para a mitologia grega, o escorpião foi o animal enviado por Artemis (deusa da caça) para matar o gigante caçador Orion.
Desenho da constelação de Escorpião
  A constelação de Escorpião é uma constelação de verão. Pode ser observada quase na sua totalidade perto da meia-noite. Esta é uma das constelações que com relativa facilidade se consegue realmente imaginar a forma do animal que representa. Ao sul do Trópico de Capricórnio, essa constelação é conhecida como de inverno e perto da linha do Equador como de seca. No coração de Escorpião encontra-se Antares, uma estrela gigante vermelha, que é a 16ª estrela mais brilhante do céu noturno.
Constelação de Escorpião
Constelação do Homem Velho
  Na segunda quinzena de dezembro o Homem Velho surge ao leste. Assinala o início do verão para os índios do sul e o começo das chuvas para os do norte. Conta a lenda que um ancião muito bom de uma tribo tupi-guarani, teve sua perna cortada por sua esposa que estava interessada no seu irmão, e que poderia casar-se com ele quando seu esposo morresse. Como ele era bondoso, os deuses se compadeceram e o colocaram no céu.
  A constelação do Homem Velho é formada pelas constelações ocidentais de Taurus e Orion. A constelação do Homem Velho contém três outras constelações indígenas, cujos nomes em guarani são: Eixu (as Pleiades), Tapi'i rainhykã (as Hyades, incluindo Aldebaran) e Joykexo (o Cinturão de Orion).
Constelação indígena do Homem Velho
  Eixu significa ninho de abelhas. Essa constelação marca o início do ano, quando surge pela primeira vez no lado oeste, antes do nascer do Sol, na primeira quinzena de junho. Quando elas apareciam afirmavam que as chuvas iriam chegar, e ficava até o fim da estação chuvosa.
  Tapi'i rainhykã significa a queixada da anta e anunciava que as chuvas estavam chegando para os índios Tupinambá. Joykexo representa uma linda mulher, símbolo da fertilidade, servindo como orientação geográfica, pois essa constelação nasce no ponto cardeal leste e se põe no ponto cardeal oeste, e representa também o caminho dos mortos.
  A cabeça do Homem Velho é formada pelas estrelas do aglomerado estelar de Híades em cuja direção se encontra Tauri (Aldebaran), a estrela mais brilhante da constelação de Touro. Acima da cabeça do Homem Velho fica o aglomerado estelar das Plêiades (grupo de estrelas da constelação de Touro), que representa um penacho que ele tem amarrado na cabeça. O pescoço do Homem Velho começa em Aldebaran e termina em Orion, de onde partem seus braços. Um de seus braços termina em Touro, e o outro termina na Zeta Orionis, passando por todo o escudo de Orion. O Cinturão de Orion representa o joelho da perna sadia.
Desenho da constelação do Homem Velho
Constelação da Anta do Norte
  A constelação da Anta do Norte fica na região do céu limitada pelas constelações ocidentais do Cisne e Cassiopeia. Ela também utiliza estrelas da constelação Lagarta, Cefeu e Andrômena. Essa constelação é conhecida principalmente por índios brasileiros que habitam a Região Norte, tendo em vista que para os índios da Região Sul, ela está na linha do horizonte, e fica totalmente na Via Láctea.
  Na segunda quinzena de setembro, a Anta do Norte surge ao anoitecer, no lado leste, e indica a transição da estação do frio para o calor para os índios do sul e entre a seca e a chuva para os índios do norte.
Constelação da Anta do Norte
Constelação do Veado
  A constelação do Veado fica na região do céu limitada pelas constelações da Vela e do Cruzeiro do Sul, sendo formada também pelas constelações de Carina e de Centauro. Essa constelação é conhecida principalmente por índios que habitam a Região Sul do Brasil, tendo em vista que para os índios da Região Norte ela fica muito próxima do horizonte.
  Na segunda quinzena de março, o Veado surge ao anoitecer, no lado leste, e indica uma estação de transição entre o calor e o frio para os índios do Sul do Brasil e entre a chuva e a seca para os índios do Norte.
