terça-feira, 19 de março de 2024

A INDEPENDÊNCIA DOS ESTADOS UNIDOS

   O poder absolutista europeu se fortaleceu em paralelo à expansão marítima e à formação de colônias ao redor do mundo. Contudo, à medida que a estrutura colonial passou a emitir sinais de colapso, diante do desejo dos colonos em traçar caminhos próprios e efetivar um rompimento definitivo com as metrópoles, o absolutismo começou a ruir.

  O primeiro sinal do conflito que se delineava no período viria de um dos elos mais frágeis do mundo colonial: as Treze Colônias Inglesas da América do Norte. Elas protagonizariam o primeiro processo de independência na América.

Mapa destacando as Treze Colônias da América Inglesa

  Em toda a América, as principais e mais prósperas colônias europeias foram construídas por portugueses e espanhóis, com a transferência de grandes recursos: capital, tecnologia, equipamentos e, sobretudo, pessoas das mais diferentes origens, etnias e condições sociais.

  Esses esforços resultaram em inúmeros e bem sucedidos núcleos populacionais, muitos deles marcados por sólidos centros urbanos, intenso comércio, riquezas e até mesmo universidades.

  Grande parte dos colonos que seguia para esses locais desejava uma rápida permanência, contando com riqueza imediata, mas acabaram encontrando inúmeras dificuldades para retornar, sobretudo com a demora em fazer fortuna. Permaneciam, assim, na colônia por longo tempo, sob o rígido controle da metrópole.

Mapa da América Colonial

  No caso de muitas das colônias inglesas da América do Norte, os caminhos foram diferentes. No início das Grandes Navegações, a Inglaterra era um reino de importância diminuta na Europa. Seu projeto colonial tinha uma estrutura bem menor que aquela demonstrada por portugueses e espanhóis. Iniciado cerca de um século depois do ibérico, quase sem apoio do governo, foi protagonizado por muitos súditos em fuga dos conflitos religiosos.

  O resultado foi um desenvolvimento colonial lento e precário, com poucas interferências da metrópole no cotidiano dos colonos. Na costa leste da América do Norte, iriam assim se consolidando as treze colônias autônomas e com profundas diferenças entre si.

  Com o passar do tempo, a situação do reino inglês, até então secundário no cenário europeu, mudou. A burguesia inglesa se consolidou como classe dominante, e a promoção de mudanças no plano econômico empreendida por ela deu à Inglaterra uma posição de destaque na Europa.

  Diante disso, segundo o historiador Leandro Karnal, é possível encontrar a razão para o início do processo de independência das Treze Colônias americanas observando os rumos tomados pela sociedade inglesa. A falta de um projeto de colonização sistemático fez consolidar entre os colonos ingleses um espírito de autonomia que se manifesta fortemente quando o governo inglês buscou estabelecer vínculos coloniais tradicionais, com o objetivo de tornar as posses americanas rentáveis para os negociantes da metrópole.

As possessões coloniais europeias na América do Norte em meados do século XVIII, com as Treze Colônias no leste (vermelho claro) na América Britânica

O caminho da intolerância

  Os séculos XVII e XVIII, na Europa, foram marcados por inúmeros conflitos, envolvendo reinos como Inglaterra, França e Espanha. As casas dinásticas disputavam o poder, a hegemonia no continente e a posse de territórios fora do continente. Essa conjuntura provocou, na América do Norte, frequentes alterações nas fronteiras coloniais.

  No caso dos ingleses, quando os conflitos se estendiam pela América, era comum o envolvimento dos colonos e mesmo dos povos nativos, com a mobilização de combatentes e recursos. A constância dessas batalhas, porém, levou os colonos a perceber que seus propósitos eram completamente inversos aos da metrópole - cada qual desejando caminho distinto para a sociedade. A situação provocou o progressivo distanciamento entre as duas partes.

  Os conflitos com o inimigo externo ajudaram a consolidar também entre os habitantes das Treze Colônias, uma espécie de identidade embrionária. Tornaram, por fim, rotineira a mobilização e a formação de exércitos entre os colonos.

  A Guerra dos Sete Anos (1756-1763) - que envolveu vários países e reinos europeus e opôs França e Inglaterra - teve importância fundamental nos processos que estavam prestes a acontecer. Ao marcar a saída definitiva dos franceses dos territórios da América do Norte, os colonos ingleses se perceberam  menos necessitados da proteção e dos vínculos com a metrópole, ao mesmo tempo que passaram a sentir maior interesse dos britânicos nos negócios coloniais.

Operações da Guerra dos Sete Anos em 1756

  A interferência do governo tinha múltiplos objetivos, como obter recursos para arcar com as despesas das guerras e garantir, de um lado, maior fornecimento de matéria-prima para as fábricas da Revolução Industrial (entre elas o algodão utilizado no setor têxtil) e, de outro, consumidores para os produtos dessas mesmas fábricas.

