sexta-feira, 7 de outubro de 2022

A CULTURA ERUDITA E A CULTURA POPULAR

   O sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990) chamou de processo civilizador aquele em que costumes são desenvolvidos e aceitos socialmente para controlar o comportamento dos indivíduos com base na definição das regras de que é considerado "correto". Segundo ele, esse processo se definiu durante o Renascimento europeu, no século XVI. A característica fundamental da civilização foi o enrijecimento das regras sociais, que passaram a nortear os modos de se portar em público, à mesa, nas vestimentas e na formar de apreciar expressões artísticas, como música, literatura e teatro. Quem as conhecia e as seguia se diferenciava na sociedade. Isso contribuiu para distinguir os integrantes da nobreza cortesã, os primeiros a adotar tais hábitos, das pessoas que faziam parte dos outros estratos sociais, especialmente da burguesia ascendente, que passaram a imitar os modos e os comportamentos da corte.

  A partir do Renascimento também se modificaram as relações entre a arte e sociedade e, em particular, o conceito de beleza. O ideal de beleza se tornou referência na Antiguidade clássica (por volta do século V a.C.), período em que a cidade-Estado grega de Atenas foi reconhecida como centro disseminador das artes. Em Atenas, foram atribuídas características específicas às expressões artísticas, relacionadas à capacidade de representar algo alegre, agradável e saudável. Retomado no Renascimento, esse ideal de beleza tornou-se um modelo universal, e foi criado um conjunto de princípios que determinavam o que seria a "boa arte".

  Nesse contexto, desenvolveu-se um mercado de arte. A produção artística organizou-se de forma que assegurasse aos artistas algum destaque e importância na sociedade. Eles deixaram de ser reconhecidos apenas como artesãos (como na Idade Média) e passaram a ser respeitados por sua criatividade e originalidade. Contribuiu-se, para isso, a criação de academias e de conservatórios, em que se debatiam e se formulavam regras para a arte e padrões de beleza artística. Mantidas por mecenas, pessoas ricas que financiavam as viagens e a formação de artistas, essas instituições criaram métodos e saberes essenciais para o desenvolvimento da arte considerada "boa".

  Esse conjunto de hábitos e gostos ligados à arte, combinados às regras de civilização ocidental, constitui as bases da denominada cultura erudita.

Festival dos tolos, pintura de Pieter Bruegel, 1570. Celebração medieval que passou a assombra a Igreja Católica

  No decorrer do período do Renascimento, as regras de comportamento passaram a ser cada vez mais incorporadas pelos indivíduos, sobretudo os integrantes da sociedade de corte. Os artistas que buscavam o equilíbrio e o racionalismo para expressar a noção de civilidade em obras musicais, na literatura ou no teatro formaram o movimento chamado Classicismo.

  Essa estratégia chegou ao auge no século XVIII, mas nem todos a seguiam. O compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), por exemplo, desafiou os rígidos padrões culturais do período. Não ajustado plenamente às expectativas artísticas da corte, ele buscou autonomia autoral, mas não foi aceito pela sociedade cultural da época e perdeu o encanto pela criação artística. Com 35 anos, foi vítima de uma doença infecciosa fatal e seu corpo acabou enterrado, por motivos até hoje não esclarecidos, em uma vala comum, distante da ostentação palaciana e do público que o consagrou.

  A população que não fazia parte da corte continuou a se expressar culturalmente. Festivais populares cômicos, por exemplo, ocupavam as ruas das cidades europeias para celebrar o fim da colheita (naquela época a economia se baseava na produção agrícola dos feudos). O teórico russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) estudou estes festivais e destacou a importância de outro tipo de cultura, alheia às regras estéticas do Classicismo, nas sociedades europeias. Durante esses festivais, entre os quais se incluía o Carnaval, não havia relações sociais hierárquicas e neles as pessoas podiam viver, momentaneamente, a expectativa de uma sociedade sem distinções.

