quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

O FEUDALISMO

   O feudalismo foi a forma de organização social e econômica instituída na Europa Ocidental entre os séculos X e XV durante a Idade Média. Baseava-se em grandes propriedades de terra, chamadas de feudos, que pertenciam aos senhores feudais, e a mão de obra era servil.

  Com a queda do Império Romano do Ocidente e a invasão dos povos bárbaros entre os séculos IV e V, a Europa atravessou um período de ruralização, ou seja, os moradores da cidade se deslocaram para o campo, fugindo da instabilidade provocada pela movimentação dos bárbaros.

  A partir do século XV, o feudalismo entrou em crise por conta das mudanças ocorridas na Europa, como os renascimentos cultural, urbano e comercial.

Uma imagem típica da paisagem feudal: o castelo do senhor controlando as terras onde seus súditos trabalham. Iluminura de Les très riches heures du duc de Berry ou simplesmente Les très riches heures (em português: As riquíssimas horas do duque de Bery)

A crise de Roma e a ruralização europeia

  A partir do século III, iniciou-se o processo de gradual desagregação do Império Romano, marcado, principalmente, pelo fortalecimento dos nobres proprietários de terras e pela perda de poder dos reis. Problemas econômicos, como a diminuição do número de escravizados (antes obtidos por meio de guerras e invasões), disputas pelo poder entre chefes militares e senadores, sucessivas invasões de povos considerados bárbaros e o crescimento do cristianismo, causaram a descentralização política do Império, que culminou na deposição do último soberano de Roma, em 476 d.C.

  A fragmentação do Império Romano possibilitou o fortalecimento do colonato como forma predominante de relação de trabalho. Nesse sistema, indivíduos livres e escravizados se estabeleciam de modo fixo no interior de grandes propriedades, num lote de terra demarcado, devendo entregar parte de sua produção ao proprietário das terras.

  Esse movimento de trabalhadores rurais em direção às grandes propriedades esteve associado às elevadas taxações do governo romano sobre os donos de pequenas  propriedades de terras, ao colapso da economia mercantil do império e à insegurança crescente da vida nas cidades, especialmente após as migrações dos povos romanos.

Painel em relevo do Sarcófago Ludovisi, descrevendo uma batalha entre germânicos e romanos, século III. Os germânicos foram um dos povos considerados bárbaros (que não faziam parte do Império) que ocuparam territórios romanos

  Nesse cenário de instabilidade, a sociedade romana ruralizou-se e passou a apresentar, de modo geral, uma divisão básica entre proprietários e camponeses. Esse processo levou a um crescente enrijecimento da hierarquia social e a regras cada vez mais rígidas nas relações de trabalho.

  Outro fator que contribuiu de maneira significativa para um processo de reclusão social foi a difusão do cristianismo após o século IV. A partir desse momento, quando o cristianismo se tornou crença oficial em Roma, o clero - composto de homens responsáveis  pelos rituais da liturgia cristã - foi aos poucos ganhando  privilégios especiais e grandes poderes políticos (na administração civil) e econômicos (por suas crescentes propriedades rurais). Esses representantes da Igreja passaram a ser responsáveis pela salvação de todas as pessoas, ou seja, a via de comunicação essencial entre o céu e a terra. À medida que ganhava força e prestígio, a Igreja tornou-se a principal instituição reguladora da sociedade, e instaurou-se a mentalidade teocêntrica, ou seja, Deus seria o centro de todas as coisas, e toda a sociedade deveria ser ordenada para Ele.

Catedral de Notre Dame, antes e depois do incêndio de 2019. Demonstração de piedade cristã medieval

Formação do sistema feudal

  À medida que o poder central de Roma se enfraquecia, os grandes proprietários de terras se fortaleciam. Dessa maneira, o poder político regionalizou-se, ou seja, deixou de ser centralizado no império e se distribuiu entre os proprietários rurais.

 Os povos germânicos que entraram nos territórios romanos contribuíram para a formação do sistema feudal. O colonato, típica instituição romana, se juntou ao comitatus, tradição germânica que ligava os chefes militares aos seus guerreiros por meio de obrigações mútuas de serviços e lealdade. O feudalismo, portanto, é resultado da combinação de instituições romanas e tradições germânicas.

  Nesse contexto, os proprietários de terras assumiram a responsabilidade pela defesa de seus domínios e de todos os que neles viviam, consolidando as relações de dependência pessoal. Uma das formas de dependência instituída foi a vassalagem de amparo, o dependente, chamado de vassalo, e um senhor, o suserano, geralmente grande proprietário de terras.

  Esse acordo de mutualidade era firmado em uma cerimônia marcada por dois momentos especiais: o da homenagem (o juramento pessoal) e o da investidura  (o recebimento do bem). O vassalo recebia um benefício - um bem ou direito cedido em troca de fidelidade - e várias obrigações, principalmente militares. Na maioria das vezes, esse benefício - o feudo - compunha um conjunto de terras cedidas por um aristocrata a outro. Os vassalos que recebiam os feudos se tornavam senhores feudais.

  Com o tempo, os próprios vassalos passaram a doar benefícios a outros aristocratas e se tornaram suseranos de seus vassalos. Dessa forma, houve um gradual enfraquecimento, mas não o total desaparecimento, da autoridade real, já que muitos homens, especialmente nas regiões do interior do império, não estavam ligados diretamente ao monarca e, por isso, dificilmente respeitavam suas decisões.

Iluminura da obra Roman de Tristan, manuscrito do século XV de narrativas medievais

A organização e o trabalho nos feudos

  No sistema feudal, a base econômica era a agricultura, praticada pelos camponeses, que compunham a maioria da população e trabalhavam nas unidades agrícolas senhoriais, os senhorios, sob o regime de escravidão.

  As terras do senhorio eram comumente divididas em três partes. O castelo, que era fortificado, era o centro da propriedade. Nele morava a família senhorial e seus dependentes, como cavaleiros e nobres. As três categorias de terras se distinguiam entre o manso senhorial, onde tudo o que era produzido pertencia ao senhor feudal, o manso servil, no qual os servos podiam cultivar alimentos para a própria subsistência, desde que pagassem taxas ao senhor pelo uso da terra e pela proteção, e as terras comunais, utilizadas para pastagem e extração de madeira para senhores e servos. A prática da caça, no entanto, era exclusividade dos senhores.

  No senhorio eram cultivadas leguminosas e produzidos queijos, vinho, manteiga, tecidos e diversos utensílios domésticos, entre outros artigos necessários à subsistência. Cada domínio agrícola buscava essencialmente ser autossustentável: enquanto alguns servos cultivavam a terra e criavam porcos, galinhas e patos, outros produziam tecidos, sapatos, artefatos de madeira e de metal e o que mais fosse preciso. Uma vez que a produção destinava ao consumo interno, sem visar a obtenção de excedentes, a venda de bens agrícolas ou artesanais era bastante restrita. Por isso, o comércio na Europa do período feudal sofreu um grande decréscimo.

