segunda-feira, 9 de junho de 2014

UMA CAATINGA MENOS ÁRIDA

  Iniciativas como o armazenamento de água têm mudado a imagem do Semiárido nordestino.
  Caminhar pela região do Semiárido brasileiro no período de chuva é se deparar com uma realidade muito diferente daquela consagrada pelo imaginário da seca e da pobreza. Nessa época do ano, conhecida entre os sertanejos como inverno e que compreende os meses de novembro a abril, a Caatinga - que em tupi significa "mata branca" - se reveste de tons verdes.
  Na região do Araripe, no Sertão de Pernambuco, bem como em todo o Sertão nordestino, algumas das tecnologias que visam melhorar o convívio com o clima do Semiárido do Nordeste brasileiro, como as cisternas, reservatórios subterrâneos que captam e armazenam a água da chuva, já estão presentes na vida de muitos agricultores e têm conseguido garantir um inverno mais longo e farto.
Mapa da região do Araripe
  Na comunidade de Vidéu Velho, no município de Ouricuri, que está distante 620 quilômetros de Recife, a família de dona Maria Viana tem colhido os frutos que a água pode oferecer. Beneficiada pelo Programa Um Milhão de Cisternas, criada pela organização não governamental ASA (Articulação no Semiárido Brasileiro) ela não apenas lutou pela construção da cisterna calçadão - que consiste em um calçadão de cimento de 200 m², de onde a água escorre para uma cisterna de 52 mil litros, como trabalhou na construção dela.
  Além da cisterna a família recebeu uma espécie de "bolsa cisterna", que inclui sementes de hortaliças, mudas de árvores frutíferas, um lote com dez galinhas poedeiras e um galo, além de um casal de suíno ou caprino. Recebeu também um kit para irrigação por microaspersão e cursos de capacitação para o uso racional da água, para a produção agroecológica e para a irrigação.
Dona Maria Viana e sua cisterna calçadão
  Iniciativas de convivência com o Semiárido procuram prolongar os benefícios da chuva por meio de tecnologias simples de armazenamento de água, numa tentativa de desacelerar o processo de evaporação.
  Outro problema que contribui para o problema do armazenamento da água é a composição do subsolo. Cerca de 70% da área do Semiárido é formada por rochas cristalinas rasas, que dificultam a formação de rios perenes e tornam a água salinizada, imprópria para o consumo humano.
  Dentro desse contexto de chuvas irregulares, déficit hídrico por conta da rápida evaporação e solo com alto índice de infiltração, o segredo para melhorar a vida do sertanejo passa, obrigatoriamente, por um mecanismo eficiente de armazenamento da água que cai do céu, a cisterna. E esse mecanismo tem mudado a paisagem do Sertão e a vida do sertanejo. No Sertão, sempre dissemos que o problema não é a seca, mas a cerca.
Mapa do semiárido nordestino
  O Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) é uma das ações do Programa de Formação e Mobilização Social para a convivência com o Semiárido da ASA. Ele vem desencadeando um movimento de articulação e de convivência sustentável como o ecossistema do Semiárido, através do fortalecimento da sociedade civil, da mobilização, do envolvimento e capacitação das famílias, por meio de uma proposta de educação processual.
  O objetivo do P1MC é beneficiar  cerca de cinco milhões de pessoas em toda a região semiárida com água potável para beber e cozinhar, através das cisternas de placas. Juntas, elas formam uma infraestrutura descentralizada de abastecimento com capacidade para acumular mais de 16 bilhões de litros de água.
  O programa é destinado às famílias com renda de até meio salário mínimo por membro da família, incluídas no Cadastro Único do governo federal e que contenham o Número de Identificação Social (NIS). É preciso também o beneficiado residir na zona rural e não ter acesso ao sistema público de abastecimento de água.
Residências beneficiadas com o P1MC
  Abaixo temos algumas tecnologias que estão mudando a vida de muitos sertanejos nordestinos.
Cisterna
  A cisterna é uma tecnologia popular para a capacitação da água da chuva, onde a água que escorre do telhado da casa é captada pelas calhas e cai direto na cisterna, onde é armazenada. Com capacidade para 16 mil litros de água, a cisterna supre a necessidade de consumo de uma família de cinco pessoas por um período de oito meses de estiagem.