Constelação do Cervo
Constelação da Surucucu
  A Surucucu não é apenas a mais perigosa serpente da Amazônia. Para os povos indígenas da etnia dessana, também é uma das inúmeras constelações que os ajudam a identificar o ciclo dos rios, o período da piracema, a formação de chuvas e o momento ideal para a realização de rituais. Para os índios dessa etnia, a constelação da Surucucu mostrava também a época de cheia dos rios.
  Na astronomia indígena, outubro é o mês do desaparecimento da constelação da Surucucu no horizonte oeste - o equivalente a escorpião na astronomia ocidental. O desaparecimento da figura da cobra está associado ao fim do período de vazante.
Constelação da Sururucucu
Constelação do Tinguaçu
  A constelação do Tinguaçu é uma constelação em forma de pássaro, que fica na região do céu ocupada pelas constelações ocidentais do Touro, de Áries e de Perseu. O corpo do Tinguaçu fica na constelação de Touro, logo abaixo das Plêiades. O seu pescoço, cabeça e bico ficam na constelação de Áries e os seus pés ficam na constelação de Perseu.
  Para os índios guaranis, essa constelação representa uma arapuca para pegar passarinhos, e tem como principal objetivo determinar onde e quando surgirá no horizonte o aglomerado estrelar das Plêiades e a preparação para os rituais do Ano Novo. Ela representa também a época de fartura, que era bastante celebrada com festas por esses índios.
Constelação do Tinguaçu
Constelação de Touro
  A constelação de Touro é uma das mais facilmente identificáveis no céu, pois é formada por um conjunto de estrelas muito brilhantes, designado por "Sete Irmãs". Elas se localizam na constelação de Touro, que ainda traz a constelação de Aldebarã, ou olho do touro, as Híades e a famosa nebulosa do Caranguejo.
  Segundo a mitologia grega, há muito tempo atrás, havia no reino de Tiro, um rei, Agenor, cuja filha era muito bela. Seu nome era Europa, e Zeus se apaixonou perdidamente por sua beleza. Queria possuí-la a qualquer custo. Movido por essa determinação, Zeus decidiu utilizar-se de seu estratagema principal, ou seja, de se metamorfosear de algum ser ou coisa. Zeus jamais aparecia diante de suas eleitas na sua forma pessoal, preferindo assumir outra aparência qualquer. Zeus decidiu, então, transformar-se num grande touro branco.
  Em uma das praias de Tiro, onde um grupo de moças se divertia, entre elas Europa, o touro branco apareceu, assustando o grupo. De todas as moças a única que não fugiu foi Europa, que se aproximou do touro, acariciou o seu pelo e o enfeitou com flores. Quando as moças ganharam confiança, se aproximaram do touro, que fugiu em direção ao mar levando Europa no seu dorso. Europa pediu socorro às companheiras, mas o touro, correndo dia e noite sem parar, nadou até uma praia em Creta, onde deixou a jovem. Aí, Zeus retomou a sua forma divina e uniu-se à Europa, que, com o tempo, dá a ele dois filhos, entre eles Minos, futuro rei de Creta e pai do Minotauro. O Touro brilha até hoje no céu como uma constelação, para recordar essa união.
Constelação de Touro
  A estrela Aldebarã (ou alfa Tauri) é a estrela mais brilhante da constelação de Touro. É conhecida como "o olho do touro", devido ocupar sensivelmente a posição do olho esquerdo do Touro.
  O aglomerado estelar aberto das Plêiades é o grupo de estrelas mais brilhantes em todo o céu. Elas são conhecidas por vários outros nomes, como "Sete Irmãs". Seu nome deriva do grego plein, que significa a abertura e o fechamento da navegação entre os gregos. Na mitologia grega, as Plêiades são as sete irmãs, filhas de Pleione e Atlas, perseguidas por Orion que estava encantado com a beleza das moças, e que para escapar da perseguição do caçador, recorreram aos deuses, que as transformaram em sete estrelas. Seus nomes eram: Maia, Electra, Taigeta, Astérope, Mérope, Alcione e Celeno.
  As Plêiades constituem um grupo de estrelas que se formaram a partir de uma mesma massa inicial de gás e poeira, com idade estimada em 100 milhões de anos.