Camponeses no trabalho da colheita. Iluminura do Saltério da Rainha Maria, 1553. Os servos, embora exercessem trabalho sob coerção, não eram escravizados e estavam vinculados à terra

A sociedade feudal

  A estrutura social feudal era organizada essencialmente em três ordens, ou estamentos: o clero, a nobreza e o campesinato. Havia uma rigidez na hierarquia social, cujos valores e práticas eram, em grande parte, regulados pela Igreja. Os clérigos legitimavam essa organização afirmando que as pessoas deviam desempenhar suas funções em obediência à vontade de Deus. Assim, a hierarquia era determinada pelo nascimento, e não havia praticamente nenhuma chance de ascensão ou mobilidade social.

  No ideário medieval, os clérigos compunham o grupo que cumpria a função de intermediários entre Deus e os seres humanos. Por esse motivo, em um período de grande fragmentação do poder político, a fé cristã era o fator de união entre os europeus. A Igreja Católica exercia grande autoridade não apenas na vida religiosa, mas também nos negócios, na educação, na vida cotidiana e nas atividades econômicas. O batismo era o mecanismo de inserção das pessoas na sociedade.

  A nobreza era composta de indivíduos detentores de terras e de poder político e que recebiam sólida educação bélica. Esse grupo se diferenciava pelo título nobiliárquico de cada indivíduo. A alta nobreza era uma camada numericamente reduzida representada por príncipes, arquiduques, duques, marqueses e condes. A pequena nobreza compunha-se de viscondes, barões e cavaleiros, especialistas no uso de armas. Os cavaleiros que possuíam grandes extensões de terras podiam dedicar-se inteiramente ao treinamento e ao serviço militar. E os cavaleiros que não tinham terras viviam dos recursos provenientes do seu suserano.

Pirâmide mostrando como era a sociedade feudal

  A grande maioria da população da Europa medieval vivia no campo, onde existiam basicamente três tipos de trabalhadores: os servos, os vilões e os escravizados.

  O trabalho de pessoas escravizadas foi pouco utilizado. Os cativos, frequentemente, realizavam tarefas domésticas. Diferentemente dos escravizados, que podiam ser vendidos e não tinham bens, aos servos era permitido possuir partes de terra.

  A nobreza e o clero eram sustentados pelos servos, que viviam sob o regime de servidão de gleba, ou seja, não podiam abandonar o feudo, mesmo que este era passado para outro senhor. Os servos eram obrigados a pagar uma série de tributos, como a corveia (realização de serviços em alguns dias da semana, nas terras senhoriais), a talha (entrega de metade de tudo o que fosse produzido) e as banalidades (encargos pagos ao senhor feudal pelo uso de suas ferramentas e equipamentos de trabalho).

  Nessa sociedade, havia também os vilões, que não estavam presos à terra e, por isso, podiam transitar pelos domínios senhoriais em busca de trabalho. Alguns conseguiam adquirir terras ou enriquecer com a atividade comercial.

Figurinha mostrando como era o senhorio medieval

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BLOCH, M. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, 1987.

FRANCO JÚNIOR, H. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2006.

LE GOFF, J. A Idade Média explicada aos meus filhos. Rio de Janeiro: Agir, 2007.

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

O SURGIMENTO DO FEMINISMO E DO MOVIMENTO SUFRAGISTA

  O feminismo é um movimento social e político de mulheres e para mulheres que, desde o século XIX, vem ganhando espaço em todo o mundo, promovendo mudanças políticas e sociais em benefício das mulheres e da sociedade como um todo. Suas bandeiras iniciais eram o acesso à educação formal e o direito ao voto e à elegibilidade para as mulheres, seguidas por liberdades civis e autonomia legal, como o direito a posses, direitos trabalhistas e direito ao divórcio.

  Mais à frente, os direitos reprodutivos e a luta contra a violência física, sexual e psicológica também se tornaram bandeiras importantes desse movimento. Ao longo dos anos e conforme cada contexto, o feminismo também foi incorporando demandas específicas e permanece de suma importância para a emancipação feminina e a construção de sociedades mais equânimes.

Manuscrito da obra de Mary Wollstonecraft, Uma Reivindicação pelos Direitos da Mulher

  Com o processo de industrialização e urbanização, e influenciado por diversas correntes de pensamento, organizou-se, entre o fim do século XVIII e o início do século XIX, o movimento que os historiadores e estudiosos do tema costumam chamar de a primeira onda do feminismo.

  A escritora inglesa Mary Wollstonecraft (1759-1797) é considerada uma das pioneiras desse movimento. No livro Uma defesa dos direitos da mulher, publicado em 1792, ela reivindicou o direito feminino à educação formal, instrumento que poderia libertar as mulheres da dependência dos pais, dos maridos e dos irmãos. Isso era essencial, pois as mulheres muitas vezes eram submetidas a maus-tratos pelos homens com os quais conviviam, e não tinham amparo de nenhuma medida protetiva legal. Os escritos de Mary Wollstonecraft inspiraram movimentos feministas na França e nos Estados Unidos.

Mary Wollstonecraft, por John Opie (1797)

  Na Inglaterra, o movimento feminista acompanhou as reformas eleitorais de 1832, 1867 e 1884. Essas reformas asseguraram o direito de voto a dois terços da população masculina adulta, excluindo os pobres, os criminosos, os homens com transtornos mentais e as mulheres.

  Para o movimento feminista era evidente que a ampliação dos direitos políticos e trabalhistas dos homens tinha ocorrido mediante pressões parlamentares. As sufragistas (nome pelo qual ficaram conhecidas as mulheres que lutaram pelo direito do voto feminino) entendiam que somente conquistariam melhores condições de trabalho e romperiam as desigualdades sociais se os políticos fossem obrigados a prestar contas a um eleitorado feminino. Nesse sentido, a conquista do direito ao voto era um meio para atingir uma finalidade maior.

  Diante das sucessivas recusas do Parlamento inglês em aprovar as petições de sufrágio feminino  enviadas durante o século XIX, elas organizaram, em 1897, a União Nacional pelo Sufrágio Feminino. Millicent Fawcett (1847-1929), uma das responsáveis pela fundação do grupo, em 1871, já havia ajudado a fundar o Newnham College, em Cambridge, para favorecer o acesso das mulheres à educação superior.

Millicent Fawcett, por volta de 1913

  No século XX, o movimento sufragista já havia ganhado as ruas de diversos países europeus e americanos. O movimento feminista enfrentou, desde o início, forte resistência de amplos setores da sociedade. O uso de cartazes e peças de propaganda foi uma estratégia fundamental na divulgação do movimento diante das altas taxas de analfabetismo na população mundial.

  Uma guerra de imagens se espalhou pelos muros, postes e locais públicos. Produzidas muitas vezes de forma anônima por grupos favoráveis ou contrários ao movimento, essas imagens nos ajudaram a compreender parte dos anseios das sufragistas  e o preconceito da sociedade do início do século passado diante da participação feminina no mundo do trabalho e na esfera política.

