sexta-feira, 21 de outubro de 2022

A GRILAGEM DE TERRAS NO BRASIL

   Os processos ilícitos de concessão de títulos de posse de terras, por meio do qual os grileiros transformam em sua propriedade as áreas que invadiram - a chamada grilagem -, representam o avanço criminoso de certos setores econômicos sobre as terras dos povos e comunidades tradicionais.

  No Brasil, grilagem de terras é a falsificação de documentos para, ilegalmente, tomar posse de terras devolutas ou de terceiros. O termo também designa a venda de terras pertencentes ao poder público ou de propriedade particular mediante falsificação de documentos de propriedade da área. O agente de tal atividade é chamado grileiro.

  O termo "grilagem" provém de uma causa usada para o efeito do envelhecimento forçado de papéis, que consiste em colocar escrituras falsas dentro de uma caixa com grilos, de modo a deixar os documentos amarelados (devido aos excrementos dos insetos) e roídos, dando-lhes uma aparência antiga e, por consequência, mais verossímil.

Charge mostrando um documento falsificado de propriedade da terra que será usado no sistema de grilagem de terras

  Grilagem é a usurpação da terra pública, dando-lhe a aparência particular, ou seja, indica "um ou mais procedimentos de irregular ou ilegal ocupação de terra pública, com o objetivo da sua apropriação privada". Grilagem não é apenas a ocupação, mas a ocupação qualificada pela intenção deliberada de se tornar dono da terra pública, como se esta fosse terra particular.

  Os grileiros de terras produzem antecipadamente estratégias que são referendadas pelo Estado e pelo Poder Judiciário nas legislações fundiárias de cada período histórico da formação territorial brasileira. As fronteiras entre legalidade e ilegalidade instituídas pelo Estado nos ordenamentos jurídicos são definidas no atendimento aos interesses de monopolização de terras pelos grileiros, visando efetivar seu processo de constituição como classe de propriedade de terra. Assim, o Estado produz, no ordenamento jurídico, a legalização de estratégias de grilagem realizadas previamente.

  Os grileiros-proprietários de terra produzem as políticas fundiárias a seu favor, fazendo do Estado instrumento essencial de seus processos de legitimação da propriedade privada grilada. Ou seja, as noções de legal e ilegal são transmitidas no Estado brasileiro, atendendo fundamentalmente aos interesses dos grileiros-proprietários de terra.

Esquema de como ocorre a grilagem de terras

  No Brasil, o total de terras sob suspeita de grilagem é de aproximadamente 100 milhões de hectares - quatro vezes a área do estado de São Paulo.

  Dentre os fatores que facilitam a falsificação de títulos de terras, estão a falta de um sistema unificado de controle de terras, e a natureza contraditória dos cartórios - serviço público do Estado, delegado a exploração de caráter privado.

  O artigo 50 da Lei nº 6.766/1979 (também conhecida como Lei Lehmann), que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano, pune a prática de grilagem com prisão e pagamento de multa.

  Já a Lei nº 11.952/2009, derivada da Medida Provisória nº 458/2009 (conhecida como "MP da Grilagem"), possibilita a regularização da ocupação ilegal de terras de propriedade da União situadas na Amazônia Legal. Em 18 de outubro de 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) 4.269 e restringiu os critérios para regularização de terras conforme tratados citados na Lei nº 11.952/2009.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DEVISATE, Rogério Reis. Grilagem das Terras e da Soberania. Rio de Janeiro. Editora Imagem Art Studio, 2017.

FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. 5ª ed. Ed. Globo, 2012.

PRADO JÚNIOR, Caio. A revolução brasileira. a questão agrária no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

PRIETO, Gustavo Francisco Teixeira. Rentismo à brasileira, uma via de desenvolvimento capitalista: grilagem, produção do capital e formação da propriedade privada da terra. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 2016.