Desenho da constelação de Touro
  Nas proximidades das Plêiades, é possível observar outro aglomerado aberto de estrelas: as Híades. Na mitologia grega, Híades eram filhas de Atlas e Etera, irmãs de Plêiades pelo lado paterno. Os antigos acreditavam que o nascer e o pôr  helíaco das Híades estavam associados às chuvas. As Híades têm um formato em "V" simbolizando a cara do Touro.
  A Nebulosa do Caranguejo foi observada pela primeira vez em 1731, e é o remanescente de uma supernova (resultado da morte de uma estrela massiva, que colapsou e explodiu liberando uma enorme quantidade de energia) que foi registrada, como uma estrela visível à luz do dia, por astrônomos chineses em 1054. Esta super estrela era o terceiro corpo mais brilhante no céu (depois do Sol e da Lua), e se tornou o primeiro objeto astronômico reconhecido como sendo ligado a uma explosão de supernova.
Constelação de Touro
A Lua
  A Lua tem também papel importante. Os tupinambás atribuem a ela o fluxo e o refluxo do mar e distinguem as duas marés cheias que se verificam na lua cheia e na lua nova. O movimento do astro influi na caça, nas espécies de peixes disponíveis para pesca, no plantio e no corte de madeira.
  Há muito tempo, contam os índios Tembé, da Amazônia, havia uma grande aldeia nas margens do rio Capim, no estado do Pará. Nessa aldeia, vivia um cacique que tinha uma filha muito bonita, olhos negros e cabelos lisos e longos, chamada Flor da Noite. Ela gostava de ficar às margens do rio, observando o pôr do sol. Em uma noite de lua cheia, a índia adormeceu na praia e foi acordada por um grande barulho que vinha do rio. Então, um rapaz saiu da água e eles passaram a namorar em todas as noites de lua cheia. O rapaz era um boto cor-de-rosa e, depois de engravidar Flor da Noite, nunca mais voltou. A índia deu à luz a três botos e, embora triste, ela decidiu soltá-los nas águas do rio, para que eles não morressem. Assim, quando sentem saudades da mãe, os três botos unem-se à procura dela, saltando sobre as águas, sempre na lua nova e na lua cheia, fazendo uma grande onda que se estende até as margens do rio, derrubando árvores e virando barcos.
Fenômeno da pororoca, no rio Amazonas
  Essa fábula, na verdade, narra o fenômeno da pororoca, o estrondo provocado pelo encontro do rio com as ondas do mar, durante o período da maré alta, e mostra que esses índios já conheciam a relação entre as fases da lua e o ciclo das marés.
Vídeo sobre a pororoca
O Sol e os pontos cardeais
  Para os tupi-guaranis o Sol é o principal regulador da vida na Terra e possui um grande significado religioso. Eles determinam o meio-dia solar, os pontos cardeais e as estações do ano utilizando o relógio solar vertical. Este relógio é constituído de uma haste cravada verticalmente em um terreno horizontal, da qual se observa a sombra projetada pelo Sol. Essa haste vertical aponta para o ponto mais alto do céu, chamado zênite. Esse relógio foi utilizado também no Egito, China, Grécia e em diversas outras partes do mundo.
  Na cosmogênese guarani, Nhanderu (Nosso Pai) criou quatro deuses principais que o ajudaram na criação da Terra e de seus habitantes. O Zênite representa Nhanderu e os quatro pontos cardeais representam esses deuses. O Norte é Jakaira, deus da neblina vivificante e das brumas que abrandam o calor, origem dos bons ventos. O Leste é Karai, deus do fogo e do ruído do crepitar das chamas sagradas. No Sul, Nhamandu, deus do Sol e das palavras, representa a origem do tempo-espaço primordial. No Oeste, Tupã, é o deus das águas, do mar e de suas extensões, da chuva, dos relâmpagos e dos trovões.
  O calendário guarani está ligado à trajetória aparente anual do Sol e é dividido em tempo novo e tempo velho (ara pyau e ara ymã, respectivamente, em guarani). Ara pyau é o período de primavera e verão, sendo ara ymã o período de outono e inverno.
  O dia do início de cada estação do ano é obtido através da observação do nascer e do pôr do sol, sempre de um mesmo lugar.
Relógio solar indígena
FONTE: Adas, Melhem
Expedições geográficas / Melhem Adas, Sérgio Adas. - 1. ed. - São Paulo: Moderna, 2011.

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