  Em 1903, sob a liderança de Emmeline Pankhurst (1858-1928), a União Política e Social das Mulheres foi fundada com o intuito de pressionar o Parlamento a conceder direito de voto às mulheres. O grupo adotava discursos inflamados, convocando todos os simpatizantes da causa a ir à luta pela extensão desse direito às mulheres. As estratégias de ação eram múltiplas: elas abordavam e interrogavam os políticos, realizavam comícios, divulgavam suas ações pelos bairros londrinos e nas portas das fábricas. Diante da insistência do Parlamento inglês em ignorá-las, elas promoveram ações diretas, como vandalizar prédios públicos e privados. Muitas foram presas ao realizar esse tipo de protesto.

Parada do Sufrágio Feminista em Nova York, em 6 de maio de 1912

A primeira onda do feminismo

  A chamada primeira onda do feminismo, que ocorreu no final do século XIX e primeiras décadas do século XX, tinha como principal reivindicação o direito ao voto feminino, isto é, os direitos políticos de votar e ser votada. O voto foi a principal bandeira desse momento, porque era a reivindicação comum a todas as mulheres.

  O movimento, inicialmente, era formado por mulheres de classe alta que desejavam igualdade perante os homens de sua classe e por mulheres das classes médias que desejavam o treinamento educacional formal e científico, bem como bons empregos, conforme os homens de sua classe, as chamadas feministas liberais. Por último, as mulheres operárias, com péssimas condições de trabalho, baixos salários e sobrecarga de trabalho doméstico que desejavam melhores condições de trabalho e emprego.

A francesa Louise Weiss, juntamente com outras suffragettes parisiences em 1935. A manchete do jornal diz "A Francesa Deve Votar"

  Todas tinham em comum o fato de votar e ser votadas, portanto, essa pauta galvanizou o apoio de todas, já que as demandas específicas de cada grupo só poderiam acontecer mediante mudanças nas leis. Assim, a igualdade jurídica dependia da igualdade política, e reivindicações como educação formal e direito a posses e ao divórcio estavam ligadas à luta pelo direito ao voto.

  O movimento sufragista, que representa essa primeira onda, começou na Inglaterra e alcançou o mundo. Sua mais notória porta-voz foi Emmeline Pankhurt, líder das suffragettes, que, a partir de determinado momento, deixaram de compor o movimento pacífico para realizar uma militância radical e violenta, dispostas a serem presas, feridas ou mortas pela causa.

  O primeiro país a garantir o voto feminino foi a Finlândia, em 1893. Os demais a fizeram ao longo do século XX, especialmente nos pós-guerras. O último país a efetivar o voto feminino foi a Arábia Saudita, em 2015.

Depois de vender sua casa, Emmeline Pankhurt, na foto em Nova York, em 1913, viajou constantemente dando palestras em todo o Reino Unido e Estados Unidos

A segunda onda do feminismo

  A segunda onda do feminismo ocorreu na segunda metade do século XX, entre as décadas de 1960 e 1980. Nessa fase do movimento, a sexualidade feminina foi um tema primordial, como a questão do prazer feminino, liberdade sexual, os direitos reprodutivos, a saúde da mulher e o estupro (sexo não constituído).

  Essa segunda onda aconteceu no âmbito da revolução sexual dos anos 1960, período também da invenção da pílula anticoncepcional e da ressignificação do sexo não somente como meio para a procriação, mas para o prazer. Outra temática que foi objeto de reflexão e reivindicações nesse período foram as questões relacionadas ao ambiente familiar, como violência doméstica, trabalho doméstico não remunerado majoritariamente realizado por mulheres e o planejamento familiar sobre quantidade de filhos e quando tê-los.

Passeata pelos direitos das mulheres, em 1970, em Washington D.C.

  A teórica e ativista que influenciou de modo significativo, não só a segunda onda do feminismo, mas as que se seguiram a essa foi a filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908-1986), especialmente por sua obra "O Segundo Sexo", publicada em 1949. Sua tese fundamental é que ser mulher é uma construção social, e não biológica, sintetizada em sua famosa frase: "Não se nasce mulher, torna-se".

  Essa percepção implicou compreender que a opressão sobre as mulheres em todas as áreas também é uma construção social, e não algo natural e imodificável. Portanto, a idealização do feminino como emocional, delicado e voltado para a maternidade e o casamento é cultural, e não uma inclinação biológica da mulher.

Simone de Beauvoir, em 1968

A terceira onda do feminismo

  A terceira onda do feminismo ocorreu na década de 1990, em um contexto de forte reação à pauta feminista pela política de viés conservador, que a considerava como desnecessária, como se a igualdade plena já tivesse sido alcançada. Os trabalhos teóricos então se voltaram para mostrar em que pontos as desigualdades ainda permaneciam e acrescentaram a concepção de interseccionalidade, que aponta a necessidade de se considerar outros padrões de opressão, tais como raça, classe e orientação sexual, que se somam ao machismo, gerando violências e demandas específicas.

  Uma teórica influente desse período é a filósofa norte-americana Judith Butler, cujo livro "Problemas de Gênero" (1990) problematiza o conceito de gênero, abordando-o como não binário, fluido e constituído por comportamentos que compõem uma performance. Essa ressignificação da concepção de gênero e da sexualidade ficou conhecida como queer, o que abriu espaço para que, no feminismo, a heteronormatividade fosse questionada e se desenvolvesse o transfeminismo.

  Outra dimensão abordada na terceira onda é a do colonialismo, isto é, a influência dos países hegemônicos sobre a construção do feminismo nos países periféricos. Assim, o feminismo indígena e o feminismo pós-colonial incluíram o fator geopolítico do colonialismo em suas reivindicações de gênero.

Passeata pelo Dia Internacional da Mulher em Daca, Bangladesh, organizado pelo Sindicato Comercial Nacional das Trabalhadoras

A quarta onda do feminismo

  A denomina quarta onda do feminismo remonta ao ano de 2010, quando cresceu significativamente a militância política nas redes sociais. A difusão de ideias feministas foi amplificada por sites e blogs, e a própria mobilização passou a contar com ferramentas virtuais, como hashtags de denúncias sobre situações de assédio, que por vezes têm escala global, como a campanha argentina #niunaamenos de 2015 e a norte-americana #metoo de 2017.

  Essa quarta onda se desenvolve sobretudo entre mulheres jovens. A representatividade e a violência sexual são temas centrais. Um marco desse movimento foi a marcha organizada em 2011 por jovens estudantes canadenses, a Marcha das Vadias. Esse movimento foi motivado pela abordagem policial feita a uma jovem que tinha sofrido um estupro e que foi culpabilizada pela roupa com que estava vestida. No mesmo ano, a marcha foi realizada em outros países, inclusive no Brasil.