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

OS RIOS E A VIDA NA AMAZÔNIA

  Amazônia (também chamada Floresta Amazônica, Selva amazônica, Floresta Equatorial da Amazônia, Floresta Pluvial ou Hileia Amazônica), é uma floresta latifoliada úmida que cobre a maior parte da Bacia Amazônica na América do Sul. Esta bacia abrange 7 milhões de quilômetros quadrados, dos quais 5 milhões e meio de quilômetros quadrados são cobertos pela floresta tropical. Esta região inclui territórios pertencentes a nove nações. A maioria da floresta está dentro do território brasileiro.

  No Brasil, por efeitos de governo e economia, a Amazônia é delimitada por uma área chamada "Amazônia Legal", definida a partir da criação da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), em 1966. É chamada também de Amazônia o bioma que, no Brasil, ocupa 49,29% do território e abrange três das cinco divisões regionais do país (Norte, Nordeste e Centro-Oeste).

Mapa mostrando em destaque a região que compreende a Amazônia Total

   Na Amazônia, a vida e a economia acompanham o ciclo das águas. Para as comunidades tradicionais, conhecer a dinâmica dos rios é fundamental para torná-los fonte de subsistência. O rio é também o caminho, às vezes único, para se deslocar na floresta ou entre vilas e cidades. Pelos grandes rios são transportados passageiros, pequenas cargas e milhares de toneladas de produtos agrícolas e minerais para exportação.

  Além de serem vias de escoamento da produção destinada ao consumo regional e à exportação, os rios são utilizados para transportar produtos importados, como fertilizantes, produtos químicos, materiais elétricos e automóveis, entre outros.

Parque Nacional da Amazônia, no estado do Pará

Principais rios da Região Norte

  • Rio Amazonas

  O Amazonas é o maior rio em volume de água do mundo. Com 6.992,06 quilômetros de extensão, percorre o norte da América do Sul. Possui mais de mil afluentes, sendo que os principais são o Madeira, o Negro e o Japurá. Possui também o maior fluxo de água por vazão do mundo.

  O rio Amazonas tem sua origem na nascente do rio Apurimac (alto da parte ocidental da cordilheira dos Andes), no sul do Peru, e deságua no oceano Atlântico. Ao longo de seu percurso, ainda no Peru, recebe o nome de Carhuasanta, Lioqueta, Apurimac, Ene, Tambo, Ucayali e Amazonas. Ele entra no território brasileiro com o nome de Solimões e, finalmente em Manaus, após a junção com o rio Negro, assim que suas águas se misturam, ele recebe o nome de Amazonas. Sua foz é classificada como mista, por apresentar uma foz em estuário e em delta.

  O barrento Solimões é rico em minerais e microrganismos, o que favorece a reprodução e a variedade de peixes.

O Encontro das Águas na confluência dos rios Negro e Solimões, próximo à cidade de Manaus (AM)

  • Rio Negro

  O rio Negro é o maior afluente da margem esquerda do rio Amazonas. É o sétimo maior rio do mundo em volume de água. Tem sua origem entre as bacias dos rios Orinoco e Amazônica. Conecta-se com o Orinoco através do Canal do Cassiquiare. Na Colômbia, onde está localizada sua nascente, é chamado de rio Guainia. Seus principais afluentes são o rio Branco e o rio Vaupés. Drena a região leste dos Andes na Colômbia. Após passar por Manaus, une-se ao rio Solimões, e a partir dessa união, este último passa a se chamar amazonas.

  Sua coloração escura se deve à decomposição de sedimentos orgânicos, que tornam sua água ácida, com menor variedade de peixes.

Ancoradouro de avionetas no rio Negro, em Manaus (AM)

  • Rio Madeira

  O rio Madeira nasce com o nome de rio Beni, na Cordilheira dos Andes, Bolívia. Ele desce das cordilheiras em direção ao norte, recebendo o rio Mamoré-Guaporé e tornando-se o rio Madeira - um rio de planície que traça a divisória entre o Brasil e a Bolívia. No território brasileiro banha os estados de Rondônia e Amazonas. Possui uma extensão de 3.315 quilômetros e é um dos principais afluentes do rio Amazonas.

  O rio Madeira recebe este nome pois, no período de chuvas, seu nível sobe e inunda grandes porções da planície florestal, trazendo troncos e restos de madeira da floresta, época em que são negociadas pelos madeireiros e transportadas às custas do rio.