  Esses festivais eram manifestações do que podemos chamar de cultura popular tradicional. Algumas características da cultura popular a distinguem da erudita, como o fato de não ter finalidade comercial, mas cumprir a função social de gerar uma forma específica de identificação entre os membros de determinado grupo. Diferentemente do exemplo de Mozart, na cultura popular tradicional não há a extrema valorização da figura do autor, pois geralmente essa produção deriva de um processo de criação coletiva, transmitida oralmente entre gerações. Por conta disso, a cultura popular é erroneamente reconhecida como uma expressão artística primitiva sem complexidade estética, em geral conservadora, pois não busca a inovação.

  De acordo com o historiador inglês E. P. Thompson (1924-1993), essa concepção equivocada deve-se ao fato de a cultura popular ser sempre analisada em contraposição negativa à cultura erudita - ligada a setores econômicos e politicamente dominantes da sociedade. Conforme essa ideia, em razão de sua "superioridade", a cultura erudita deveria ser tomada como modelo a ser seguido, por contar com elementos representativos da civilização. Essa é uma visão etnocêntrica, muito criticada pelos antropólogos.

  Durante o século XVIII, a relação da subordinação da cultura popular à cultura erudita dominou o interesse dos estudos pelas artes populares, consideradas representativas de um passado remoto que envolvia estranhos rituais ou hábitos. A procura por objetos culturais populares, alimentou uma onda de colecionismo entre estudiosos europeus denominados folcloristas. Thompson afirmou que, em sua maioria, os folcloristas viam a cultura popular como inferior, sendo expressão de indivíduos privados de alfabetização, que apenas perpetuavam seus costumes por meio da transmissão oral.

A luta entre o Carnaval e a Quaresma (detalhe), pintura de Pieter Bruegel, O Velho, 1559. Acredita-se que o Carnaval como festa da subversão da ordem, como apontado por Bakhtin, tenha origem medieval. Durante o período dessa festa popular, as pessoas poderiam extravasar seus desejos sem julgamento antes de se submeterem aos jejuns, às restrições e às orações do período da Quaresma.

  Para compreender quem de fato produziu cultura popular e que de forma na Europa entre os anos 1500 e 1800, o historiador inglês Peter Burke, nascido em 1937, definiu "povo" como o estrato social que não fazia parte nem da burguesia nem da aristocracia. Em uma análise mais detalhada, descobriu-se que havia várias camadas culturais no que genericamente se denominava "povo".

  Na ânsia de separar aquilo que não pertencia à cultura erudita, estudiosos ergueram um "muro" para deixar de um lado todas as expressões consideradas incultas, não civilizadas, como as camponesas, as urbanas (como o Carnaval parisiense) e as originadas das manifestações dos andarilhos, os quais misturavam abordagens e interpretavam as influências religiosas e regionais que encontravam pelos caminhos que trilhavam.

  Em sua pesquisa, Burke percebeu que havia contrastes e interações entre as manifestações culturais desenvolvidas em distintas condições geográficas (terras altas e baixas, fronteiras e áreas centrais, regiões costeiras e interioranas). Agrupada na categoria única de cultura popular, toda essa diversidade havia sido deixada em segundo plano.

  Tal visão também ignorou uma forma específica de contato entre culturas, que Mikhail Bakhtin chamou de carnavalização. Segundo ele, as manifestações populares tendem a expressar os padrões da cultura dominante de forma invertida, por meio do riso, da máscara, do grotesco e da paródia. Esse autor considerava o Carnaval não apenas uma festa popular, mas também uma manifestação do desejo de subversão da ordem estabelecida.

Carnaval - uma das maiores manifestações culturais do mundo, faz parte da cultura popular

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BURKER, Peter. Cultura popular e transformação social. In: Cultura popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

ORTIZ, Renato. As ciências sociais e a cultura. Tempo Social, v. 14, n. 1, maio 2002. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo. Acesso em: 05/10/2022.

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