  Uma importante liderança feminista desse período é a ativista nigeriana Chimammanda Ngozi Adichie, autora do livro "Sejamos Todos Feministas", baseado em uma palestra dela que viralizou em 2011 e que abordaos estereótipos sobre o feminismo e a necessidade de que essa luta seja defendida por todos, e não somente pelas mulheres.

Marcha das Vadias de 2013, em Porto Alegre, RS

O feminismo no Brasil

  No Brasil do século XIX, já havia artigos na imprensa em defesa da emancipação das mulheres. A educadora potiguar Nísia Floresta (1810-1885) foi a precursora do feminismo no Brasil. Ela  fundou, em 1838, no Rio de Janeiro, o Colégio Augusto, voltado para meninas com a mesma ementa de ensino que os meninos estudavam. Em 1832 publicou seu primeiro livro "Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens", artigo em defesa do acesso igualitário à educação e aos direitos políticos, que era uma livre tradução do artigo "Reivindicações dos Direitos das Mulheres", de Mary Wollstonecraft.

Capa da segunda edição de Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens, 1833

  No início do século XX, formaram-se agremiações femininas em busca de direitos. A primeira foi o Partido Republicano Feminino, fundado em 1910 pela baiana Leolinda de  Figueiredo Daltro (1859-1935), professora e indigenista. A segunda agremiação foi determinante para a conquista do voto feminino no Brasil. Liderada pela paulista Bertha Lutz (1894-1976), a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, aliada ao movimento feminista de outras partes do mundo, lutou ativamente por meios pacíficos, propagandas, panfletos, artigos, palestras, conferências, reuniões políticas, cartas endereçadas a parlamentares e assessoria jurídica a mulheres, até que em 1932 o voto feminino fosse garantido. A potiguar Celina Guimarães Viana (1890-1972) foi a primeira mulher brasileira a tirar o título de eleitor.

Celina Guimarães, primeira mulher a tirar o título de eleitor, votando onde atualmente funciona a Biblioteca Municipal de Mossoró (RN) em 1928

  Nas décadas de 1940 e, mais tarde, 1960 e 1970, o feminismo brasileiro teve como pano de fundo regimes autoritários, o que impunha obstáculos não somente pela repressão estatal, mas também pela hostilidade de setores da esquerda, que o consideravam como pauta secundária em relação à redemocratização. O movimento de mulheres que se articulou para participar da Assembleia Nacional Constituinte (1987) ficou conhecida como lobby de batom.

  Na Nova República, uma das maiores conquistas da luta feminista foi a instituição da Lei Maria da Penha (2006), a Lei do Feminicídio (2015) e a Lei da Importunação Sexual (2018), importantes ferramentas no enfrentamento da violência contra a mulher, seja física, seja sexual - no caso dessa última, em situações de abuso ou divulgação de imagens íntimas.

Maria da Penha Maia Fernandes. Farmacêutica cearense que lutou para que seu agressor fosse condenado. Em 7 de agosto de 2006, foi sancionada pelo então presidente Luís Inácio Lula da Silva, a lei que leva seu nome: Lei Maria da Penha, importante ferramenta legislativa no combate à violência doméstica e familiar contra mulheres, no Brasil

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FRACCARO, Glaucia Cristina C. Uma história social do feminismo: diálogo de um campo político brasileiro (1917-1937). Estudos Históricos, v. 31, n. 63, 2018.

SEMÍRAMIS, Cynthia. A reforma sufragista: origem da igualdade de direitos entre mulheres e homens no Brasil. Belo Horizonte: Busílis, 2020.

SILVA, Daniel Neves. "O que é feminismo?"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/o-que-e/historia/o-que-e-feminismo.htm. Acesso em: 3 de janeiro de 2023.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

AS CADEIAS PRODUTIVAS NA AGROPECUÁRIA

  Define-se cadeia produtiva como sendo o conjunto de atividades econômicas que se articulam progressivamente desde o início da elaboração de um produto. Isso inclui desde as matérias-primas, insumos básicos, máquinas e equipamentos, componentes, produtos intermediários até produto acabado, a distribuição, a comercialização e a colocação do produto final junto ao consumidor, constituindo elos de uma corrente. A cadeia produtiva é composta por elos. Podemos classificar, de uma maneira geral, os elos da cadeia em: produtores, distribuidores, prestadores de serviços, varejistas e consumidores.

  As atividades agropecuárias articuladas ao agronegócio também se estruturam em cadeias produtivas, conectando diferentes setores econômicos do campo e da cidade.

  A conexão entre campo e cidade intensificou-se ao longo do tempo. Pode-se afirmar que, na passagem do século XIX para o XX, por exemplo, o campo era relativamente independente das atividades industriais. Hoje em dia, porém, a vinculação entre os setores urbano-industriais e o agronegócio é cada vez mais profunda.

  As atividades do campo são importantes não apenas por fornecerem insumos, alimentos e matérias-primas para a indústria, mas também por dependerem cada vez mais dos produtos industrializados, como maquinários e agrotóxicos (inseticidas, herbicidas, fungicidas etc.). Essa inter-relação está diretamente ligada à expansão da chamada agropecuária moderna ou tecnificada, que pressupõe o desenvolvimento de um sistema de produção no campo semelhante ao industrial.

Exemplo de cadeia produtiva no agronegócio

O agronegócio e os sistemas de produção

  A expansão da agropecuária moderna ou tecnificada se insere no conceito do agronegócio, que compreende toda a cadeia produtiva que envolve as atividades desse setor.

  No agronegócio, privilegiam-se os sistemas intensivos de cultivo e criação, com o objetivo de reduzir ao máximo o tempo de produção e garantir a alta produtividade. Na atividade agrícola, são usadas sementes de alto rendimento, além de técnicas e equipamentos modernos de preparação do solo, de plantio e de colheita (com a aplicação de agrotóxicos e intensa irrigação). Já na pecuária, a alta produtividade é obtida com a utilização de espécies selecionadas geneticamente, criação em sistema de confinamento e alimentação com emprego de ração, além de ampla assistência veterinária. Trata-se, portanto, de um modelo de produção diferente do sistema de produção extensivo, no qual tanto a agricultura quanto a pecuária são realizadas com equipamentos e técnicas rudimentares e com baixa capacidade de investimentos em tecnologia e mecanização.

  É importante ressaltar o fato de que o emprego no sistema intensivo de elevada produtividade, não depende do tamanho da área de cultivo ou de criação, mas da maneira como essas atividades são realizadas.

Exemplo de cadeia produtiva da carne bovina

Commodities agropecuárias e a modernização do campo

  Atualmente, as commodities agropecuárias, importantes há muito tempo no comércio internacional e na DIT (Divisão Internacional do Trabalho), são produzidas em larga escala e de forma padronizada, principalmente em propriedades rurais equipadas com elevado nível de automação dos processos produtivos. Nelas é comum o investimento em inovações tecnológicas, como drones para o monitoramento de cultivos (visando ao controle de doenças e correções de eventuais falhas de plantio), máquinas agrícolas computadorizadas e sistema de irrigação sincronizados com informações sobre as condições climáticas, como temperatura e umidade do ar. Todos esses recursos integram o que se denomina como agricultura de precisão, que busca obter o maior rendimento, no menor tempo, e com baixo risco de perdas.