  Parte da produção de soja e milho do Centro-Oeste segue para exportação pelo rio Madeira.

Rio Madeira em Porto Velho (RO)

Principais atividades econômicas

  • Pesca

  Os peixes são a principal fonte de proteína animal das populações ribeirinhas. Nos rios da Região Norte, são produzidos 140 mil toneladas de pescados, cerca de 56% da pesca extrativa continental brasileira. A melhor época para a prática da pesca é de outubro a março, quando o nível do rio está baixo.

Pesca do pirarucu, no rio Amazonas

  • Agricultura de várzea

  Os ribeirinhos praticam agricultura nas margens dos rios porque o solo, fertilizado pelos sedimentos trazidos nas cheias, é mais rico do que no restante da floresta. Plantar nesse ambiente, no entanto, exige conhecimentos e técnicas específicas.

  Além das culturas de solo encharcados, como a juta e a malva, os ribeirinhos desenvolvem plantações em canteiros suspensos. Assim, o cultivo de itens de subsistência, como hortaliças, não precisa ser interrompido durante as cheias.

Agricultura de várzea na região da Amazônia

  • Rede logística

  Os rios são um meio eficiente para transportar grandes quantidades de cargas a baixo custo. Além de integrar cidades e regiões no território nacional, eles fazem a integração do Brasil com outros países, através de corredores de circulação de mercadorias.

  Cada comboio de barcaças pode transportar até 32 mil toneladas de carga, o equivalente à capacidade de carga de 850 caminhões.

  Na Bacia Amazônica são feitas, anualmente, 14 milhões de viagens regulares através de 317 linhas hidroviárias de passageiros.

Barcos atracados no porto de Manaus

  • Minas de ferro

  O minério de ferro extraído no Pará é o produto mais transportado pelos rios da Bacia Amazônica.

  O Projeto Grande Carajás (PGC) é um projeto de extração mineral, de produção agrícola, de transformação e beneficiamento mineral e de produção energética, que também inclui infraestrutura logística e de comunicação de uma imensa região do Meio-Norte brasileiro.

  Estende-se por cerca de 900 mil km², numa área que corresponde a um décimo do território brasileiro, e que é cortada pelas bacias dos rios Xingu, Tocantins e Araguaia, e engloba terras do leste do Pará, norte de Tocantins e sudoeste, centro e norte do Maranhão.

Vista aérea de uma das minas da Serra dos Carajás, no Pará

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

SOUSA, Rafaela. "Amazônia". Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol. com.br/brasil/amazonia.htm. Acesso em: 18 de outubro de 2022.

TOCANTINS, Leandro. O Rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia. Rio De Janeiro: Livraria J. Olympio, 1983.

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

A DECLARAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

   O dia 10 de dezembro traz como marca o Dia Internacional dos Direitos Humanos e constitui-se em mais uma oportunidade de rejeitar que o trabalho digno é um direito humano fundamental. A data abriga a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos - DUDH -, documento que delineia os direitos humanos básicos, adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948.

  Nascida no pós-guerra, nos conflitos mais odiosos do mundo, a bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki e depois do terror dos campos de concentração nazistas, onde milhões de seres humanos foram cruelmente assassinados em nome da intolerância racial na Alemanha, a declaração veio para reconhecer que a dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e para desenvolver relações amistosas entre nações e promover a paz e a segurança no planeta.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos é um importante documento que estabelece os direitos básicos de todos ser humano

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

  No contexto da Revolução Francesa, a Assembleia Nacional promulgou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789. No título desse documento, encontram-se os termos homem e cidadão. Tais termos não se confundem: homem designa toda a humanidade, ao passo que cidadão indica a pessoa dotada de direitos políticos. Desse modo, a Declaração possuía o duplo objetivo de indicar os valores comuns a todas as pessoas, influenciando decisivamente a luta contra o absolutismo, e definir a forma de participação política dos cidadãos.