  Dessa forma, o sistema de armazenamento por cisterna representa uma solução de acesso à água para a população rural de baixa renda do Semiárido brasileiro. Além da melhoria na qualidade da água consumida, a cisterna reduz o aparecimento de doenças em adultos e crianças.
Cisterna
Cisterna-calçadão
  A cisterna-calçadão capta a água da chuva por meio de um calçadão de cimento de 200 m², construído sobre o solo. Com essa área do calçadão, 300 mm de chuva são suficientes para encher a cisterna, que tem capacidade para 52 mil litros. Por meio de canos, a chuva que cai no calçadão escoa para a cisterna, construída na parte mais baixa do terreno e próxima à área de produção.
  O calçadão também é usado para secagem de alguns grãos como feijão e milho, raspa de mandioca, entre outros. A água captada é utilizada para irrigar quintais produtivos, plantar fruteiras, hortaliças e plantas medicinais, além da criação de animais.
Cisterna-calçadão
Cisterna-enxurrada
  Há também a cisterna-enxurrada, que tem capacidade para acumular 52 mil litros e é construída dentro da terra, ficando somente a cobertura de forma cônica acima da superfície. O terreno é utilizado como área de captação. Quando chove, a água escorre pela terra e antes de cair para a cisterna passa por duas ou três pequenas caixas, uma seguida da outra, que são os decantadores. Os canos instalados auxiliam o percurso da água que escoa para dentro do reservatório. Com a função de filtrar a areia e outros detritos que possam seguir junto com a água, os decantadores retêm esses resíduos para impedir o acúmulo no fundo da cisterna.
  A retirada da água da cisterna-enxurrada é feita por meio de uma bomba de repuxo manual. A água estocada serve para a criação de pequenos animais, cultivo de hortaliças e plantas medicinais e frutíferas.
Cisterna-enxurrada
Barreiro trincheira
  Outra tecnologia utilizada pelo sertanejo para a convivência com a seca é o barreiro trincheira, que são tanques longos, estreitos e fundos escavados no solo. Partindo do conhecimento que as famílias têm da região, o barreiro trincheira é construído em um terreno plano e próximo ao terreno da área de produção. Com capacidade para armazenar, no mínimo, 500 mil litros de água, o barreiro trincheira tem a vantagem de ser estreito, o que diminui a ação do vento e do sol sobre a água. Isso faz com que a evaporação seja menor e a água permaneça armazenada por mais tempo durante o período de estiagem.
  A tecnologia armazena água da chuva para a dessedentação animal e para a produção de verduras e frutas que servirão à alimentação da família, garantindo a soberania e a segurança alimentar. O excedente do que é produzido pode ser comercializado, garantindo a geração de renda para as famílias.
Barreiro trincheira
Barragem subterrânea
  A barragem subterrânea é outra tecnologia de sobrevivência do semiárido. É construída em áreas de baixios, córregos e riachos que se formam no inverno. Sua construção é feita escavando-se uma vala até a camada impermeável do solo, a rocha. Essa vala é forrada por uma lona de plástico e depois fechada novamente. Desta forma cria-se uma barreira que "segura" a água da chuva que escorre por baixo da terra, deixando a área encharcada.
  Para garantir água no período mais seco do ano são construídos poços há uma distância aproximada de cinco metros da área do barramento. O poço serve para retirar a água armazenada na barragem que pode ser utilizada para pequenas irrigações, possibilitando a produção durante o ano inteiro. No inverno é possível plantar culturas que necessitam de mais água, como arroz e alguns tipos de capim. Dependendo do tipo de cultura implantada pode-se ter mais de uma colheita por ano. A barragem subterrânea pode também ser de cimento.