  Em geral, as commodities, especialmente os grãos, podem ser armazenados durante longos períodos e preservar suas principais propriedades. O silo é um grande reservatório de armazenamento de grãos, com o objetivo de preservar as características dos produtos até o momento da comercialização. Geralmente, esse tipo de estrutura está presente nas grandes propriedades agrícolas e também nos portos e terminais de embarque de grãos.

Etapas da agricultura de precisão

A cadeia produtiva da produção de carne de frango e de ovos no Brasil

  A cadeia produtiva de frangos de corte agrega setores desde o produtor de grãos e as fábricas de rações, os transportadores, os abatedouros e frigoríficos até o segmento de equipamentos, medicamentos, distribuição e o consumidor final. A eficiência dessa cadeia produtiva é que tem permitido ao Brasil ser o terceiro produtor mundial e o primeiro exportador de carne de frangos, atendendo mais de 150 países, devido a qualidade e segurança alimentar da carne brasileira e à eficiência de produção.

  A produção de frangos de corte é cercada de tecnologia. Os aviários utilizam vários equipamentos para manter o ambiente controlado. As empresas de genética e laboratórios em todo o mundo, bem como as fábricas de rações, buscam desenvolver e aperfeiçoar continuamente as linhagens de frangos para alto desempenho, com saúde, conforto animal, a custo competitivo com outras carnes, sempre visando a sustentabilidade na produção.

  Os frangos são aves com crescimento rápido porque são muito eficientes em transformar ração em carne, fruto de décadas de pesquisa e desenvolvimento da ciência avícola no Brasil. Isso porque  a genética, a nutrição, os cuidados com as doenças e a modernização das granjas garantem ganhos contínuos de produtividade e de eficiência.

Esquema da cadeia produtiva da carne de aves

  Já a produção de ovos tem duas finalidades distintas: a incubação, compreendendo a produção destinada à reprodução das aves de corte e de postura; e o consumo, também chamado de ovos de mesa, visando ao consumo humano direto ou indireto. As galinhas são as principais fontes de produção de ovos para consumo, seguidas pelas patas e pelas codornas. Os ovos das demais espécies de aves domesticadas, como gansas, peruas e avestruzes, são predominantemente destinadas à incubação.

  O ovo é um alimento natural e uma fonte barata de proteína de excelente qualidade, além de conter gorduras, vitaminas, minerais e reduzida concentração calórica. É uma importante reserva de nutrientes favoráveis à saúde e preventivo de doenças, agindo nas atividades antibacteriana, antiviral e na modulação do sistema imunológico.

  A produção de ovos depende de um conjunto de insumos, dentre os quais se destacam rações, vacinas, equipamentos, instalações, medicamentos e genética.

Esquema da cadeia produtiva de ovos

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BATALHA, M. O.; Da SILVA, A. L. Gestão de cadeias produtivas: novos aportes teóricos e empíricos. Texto mimeografado, documento preliminar para discussão. São Carlos, 1999.

EMBRAPA. htpps://www.embrapa.br. Acesso em: 27/12/2022.

SILVA, I. J. O.; MIRANDA, K. O. S. Impactos do bem-estar na produção de ovos. Revista Thesis. São Paulo, ano VI, n. 11. 1º sem. 2009.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

HAITI: O PAÍS MAIS POBRE DO CONTINENTE AMERICANO

   O Haiti é um país do Caribe. Ocupa uma pequena porção ocidental da ilha de São Domingos, também chamada de Hispaniola, no arquipélago das Grandes Antilhas, partilhando a ilha com a República Dominicana.

  O Haiti foi o primeiro país latino-americano a declarar sua independência e, ao longo de sua história, ficou marcado por golpes e ditaduras. Isso resultou no quadro social do país, que é o mais pobre do continente americano. Foi também, o primeiro a abolir a escravidão no continente.

  Em 2010, o Haiti sofreu um forte terremoto, que abalou fortemente a estrutura do país, em especial sua capital, Porto Príncipe.

Mapa com a localização geográfica do Haiti

HISTÓRIA

  O território que atualmente corresponde ao Haiti, era ocupado por índios arauaques, quando, em 1492, Cristóvão Colombo chegou à ilha. Os espanhóis batizaram a ilha de Hispaniola, ocupando, primeiramente, a porção oriental do território, que corresponde atualmente à República Dominicana. Eles escravizaram os índios que ali viviam e, até o final do século XVI, a população nativa foi reduzida em quase toda sua totalidade.

  Em 1697, a partir da assinatura do Tratado de Ryswick envolvendo, Espanha e França, a parte ocidental da ilha, onde atualmente fica o Haiti, foi cedida à França, e recebeu o nome de Saint Domingue, se tornando a mais importante possessão francesa na América, onde ocorreu o cultivo da cana-de-açúcar com a utilização de mão de obra escrava africana. Porém, esses africanos escravizados, influenciados pela Revolução Francesa, rebelaram-se em 1791, liderados pelo ex-escravo Toussaint L'Ouverture.

Batalha de San Domingo, pintado por January Suchodolski, representando uma luta entre tropas polonesas a serviço da França e os rebeldes do Haiti

  A abolição da escravidão ocorreu no ano de 1794, após uma revolta de escravos, tornando-se o primeiro país do mundo a abolir a escravidão. Nesse mesmo ano, a França passou a dominar toda a ilha. Em 1801, o ex-escravo Toussaint Louverture tornou-se governador-geral, sendo deposto e morto logo em seguida pelos franceses. O líder Jean Jacques Dessalines organizou o exército e derrotou os franceses em 1803. Em 1804, foi declarada a independência, tornando o segundo país independente da América (os Estados Unidos foram o primeiro), e Dessalines proclamou-se imperador. Em represália, os escravistas europeus e estadunidenses mantiveram o Haiti sob um bloqueio econômico por 60 anos.

  Em 1815, Simon Bolívar refugiou-se no Haiti, após o fracasso de sua primeira tentativa de luta contra os espanhóis. Recebeu dinheiro, armas e pessoal militar, com a condição de que abolisse a escravidão nas terras que libertasse. Posteriormente, para pôr fim ao bloqueio, o Haiti, sob o governo de Jean-Pierre Boyer, cercado pela frota da ex-metrópole, concordou em assinar um tratado pelo qual seu país pagaria à França a quantia de 150 milhões de francos a título de indenização. A dívida depois foi reduzida para 90 milhões, mas trouxe reflexos negativos para a economia do país.

  Após um período de estabilidade, o Haiti foi dividido em dois e a parte oriental - atual República Dominicana - reocupada pela Espanha. Em 1822, o presidente Jean-Pierre Boyer reunificou o país e conquistou toda a ilha. Em 1844, uma nova revolta derrubou Boyer e a República Dominicana conquistou a independência.