  Para compreendermos a letra desse documento, é importante entendermos as ideias que o geraram. A França no século XVIII era um Estado absolutista, e isso significa que o poder estava centralizado nas mãos do monarca. A classe burguesa possuía interesses conflitantes com essa ordem: no plano político, buscava a expressão de seus ideais, fundados na liberdade; na economia, almejava a superação da organização do trabalho em corporações, o que impedia o desenvolvimento da livre-iniciativa e da liberdade de concorrência; nas relações sociais, propunha uma nova moral; na área jurídica, defendia a autonomia da vontade.

Declaração dos Direitos Humanos e do Cidadão: o patriotismo revolucionário toma emprestado a iconografia familiar dos Dez Mandamentos

  Assim, o processo revolucionário, influenciado pela filosofia iluminista, questionou diversos aspectos da vida humana. É importante ressaltar que, apesar do teor da Declaração, a qual destacava a liberdade, a igualdade e a fraternidade, afirmando em seu primeiro artigo, que "Os homens nascem e são livres e iguais em direitos", um rol de pessoas esteve, na prática, excluído dos direitos nela preconizados, como as mulheres. Em reação a isso, a escritora francesa Olympe de Gouges, publicou, em 1791, a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã.

  A partir da Declaração de 1789, revoluções eclodiram em boa parte do mundo ocidental. Deve ser notado, contudo, que a Revolução Francesa consagrou direitos humanos de primeira geração (ou dimensão), consistentes na proteção do indivíduo contra os abusos do Estado. O valor primordial era a liberdade individual.

Preâmbulo da Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã de 1791

  Os direitos humanos possuem dimensões, ou seja, desenvolvem-se historicamente, e cada direito soma-se a outro já conquistado. De acordo com o jurista e cientista político Paulo Bonavides, são cinco as dimensões de direitos. Além da primeira dimensão, existem os direitos de segunda geração, consistentes na estipulação de direitos sociais, como garantias trabalhistas e o acesso à educação, que impõem uma ação estatal em benefício das pessoas. Seu valor é a igualdade. Há, ainda, os direitos de terceira geração, coletivos ou difusos, que se destinam a todo gênero humano, incluindo ainda os direitos do consumidor e o meio ambiente, tendo como valor a solidariedade/fraternidade; os direitos de quarta geração, que compreendem a democracia, a informação e o pluralismo; e os direitos de quinta geração, que fundam-se na paz.

O Cilindro de Ciro é considerado a primeira declaração dos direitos humanos registrados na história

A Declaração Universal dos Direitos Humanos no pós-Segunda Guerra Mundial

  Os fatos vivenciados no início do século XX deram indícios de que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, apesar de intentar dirigir-se a toda a humanidade, não foi capaz de garantir o respeito à dignidade de todo e qualquer ser humano. O terror perpetrado pelo nazismo, por exemplo, expôs o abismo entre as teorias da justiça, baseadas unicamente na razão, e a realidade. O aniquilamento de milhares de indivíduos em câmaras de gás foi o último ato de um processo que se iniciou com a perseguição de minorias étnicas e de opositores ao totalitarismo.

  Após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 24 de outubro de 1945, fundou-se a Organização das Nações Unidas (ONU), entidade responsável por congregar  esforços mundiais com a finalidade de proteger a humanidade contra a guerra, o extermínio e a desigualdade, promovendo ações conjuntas entre as nações para estabelecer meios concretos de defesa da paz e da dignidade humana. O preâmbulo da Carta das Nações Unidas contém a seguinte mensagem:

  "Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço de nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla".

Eleonor Roosevelt exibe a edição em espanhol do Jornal das Nações Unidas contendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1949)

  A consciência mundial de que a dignidade humana deveria ser tutelada para além das fronteiras dos Estados, inclusive contra ações estatais que ensejassem tratamento desumano e cruel, reuniu países, órgãos e entidades comprometidas em criar condições pacíficas de convívio internacional, fundados na valorização da diversidade.

  A humanidade deixa de ser a expressão abstrata de uma ideia ou de uma filosofia para manifestar a pluralidade. Desse modo, o princípio da dignidade encontra uma base segura: a vida humana em todas as suas manifestações.