Construção de uma barragem subterrânea de lona
Tanque de pedra
  Outra técnica que está sendo muito utilizada pelo sertanejo é o tanque de pedra. Os tanques de pedra são reservatórios feitos com as rochas típicas da paisagem do semiárido, que retêm a água da chuva e ajudam a matar a sede de muitos agricultores. São fendas largas, barrocas ou buracos naturais, normalmente de granito, construídas em áreas de serra ou onde existem lajedos, que funcionam como área de captação da água da chuva. As formações rochosas que afloram na superfície terrestre de muitos municípios nordestinos garantem água limpa para muitos agricultores. Quando cheios, os tanques de pedra podem armazenar mais de 100 mil litros de água, dependendo do tamanho do mesmo.
Tanque de laje de pedra
Barraginhas
  As barraginhas têm entre dois e três metros de profundidade, com diâmetros que variam de 12 a 30 metros. É construída no formato de uma concha ou semicírculo. O reservatório armazena água da chuva por um maior período. A recomendação é que sejam sucessivas. Assim, quando uma sangrar a água pode abastecer a seguinte. A umidade no entorno também é favorável ao plantio de milho, feijão, maxixe, melão, pepino e outras frutas, verduras e legumes.
  A tecnologia dá condições para um manejo agroecológico das unidades produtivas familiares e mobiliza as famílias para uma ação coletiva. Também melhora a qualidade do solo por acumular matéria orgânica e mantém o microclima ao redor da barraginha mais agradável.
Barraginha
Bomba d'água popular
  A bomba d'água popular aproveita os poços tubulares desativados para extrair água subterrânea por meio de um equipamento manual, que contém uma roda volante. Quando girada, essa roda puxa grandes volumes de água, com pouco esforço físico. Pode ser instalada em poços de até 80 metros de profundidade. Nos poços de 40 metros, chega a puxar até mil litros de água em um período de uma hora.
  É uma tecnologia de uso comunitário, de baixo custo e fácil manuseio. Se bem cuidada, pode durar até 50 anos. A água da bomba tem vários usos: produzir alimentos, dar de beber aos animais e usar nos afazeres domésticos. Geralmente, cada bomba beneficia cerca de 10 famílias.
Bomba d'água popular
Bioágua
  Diferente das tecnologias de captação de água, o bioágua favorece as famílias com o objetivo de reaproveitar a água de uso doméstico para a produção de alimentos, através da irrigação por gotejamento.
  O processo da bioágua é simples: a água cinza (toda a água utilizada na residência) é coletada na residência, passa por uma caixa de gordura - que é um primeiro filtro bem simples e que retém as gorduras contidas na água, principalmente da cozinha e do chuveiro. Logo após a água entra num filtro biológico caseiro, que é feito de duas camadas de material orgânico, húmus de minhoca e serragem de madeira, e três camadas de material inorgânico, que é areia lavada, brita de pedras e seixos. O filtro deve ser coberto para proteger do sol e da chuva.
Bioágua
Barragem sucessiva de contenção de sedimentos
  A barragem sucessiva de contenção de sedimentos é uma estrutura construída com pedras soltas, cuidadosamente arrumadas e em formato de arco romano deitado, realizada na rede de drenagem da microbacia hidrográfica, em pequenos tributários ou riachos afluentes de um rio de maior ordem hidrográfica.
  Essa barragem tem por finalidades: promover o assoreamento ou sedimentação gradativa dos leitos erodidos e rochosos dos pequenos cursos; reduzir o assoreamento dos reservatórios e rios; promover o ressurgimento da biodiversidade da caatinga; disponibilizar água para múltiplos usos;  favorecer a disponibilidade diversificada de alimentos no fundo do vale; dentre outros inúmeros benefícios.
  Com o acúmulo dos sedimentos trazidos pelas águas dos rios ou riachos, cria-se um pequeno lençol freático dentro da barragem e uma pequena fonte por trás da mesma, ou seja, a água vai ficar retida juntamente com a areia e aos poucos vai sendo liberada.
  Esse tipo de construção além de ser uma das mais baratas é também muito fácil de se fazer.
Barragem de contenção de sedimentos feito por Dean Carvalho, de Carnaúba dos Dantas - RN, mais conhecido por "Aventureiro da Caatinga"
Fonte: RIBEIRO, E. W. Seca e Determinismo: a gênese do discurso do Semiárido nordestino. Anuário do Instituto de Geociências - UFJR, Rio de Janeiro, v. 22, 1991.

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