Representação do massacre de 1804

  Da segunda metade do século XIX ao começo do século XX, vinte governantes sucederam-se no poder. Desses, 16 foram depostos ou assassinados. Entre 1915 e 1934 o Haiti foi ocupado por tropas norte-americanas sob o pretexto de proteger os interesses dos Estados Unidos no país. O almirante William B. Caperton impôs ao governo uma convenção cujas cláusulas depositavam a administração civil e militar, as finanças, as alfândegas e o banco do Estado em mãos norte-americanas. Proclamou também uma lei marcial sobre todo o território. Em 1946, foi eleito um presidente negro, Dumarsais Estimé. Após a derrubada de mais duas administrações governamentais, o médico François Duvalier, foi eleito presidente em 1957.

  François Duvalier, conhecido como Papa Doc, apoiado pelos Estados Unidos no contexto da Guerra Fria, instaurou uma forte ditadura baseada no terror policial dos tontons macoutes (bichos-papões) - sua guarda pessoal - e na exploração do vodu. A partir de 1964, Papa Doc tornou-se presidente vitalício, exterminou a oposição e perseguiu a Igreja Católica. Papa Doc morreu em 1971 e foi substituído por seu filho, Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc.

François Duvalier, o Papa Doc (1907-1971)

  Em 1986, Baby Doc decretou estado de sítio. Os protestos populares se intensificaram e ele fugiu com a família para a França, deixando em seu lugar o General Henry Namphy. Foram convocadas eleições e Lesile Manigat foi eleito presidente, em um pleito caracterizado por grande abstenção. Manigat governou de fevereiro a junho de 1988, quando foi deposto por Namphy. Três meses depois, outro golpe de Estado pôs no poder o chefe da guarda presidencial, o General Prosper Avril.

  Depois de mais um período de conturbação política, foram realizadas eleições presidenciais livres em dezembro de 1990, vencida pelo padre salesiano Jean-Bertrand Aristide, ligado à teologia da libertação. Em setembro de 1991, Aristide foi deposto num golpe de Estado liderado pelo General Raoul Cédras e se exilou nos Estados Unidos. A Organização dos Estados Americanos (OEA), a Organização das Nações Unidas (ONU) e os Estados Unidos impuseram sanções econômicas ao país para forçar os militares a permitirem a volta de Aristide ao poder.

Pétionville - com uma população de 291.996 habitantes (estimativa 2022) é a quarta cidade mais populosa do Haiti

  Em julho de 1993, Cédras e Aristide assinaram um pacto em Nova York, acordando o retorno do governo constitucional e a reforma das Forças Armadas. Em outubro de 1993, porém, grupos paramilitares impediram o desembarque de soldados norte-americanos, integrantes de uma Força de Paz da ONU. O elevado número de refugiados haitianos que tentavam ingressar nos Estados Unidos fez aumentar a pressão pela volta de Aristide. Em maio de 1994, o Conselho de Segurança da ONU decretou bloqueio total ao país. A junta militar empossou um civil, Émile Jonassaint, para exercer a presidência até as eleições marcadas para fevereiro de 1995. Os Estados Unidos denunciaram o ato como ilegal. Em julho, a ONU autorizou uma intervenção militar, liderada pelos Estados Unidos. Em 1º de agosto, Jonaissant decretou estado de sítio.

  Em setembro de 1994, uma força multinacional, liderada pelos Estados Unidos, entrou no Haiti para reempossar Aristide. Os chefes militares haitianos renunciaram a seus postos e foram anistiados. Jonaissant deixou a presidência em outubro e Aristide reassumiu o poder com a economia destroçada pelo bloqueio comercial e por convulsões internas.

Croix-des-Bouquets - com uma população de 236.367 habitantes (estimativa 2022) é a quinta cidade mais populosa do Haiti

  Entre 1994 e 2000, o Haiti viveu mergulhado em crises. Devido à instabilidade, não puderam ser implementadas reformas políticas profundas. A eleição parlamentar e presidencial em 2000, foi marcada pela suspeita de manipulação por Aristide e seu partido político. O diálogo entre oposição e governo ficou prejudicado. Em 2003, a oposição passou a clamar pela renúncia de Aristide. A Comunidade do Caribe, Canadá, União Europeia, França, Organização dos Estados Americanos e Estados Unidos, apresentaram-se como mediadores, sendo que a oposição refutou as propostas de mediação, o que aprofundou a crise.

  Em fevereiro de 2004, ex-integrantes do exército haitiano (tontons macoutes) deram início a um levante militar em Gonaives, espalhando-se por outras cidades nos dias subsequentes. Gradualmente, os revoltosos assumiram o controle do norte do Haiti. Apesar dos esforços diplomáticos, a oposição armada ameaçou marchar sobre Porto Príncipe, onde se preparava uma resistência pró-Aristide.

  Aristide foi retirado do país por militares norte-americanos em 29 de fevereiro, contra sua vontade, e conseguiu asilo na África do Sul. De acordo com as regras de sucessão constitucional, o presidente do Supremo Tribunal, Bonifácio Alexandre, assumiu a presidência interinamente e requisitou, de imediato, assistência das Nações Unidas para apoiar uma transição política pacífica e constitucional e manter a segurança interna. Nesse sentido, o Conselho de Segurança (CS) aprovou o envio da Força Multinacional Interna (MIF), liderada pelo Brasil, que prontamente iniciou seu desdobramento.

Soldado do Exército Brasileiro da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH), na favela de Cité Solei, em Porto Príncipe

  Em 12 de janeiro de 2010, um terremoto de proporções catastróficas, com magnitude sísmica de 7,0 (7,3 na escala de Richter), atingiu o país a aproximadamente 22 quilômetros da capital, Porto Príncipe. Em seguida, foram sentidos na área múltiplos tremores com magnitude em torno de 5,9 graus. O Palácio Presidencial, várias escolas, hospitais e outras construções ficaram destruídos após o terremoto e estima-se que 80% das construções de Porto Príncipe foram destruídas ou seriamente danificadas. O terremoto deixou cerca de 300 mil mortos, mais de 300 mil feridos e em torno de 1,5 milhão de desabrigados.

  Em 2010, Michel Martelly foi eleito presidente, assumindo em 2011, deixando a presidência em 2016 numa profunda crise eleitoral, onde não houve um resultado formal do vencedor e cujo Senado teve que refazer uma eleição indireta, empossando Jocelerme Privert, presidente do Senado, após um breve vácuo na presidência, onde o país ficou sob o comando do então Primeiro-Ministro Evans Paul.

  Em 7 de julho de 2021, o presidente Moïse foi assassinado em um ataque à sua residência privada, com a primeira-dama, Martine Moïse, tendo sido hospitalizada.