  A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 10 de dezembro de 1948 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, insere-se nesse processo de consagração e efetivação da dignidade da pessoa humana. O artigo primeiro desse documento traça um paralelo com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão ao afirmar que "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade". Reafirmam-se direitos já conhecidos, como a liberdade e a igualdade, mas a eles se acrescentam aqueles de terceira geração, que manifestam a proteção universal dos seres humanos e o direito a um ambiente equilibrado, entre outros.

  Cria-se uma ponte entre o passado e o futuro evidenciando que as promessas de liberdade e autonomia e de desenvolvimento econômico e social não foram esquecidas. Com efeito, a existência humana deve ser tutelada integralmente, possibilitando aos indivíduos e aos povos o pleno desenvolvimento de suas diversas habilidades.

  Cabe ressaltar que inúmeros tratados e convenções foram aprovados pela ONU, destacando-se os referentes aos direitos políticos e sociais, das mulheres, crianças e adolescentes, das pessoas com deficiência e à preservação e repressão do genocídio.

  Desse modo, os direitos humanos devem ser compreendidos em termos de reconhecimento e proteção da dignidade comum a todas as pessoas, sem distinção e preconceitos.

A diplomata brasileira Bertha Lutz durante a Conferência de São Francisco, Estados Unidos. Foto de 1945. As reuniões dessa conferência deram origem à ONU. Estudiosos apontam que Bertha foi uma das responsáveis por incluir o termo mulheres na Carta das Nações Unidas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

COMPARATO, Fábio K. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2017.

MAGNOLI, Demétrio. História da Paz. São Paulo: Editora Contexto, 2008.

ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Carta das Nações Unidas. Disponível em <https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2017/11/A-Carta-das-
Na%C3%B5es-Unidas.pdf>. Acesso em: 13 out. 2022.

terça-feira, 11 de outubro de 2022

A ÁFRICA E AS RELAÇÕES DE TRABALHO E PRODUÇÃO

   Com 30 milhões de quilômetros quadrados e mais de 1,3 bilhão de habitantes, o continente africano apresenta um histórico de intensa exploração no período neocolonial, que durou até o século XX; uma complicada inserção no contexto da Guerra Fria; e guerras inconclusas.

  A África tornou-se o mais pobre dos continentes ao longo dos últimos séculos, mas o ressurgimento econômico africano verificado recentemente faz muitas organizações acreditarem na sustentabilidade do seu desenvolvimento.

Tabela com taxas de crescimento para os países africanos, outros países em desenvolvimento e países de desenvolvimento elevado (2000-2020)

  A África procura atingir metas de crescimento contidas na Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável e na Agenda 2063, estabelecida em 2015 pela União Africana. A Agenda 2063 objetiva que a África chegue naquele ano como um continente próspero, inclusivo, com meios e recursos para impulsionar seu próprio desenvolvimento sustentável e integrado, com união em torno do pan-africanismo, da justiça social e da paz, valorizando as identidades culturais, valores e éticas comuns. Para isso, essa agenda estipula investimentos em educação, ciência, tecnologia e saúde de alto padrão, além de cidades estruturadas, políticas ambientais sustentáveis e tecnologias de informação.

  A tendência é que tais perspectivas continuem a contribuir para o aquecimento da economia e do mercado de trabalho no continente. Nos últimos anos, o crescimento do PIB médio anual dos países africanos foi superior à média do PIB dos países emergentes.

Gráfico do crescimento do PIB da África em relação à média mundial (2020)

  As taxas de pobreza extrema da população africana vêm apresentando quedas nos últimos anos: em 2018, por exemplo, foi de 33,4%. A expectativa é que caia para 24,7% em 2030, ainda assim, muito acima dos 3% previstos na meta de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030. No entanto, a África não é homogênea, e esses índices econômicos mostram-se bastante desiguais, com a economia de alguns países se destacando muito, como Angola, Egito, Marrocos, Nigéria e África do Sul.

  Embora as populações pobres da África tenham se beneficiado do crescimento econômico do período 2000-2017, o consumo da população média aumentou mais rapidamente do que o das populações pobres. Apenas 37 países africanos apresentaram crescimento médio de consumo naquele período, sendo que em apenas 12 deles houve crescimento com inclusão de populações pobres no consumo.