Carro da ONU patrulhando as ruas de Porto Príncipe após o terremoto de 2010

GEOGRAFIA

  O Haiti está localizado na parte ocidental da ilha de Hispaniola, a segunda maior ilha das Grandes Antilhas, no Caribe. Partilha uma fronteira de 360 quilômetros com a República Dominicana, a leste. Possui o segundo maior litoral das Grandes Antilhas, com 1.771 quilômetros.

  A noroeste, está situada Cuba, que se separa do território haitiano pelo canal de Barlavento, enquanto a oeste, estende-se o canal da Jamaica, que separa a ilha de São Domingos do território jamaicano.

  O país encontra-se em um território com grande instabilidade tectônica, devido encontrar-se na falha geológica do sistema Enriquillo-Plantain Garden. O limite norte da falha é onde a placa tectônica do Caribe se desloca para leste por cerca de 20 mm por ano em relação à placa Norte-Americana. O sistema de falhas transcorrentes na região tem duas áreas no Haiti: a Falha Setentrional-Oriental no norte, e a Falha de Enriquillo-Plantain Garden no sul.

Falha de Enriquillo-Plantain Garden, na ilha de Hispaniola. O círculo vermelho foi o epicentro do terremoto de 2010 no Haiti; as setas brancas indica a direção de movimentação das placas tectônicas

  O país é banhado pelo mar do Caribe, que envolve também um pequeno conjunto de ilhas que integram o seu território, que são: Tortuga, Gonâve, Cayemitas e Île-à-Vache.

  O relevo haitiano é bastante jovem, com terrenos montanhosos e acidentados e com ao menos quatro cordilheiras atravessando o território do país. O ponto mais elevado é o Pico La Selle, localizado no departamento administrativo Oeste, com uma altitude de 2.680 metros, e que faz parte da cordilheira de La Selle.

Pic la Selle - ponto mais elevado do Haiti

  O clima predominante no Haiti é o tropical úmido, com variações locais determinadas pelo relevo. Uma das suas principais características é a elevada amplitude térmica diária e baixa variação anual.

  As temperaturas médias anuais ficam entre 25ºC e 30ºC. Nas áreas mais elevadas, as temperaturas são mais amenas, com mínimas de até 16ºC. O volume de chuvas varia bastante, ficando com uma média de 700 milímetros ao ano nas encostas das montanhas. As áreas a leste são mais secas devido à presença de cadeias montanhosas, que impedem a chegada dos ventos úmidos à região.

Mapa climático do Haiti segundo a classificação de Köppen

  A vegetação natural do Haiti é formada por florestas tropicais. No entanto, a vegetação remanescente dessa formação são encontradas nas áreas mais elevadas, em especial nos maciços do sul e do centro-sul. Campos e bosques são encontrados em planícies ou áreas de relevo menos acidentado, enquanto no litoral há a presença de mangues.

Mapa da vegetação do Haiti

  O principal e maior rio do Haiti e também de toda a ilha de São Domingos é o rio Artibonite, com uma extensão de 253 quilômetros. Sua nascente está localizada nos montes Cibao, na Cordilheira Central, na República Dominicana. Sua foz é no Golfo de Gonâve. O rio é usado para irrigação e também para a produção de energia. O rio Artibonite dá nome a um dos departamentos do Haiti e forma parte da fronteira com a República Dominicana.

  A maior parte dos cursos d'água que banham o território haitiano deságua no golfo de Gonâve, um golfo triangular que forma toda a costa oeste do Haiti, que também é o maior golfo do mar do Caribe.

Rio Artibonite

ECONOMIA

  O Haiti é considerado o país mais pobre do continente americano, o que se deve a uma série de fatores socioeconômicos e históricos, perpetuados ao longo do tempo, e também políticos, dos quais se destacam os períodos de instabilidade política e institucional e dos golpes de Estado, seguidos de longas ditaduras que imperaram no país.

  Destaca-se, ainda, a má distribuição de renda e a intensa concentração nas mãos de um pequena parcela da população. Outro fator que contribui para a pobreza que impera no país, refere-se aos intensos desastres naturais que o país sofre frequentemente, como furacões e terremotos, que fragilizam ainda mais a situação da população haitiana. A pesca e o turismo também são uma importante fonte de renda para o país.

Jacmel - com uma população de 142.325 habitantes (estimativa 2022) é a sexta cidade mais populosa do Haiti

DEMOGRAFIA

  Embora a densidade demográfica do país seja de 423,8 hab./km², sua população se concentra fortemente mais nas áreas urbanas, nas planícies costeiras e nos vales. De acordo com estimativas para 2022, a população haitiana é de 11.762.847 habitantes. Cerca de 95% dos haitianos são negros, descendentes de escravos africanos, o que faz do país o que tem a maior porcentagem de população negra fora da África no mundo. Os 5% restantes são brancos ou mulatos. Milhões de haitianos vivem no exterior, principalmente nos Estados Unidos, na República Dominicana, em Cuba e no Canadá.

  Devido ao sistema de casta racial instituído no Haiti colonial, os mulatos haitianos se tornaram uma elite social dentro da nação e foram racialmente privilegiados. Vários líderes ao longo da história do país eram mulatos. Os mulatos têm mantido a sua preeminência evidente na hierarquia política, econômica, social e cultural do país. Alexandre Pétion, cuja mãe era haitiana e o pai era um francês bastante rico, foi o primeiro presidente do país.

Cabo Haitiano - com uma população de 139.075 habitantes (estimativa 2022) é a sétima cidade mais populosa do Haiti

CULTURA

  O arcabouço cultural do Haiti é bastante rico e diverso, sendo formado com base na influência predominante dos africanos e também dos franceses e espanhóis. Isso reflete em vários aspectos e nas formas de manifestação cultural, em especial na música, nas artes em geral, no idioma e na religiosidade.

  O crioulo haitiano e o francês são considerados os idiomas falados oficiais do país. O francês é utilizado principalmente para propósitos políticos e administrativos, além de ser também a principal língua utilizada para a escrita. A língua crioula é falada pela grande maioria dos haitianos e possui variações regionais.

Léogáne - com uma população de 138.430 habitantes (estimativa 2022) é a oitava cidade mais populosa do Haiti

  A religiosidade é outro aspecto interessante da cultura haitiana. O sincretismo religioso é amplamente presente no Haiti, com a predominância das religiões cristãs de origem europeia e das religiões africanas, com destaque para o Vodu, que tem origem nas tradições da África Ocidental. O vodu foi oficializado como religião no Haiti no ano de 2003, e muitos dos seus elementos são empregados em várias práticas religiosas no país.

Les Cayes - com uma população de 129.774 habitantes (estimativa 2022) é a nona cidade mais populosa do Haiti

  A música haitiana combina uma ampla gama de influências extraídas dos muitos povos que se instalaram na ilha caribenha. Ela reflete ritmos franceses, africanos, espanhóis e de outras culturas que habitaram a ilha de Hispaniola. Entre os estilos musicais exclusivos da nação estão músicas derivadas de tradições cerimoniais do vodu haitiano, entre outros.