Gráfico com as cinco grandes economias da África e o crescimento do continente

A África na economia global

  É fato que a África adentrou o século XXI demonstrando notáveis índices de crescimento econômico. De acordo com a OCDE (2018), o continente apresentou no período 2000-2017 um crescimento médio de 4,7%, o segundo maior do mundo, só superado pelas economias asiáticas. Por sua vez, o Relatório 2019 do African Development Bank Group afirma que o desempenho econômico africano segue em crescimento. Em 2021, a economia africana cresceria em torno de 4%, porém, ainda insuficiente para reduzir o desemprego e a pobreza.

  Embora com crescimento econômico, a economia africana não possui uma aderência significativa a atividades industriais.

  A maior parte das exportações africanas é de produtos não transformados, ou seja, do setor primário da economia. Por outro lado, nas importações, a maior parte é de produtos transformados, ou seja, do setor secundário, que possuem muito valor agregado.

  A demanda mundial por commodities minerais, principal produto de exportação africana, é o fator mais importante do bom desempenho da balança comercial africana. Contudo, apesar do inegável crescimento econômico verificado no período, o mesmo não se reverteu em um melhor bem-estar para a população.

Gráfico da distribuição por setores de atividades na África (2006-2016)

As relações com a China

  O principal destino das exportações africanas é a China, e os investimentos chineses em países africanos vêm crescendo ano a ano. O país asiático vem se transformando num fundamental parceiro comercial em diversos setores econômicos. Sozinha, a China concentra cerca de um terço de todo o comércio do continente.

  A China investiu solidamente em muitos países africanos em busca de commodities e também tem patrocinado o desenvolvimento industrial de alguns deles. São claras suas intenções geopolíticas e econômicas em estabelecer sua hegemonia na África. Um exemplo dessa parceria  sino-africana foi o anúncio, em 2016, de um fundo bilionário de investimentos, da ordem de 10 bilhões de dólares, focado na aplicação de recursos na indústria, no desenvolvimento tecnológico e na infraestrutura, evidenciando a cooperação entre as partes. Antes a China já havia anunciado um recurso de US$ 20 bilhões para investir em obras estruturais no continente, como portos, ferrovias e usinas e para a exploração mineral, entre outras.

Gráfico mostrando a distribuição do comércio na África (2000-2016)

  Em 2018, a China divulgou que disponibilizaria 60 bilhões de dólares para serem investidos no projeto Cinturão e Rota - também chamado de Um Cinturão, uma Rota - de construção de estradas, pontes, portos marítimos e infraestrutura de energia e telecomunicações. Parte desse projeto, no Quênia, é a ferrovia Standard Gauge Railway (SGR, na sigla em inglês para Ferrovia Bitola Padrão). A obra está revolucionando os transportes e o comércio no país. A bitola (a largura entre os trilhos ferroviários) deve ser padronizada em toda a sua extensão, para atender as pretensões do projeto, que é extrapolar o país e o continente.

  Desde o seu lançamento, em maio de 2017, o serviço de passageiros SGR, popularmente conhecido como Madaraka Express, tem transportado aproximadamente 4 milhões de passageiros. O serviço teve impacto econômico ao gerar meios de subsistência a muitos cidadãos quenianos, além de criar empregos e transferir tecnologia ao Quênia.

  Outros empreendimentos também se destacam: a linha ferroviária que liga Mombaça a Nairóbi, que é a primeira ferrovia construída no Quênia desde sua independência, em 1963. Além disso, ela foi entregue com 18 meses de antecedência. E, além das obras de infraestrutura relacionadas ao projeto Um Cinturão, uma Rota, Quênia e China assinaram em 2018 acordos de cooperação internacional para facilitar o desenvolvimento de uma cidade inteligente e uma via expressa para descongestionar a capital Nairóbi.

Mapa mostrando o plano da China de extensão de redes de transportes e navegação

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CHICHAVA, Sergio. Moçambique na rota da China: uma oportunidade para o desenvolvimento? IN: DE BRITO, Luís et al. Desafios para Moçambique 2010. Editor: Instituto de Estudos Sociais e Econômicos, Maputo, 2010.

POTGIETER, Thean. Capacitação para o desenvolvimento sustentável. IN: AMDIN. Revista Africana de Desenvolvimento e Governação do Sector Público, 1ª edição, Volume 2, South Africa.

SOUSA, Rafaela. "África". Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/geografia/africa-continente.htm. Acesso em: 11 de outubro de 2022.

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

A CULTURA ERUDITA E A CULTURA POPULAR

   O sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990) chamou de processo civilizador aquele em que costumes são desenvolvidos e aceitos socialmente para controlar o comportamento dos indivíduos com base na definição das regras de que é considerado "correto". Segundo ele, esse processo se definiu durante o Renascimento europeu, no século XVI. A característica fundamental da civilização foi o enrijecimento das regras sociais, que passaram a nortear os modos de se portar em público, à mesa, nas vestimentas e na formar de apreciar expressões artísticas, como música, literatura e teatro. Quem as conhecia e as seguia se diferenciava na sociedade. Isso contribuiu para distinguir os integrantes da nobreza cortesã, os primeiros a adotar tais hábitos, das pessoas que faziam parte dos outros estratos sociais, especialmente da burguesia ascendente, que passaram a imitar os modos e os comportamentos da corte.

  A partir do Renascimento também se modificaram as relações entre a arte e sociedade e, em particular, o conceito de beleza. O ideal de beleza se tornou referência na Antiguidade clássica (por volta do século V a.C.), período em que a cidade-Estado grega de Atenas foi reconhecida como centro disseminador das artes. Em Atenas, foram atribuídas características específicas às expressões artísticas, relacionadas à capacidade de representar algo alegre, agradável e saudável. Retomado no Renascimento, esse ideal de beleza tornou-se um modelo universal, e foi criado um conjunto de princípios que determinavam o que seria a "boa arte".

  Nesse contexto, desenvolveu-se um mercado de arte. A produção artística organizou-se de forma que assegurasse aos artistas algum destaque e importância na sociedade. Eles deixaram de ser reconhecidos apenas como artesãos (como na Idade Média) e passaram a ser respeitados por sua criatividade e originalidade. Contribuiu-se, para isso, a criação de academias e de conservatórios, em que se debatiam e se formulavam regras para a arte e padrões de beleza artística. Mantidas por mecenas, pessoas ricas que financiavam as viagens e a formação de artistas, essas instituições criaram métodos e saberes essenciais para o desenvolvimento da arte considerada "boa".

  Esse conjunto de hábitos e gostos ligados à arte, combinados às regras de civilização ocidental, constitui as bases da denominada cultura erudita.

Festival dos tolos, pintura de Pieter Bruegel, 1570. Celebração medieval que passou a assombra a Igreja Católica

  No decorrer do período do Renascimento, as regras de comportamento passaram a ser cada vez mais incorporadas pelos indivíduos, sobretudo os integrantes da sociedade de corte. Os artistas que buscavam o equilíbrio e o racionalismo para expressar a noção de civilidade em obras musicais, na literatura ou no teatro formaram o movimento chamado Classicismo.

  Essa estratégia chegou ao auge no século XVIII, mas nem todos a seguiam. O compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), por exemplo, desafiou os rígidos padrões culturais do período. Não ajustado plenamente às expectativas artísticas da corte, ele buscou autonomia autoral, mas não foi aceito pela sociedade cultural da época e perdeu o encanto pela criação artística. Com 35 anos, foi vítima de uma doença infecciosa fatal e seu corpo acabou enterrado, por motivos até hoje não esclarecidos, em uma vala comum, distante da ostentação palaciana e do público que o consagrou.

  A população que não fazia parte da corte continuou a se expressar culturalmente. Festivais populares cômicos, por exemplo, ocupavam as ruas das cidades europeias para celebrar o fim da colheita (naquela época a economia se baseava na produção agrícola dos feudos). O teórico russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) estudou estes festivais e destacou a importância de outro tipo de cultura, alheia às regras estéticas do Classicismo, nas sociedades europeias. Durante esses festivais, entre os quais se incluía o Carnaval, não havia relações sociais hierárquicas e neles as pessoas podiam viver, momentaneamente, a expectativa de uma sociedade sem distinções.