  O futebol é o esporte mais tradicional do Haiti, com centenas de pequenos clubes de futebol competindo em nível local. Em 1974, a Seleção Haitiana de Futebol se tornou a segunda seleção do Caribe a se classificar para a Copa do Mundo de Futebol FIFA (a primeira foi Cuba, em 1938). A seleção venceu a Copa das Nações do Caribe em 2007. O Haiti participa dos Jogos Olímpicos desde o ano de 1900, tendo ganhado duas medalhas em 1924 e 1928.

Petit-Goáve - com uma população de 121.217 habitantes (estimativa 2022) é a décima cidade mais populosa do Haiti
ALGUNS DADOS SOBRE O HAITI


NOME: República do Haiti
INDEPENDÊNCIA: da França
Declarada: 1 de janeiro de 1804
Reconhecida: 1825
CAPITAL: Porto Príncipe
Visão aérea de Porto Príncipe
GENTÍLICO: haitiano (a)
LÍNGUA OFICIAL: francês e crioulo haitiano
GOVERNO: Republica Unitária Semipresidencialista
LOCALIZAÇÃO: América Central (Grandes Antilhas)
ÁREA: 27.750 km² (144º).
POPULAÇÃO (ONU - Estimativa para 2022): 11.762.847 habitantes (81°)
DENSIDADE DEMOGRÁFICA: 423,88 hab./km² (28°). Obs: a densidade demográfica, densidade populacional ou população relativa é a medida expressa pela relação entre a população total e a superfície de um determinado território.
CRESCIMENTO POPULACIONAL (ONU - Estimativa 2022): 1,58% (81°). Obs: o crescimento vegetativo, crescimento populacional ou crescimento natural é a diferença entre a taxa de natalidade e a taxa de mortalidade de uma  determinada população.
CIDADES MAIS POPULOSAS (Estimativa para 2022):
Porto Príncipe:1.273.762 habitantes
Porto Príncipe - capital e maior cidade do Haiti
Carrefour: 456.128 habitantes
Carrefour - segunda cidade mais populosa do Haiti
Delmas: 395.020 habitantes
Delmas - terceira cidade mais populosa do Haiti
PIB (FMI - Estimativa 2022): US$ 20,182 bilhões (118º). Obs: o PIB (Produto Interno Bruto), representa a soma (em valores monetários) de todos os bens e serviços finais produzidos numa determinada região (quer sejam países, estados ou cidades), durante um período determinado (mês, trimestre, ano).
PIB PER CAPITA (FMI 2021): US$ 784 (169°). Obs: o PIB per capita ou renda per capita é o Produto Interno Bruto (PIB) de um determinado lugar dividido por sua população. É o valor que cada habitante receberia se toda a renda fosse distribuída igualmente entre toda a população.
Mapa-múndi mostrando a renda per capita dos países em 2019
IDH (ONU - 2021): 0,535 (163°). Obs: o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) é uma medida comparativa usada para classificar os países pelo seu grau de desenvolvimento econômico e a qualidade de vida oferecida à população. Este índice é calculado com base em dados econômicos e sociais, variando de 0 (nenhum desenvolvimento humano) a 1 (desenvolvimento humano total). Quanto mais próximo de 1, mais desenvolvido é o país. No cálculo do IDH são computados os seguintes fatores: educação (anos médios de estudos), longevidade (expectativa de vida da população) e PIB per capita. A classificação é feita dividindo os países em quatro grandes grupos: baixo (de 0,0 a 0,500), médio (de 0,501 a 0,800), elevado (de 0,801 a 0,900) e muito elevado (de 0,901 a 1,0).
Mapa-múndi representando as quatro categorias do Índice de Desenvolvimento Humano, baseado no relatório publicado em 15 de dezembro de 2020, com dados referentes a 2019
EXPECTATIVA DE VIDA (OMS - 2021): 60,99 anos (156º). Obs: a expectativa de vida refere-se ao número médio de anos para ser vivido por um grupo de pessoas nascidas no mesmo ano, se a mortalidade em cada idade se mantém constante no futuro, e é contada da maior para a menor.
Planisfério com a expectativa de vida dos países
TAXA DE NATALIDADE (ONU - 2021): 35,87/mil (35º). Obs: a taxa de natalidade é a porcentagem de nascimentos ocorridos em uma população em um determinado período de tempo para cada grupo de mil pessoas, e é classificada do maior para o menor.
Mapa com a taxa de natalidade dos países
TAXA DE MORTALIDADE (CIA World Factbook 2021): 12,17/mil (47º). Obs: a taxa de mortalidade ou coeficiente de mortalidade é um índice demográfico que reflete o número de mortes registradas, em média por mil habitantes, em uma determinada região por um período de tempo e é classificada do maior para o menor.
TAXA DE MORTALIDADE INFANTIL (CIA World Factbook - 2021): 59,69/mil (188°). Obs: a taxa de mortalidade infantil refere-se ao número de crianças que morrem no primeiro ano de vida entre mil nascidas vivas em um determinado período, e é classificada do menor para o maior.
Mapa da taxa de mortalidade infantil no mundo
TAXA DE FECUNDIDADE (CIA World Factbook 2021): 2,48 filhos/mulher (74º). Obs: a taxa de fecundidade refere-se ao número médio de filhos que a mulher teria do início ao fim do seu período reprodutivo (15 a 49 anos), e é classificada do maior para o menor.
Mapa da taxa de fecundidade de acordo com o CIA World Factbook de 2020
TAXA DE ALFABETIZAÇÃO (CIA World Factbook - 2021): 52,9% (188º). Obs: essa taxa refere-se a todas as pessoas com 15 anos ou mais que sabem ler e escrever.
Mapa da taxa de alfabetização no mundo em 2020
TAXA DE URBANIZAÇÃO (CIA World Factbook - 2021): 57,1% (109°). Obs: essa taxa refere-se a porcentagem da população que mora nas cidades em relação à população total.
Mapa da taxa de urbanização no mundo em 2020
MOEDA: Gourde
RELIGIÃO: cerca de 56,8% dos haitianos professam o catolicismo romano, 29,6% o protestantismo, 10,6% não têm religião, 2,2% praticam a religiosidade popular e 0,8% não tem uma religião definida.
DIVISÃO: o Haiti está dividido em dez departamentos (os números correspondem ao departamento no mapa): 1. Artibonite, 2. Centro, 3. Grande Enseada, 4. Nippes, 5. Norte, 6. Nordeste, 7. Noroeste,  8. Oeste, 9. Sudeste, 10. Sul.
Mapa com a divisão administrativa do Haiti

FONTES:

FRANCISCO, Wagner de Cerqueira e. "História do Haiti"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/historia-da-america/historia-haiti.htm. Acesso em: 20/12/2022.

GUITARRARA, Paloma. Haiti, Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/geografia/haiti.htm. Acesso em: 26/12/2022. 

Wikipédia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Haiti. Acesso em: 20/12/2022


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