  Esses festivais eram manifestações do que podemos chamar de cultura popular tradicional. Algumas características da cultura popular a distinguem da erudita, como o fato de não ter finalidade comercial, mas cumprir a função social de gerar uma forma específica de identificação entre os membros de determinado grupo. Diferentemente do exemplo de Mozart, na cultura popular tradicional não há a extrema valorização da figura do autor, pois geralmente essa produção deriva de um processo de criação coletiva, transmitida oralmente entre gerações. Por conta disso, a cultura popular é erroneamente reconhecida como uma expressão artística primitiva sem complexidade estética, em geral conservadora, pois não busca a inovação.

  De acordo com o historiador inglês E. P. Thompson (1924-1993), essa concepção equivocada deve-se ao fato de a cultura popular ser sempre analisada em contraposição negativa à cultura erudita - ligada a setores econômicos e politicamente dominantes da sociedade. Conforme essa ideia, em razão de sua "superioridade", a cultura erudita deveria ser tomada como modelo a ser seguido, por contar com elementos representativos da civilização. Essa é uma visão etnocêntrica, muito criticada pelos antropólogos.

  Durante o século XVIII, a relação da subordinação da cultura popular à cultura erudita dominou o interesse dos estudos pelas artes populares, consideradas representativas de um passado remoto que envolvia estranhos rituais ou hábitos. A procura por objetos culturais populares, alimentou uma onda de colecionismo entre estudiosos europeus denominados folcloristas. Thompson afirmou que, em sua maioria, os folcloristas viam a cultura popular como inferior, sendo expressão de indivíduos privados de alfabetização, que apenas perpetuavam seus costumes por meio da transmissão oral.

A luta entre o Carnaval e a Quaresma (detalhe), pintura de Pieter Bruegel, O Velho, 1559. Acredita-se que o Carnaval como festa da subversão da ordem, como apontado por Bakhtin, tenha origem medieval. Durante o período dessa festa popular, as pessoas poderiam extravasar seus desejos sem julgamento antes de se submeterem aos jejuns, às restrições e às orações do período da Quaresma.

  Para compreender quem de fato produziu cultura popular e que de forma na Europa entre os anos 1500 e 1800, o historiador inglês Peter Burke, nascido em 1937, definiu "povo" como o estrato social que não fazia parte nem da burguesia nem da aristocracia. Em uma análise mais detalhada, descobriu-se que havia várias camadas culturais no que genericamente se denominava "povo".

  Na ânsia de separar aquilo que não pertencia à cultura erudita, estudiosos ergueram um "muro" para deixar de um lado todas as expressões consideradas incultas, não civilizadas, como as camponesas, as urbanas (como o Carnaval parisiense) e as originadas das manifestações dos andarilhos, os quais misturavam abordagens e interpretavam as influências religiosas e regionais que encontravam pelos caminhos que trilhavam.

  Em sua pesquisa, Burke percebeu que havia contrastes e interações entre as manifestações culturais desenvolvidas em distintas condições geográficas (terras altas e baixas, fronteiras e áreas centrais, regiões costeiras e interioranas). Agrupada na categoria única de cultura popular, toda essa diversidade havia sido deixada em segundo plano.

  Tal visão também ignorou uma forma específica de contato entre culturas, que Mikhail Bakhtin chamou de carnavalização. Segundo ele, as manifestações populares tendem a expressar os padrões da cultura dominante de forma invertida, por meio do riso, da máscara, do grotesco e da paródia. Esse autor considerava o Carnaval não apenas uma festa popular, mas também uma manifestação do desejo de subversão da ordem estabelecida.

Carnaval - uma das maiores manifestações culturais do mundo, faz parte da cultura popular

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BURKER, Peter. Cultura popular e transformação social. In: Cultura popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

ORTIZ, Renato. As ciências sociais e a cultura. Tempo Social, v. 14, n. 1, maio 2002. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo. Acesso em: 05/10/2022.