  As ingerências do governo inglês na América aumentaram significativamente, passando a intervir na regulação dos negócios e no aumento dos impostos. Acendia-se assim um barril de pólvora que inflamava o desejo por autonomia dos colonos.

  A busca por essa autonomia surgiria, primeiro, nas colônias do norte, menos dependentes dos negócios com a metrópole. Essas colônias haviam consolidado um intenso comércio com outras áreas coloniais do Caribe, com a África e mesmo com as colônias ibéricas do sul. Com o interesse do governo inglês em interferir nas colônias da América, todo esse dinamismo ficava ameaçado.

Formação dos estados norte-americanos desde 1750 até os dias atuais

No (antigo) espírito mercantilista

  O governo inglês, para sustentar seus anseios políticos e econômicos, buscou intensificar seus vínculos coloniais. Na América, isso se traduziu em normas e impostos, como a chamada Lei do Açúcar (Sugar Act), de 1764, que interferia na organização do comércio realizado nas colônias, sobretudo aquelas do norte.

  A medida reduzia os impostos sobre o melaço vindo do estrangeiro e aumentava as taxas sobre produtos como açúcar, artigos de luxo e vinhos. Intensificava também o rigor na fiscalização e no combate ao contrabando. O objetivo era intensificar os negócios com as colônias inglesas das Antilhas e, ao mesmo tempo, dificultar os negócios dos colonos no Caribe, em especial a compra do açúcar usado para fabricar rum, produto que trazia grandes lucros em negócios realizados na África.

  A reação dos colonos foi intensa. Começaram a questionar se o Parlamento inglês teria o direito de aumentar os tributos na América sem a representação dos colonos naquele órgão. Recorria-se, para isso, a uma antiga tradição inglesa, consolidada nos tempos medievais com a Magna Carta: o aumento do tributo só era possível com a concordância dos súditos representados no Parlamento. Os colonos, na época, não tinham direito a essa representação.

  Outras leis restritivas seriam ainda decretadas pela metrópole, como a proibição da emissão de papel de crédito na América. Além disso, tornava-se ainda obrigatório aos colonos a hospedagem e o fornecimento de alimentos aos soldados ingleses na América. Com isso, o governo pretendia economizar nos custos de manutenção das tropas na colônia, que tinham a função de reprimir os colonos.

  Mas a goda d'água que fez explodir as tensões foi a Lei do Selo, de 1765. A medida exigia que os contratos, jornais, cartazes e quaisquer documentos oficiais fossem taxados: o símbolo do cumprimento da lei, nesse caso, era a aplicação de um selo. As manifestações contrárias foram intensas, inclusive com o boicote à compra dos produtos ingleses - o que fez os rendimentos britânicos decaírem na América. Foi organizado ainda o Congresso da Lei do Selo, que resultou na Declaração dos Direitos e Reivindicações.

Um jornal de 1765 falando sobre a Lei do Selo

  O documento reforçava a lealdade dos colonos ao governo inglês. Porém, reafirmava as reivindicações pela igualdade de direitos no reino, sobretudo no que se referia à representação no Parlamento. Pressionado, o governo acabou por revogar a medida, o que não significou recuo nas intenções da metrópole. Nos meses seguintes viriam novos impostos e mais leis restritivas.

  As tensões se multiplicavam diante das imposições da metrópole. Em Boston, no ano de 1770, manifestações contrárias ao governo inglês resultaram na morte de cinco colonos e outros tantos feridos. Esse episódio ficou conhecido como O massacre de Boston.

O massacre de Boston

  Com o aumento da tensão nas colônias, o governo inglês outorgou à Companhia das Índias Orientais, então com graves problemas financeiros, o monopólio do comércio do chá nas colônias inglesas. Isso provocou o aumento do preço do produto, levando os colonos a boicotar sua compra.

  A liderança das mulheres foi fundamental para o sucesso do boicote. Organizadas em diversas associações, elas também passaram a a incentivar a troca de produtos ingleses por objetos feitos em casa. A manifestação mais marcante, porém, seria no porto de Boston, em que 150 colonos, disfarçados de indígenas invadiram um barco que transportava chá e jogaram o produto no mar.

  A reação do Parlamento inglês foi dura, com a promulgação das chamadas Leis Intoleráveis. Entre outras limitações aos colonos, essas leis restringiam o direito de reunião e exigiam o imediato pagamento dos prejuízos à Companhia, com o porto devendo permanecer fechado até a quitação.

Litografia de 1846 por Nathaniel Currier chamada A Destruição do Chá no Porto de Boston

Enfim, autonomia

  A década de 1770, na Europa, foi marcada pela contestação ao absolutismo. As ideias iluministas se expandiram por diferentes locais, chegaram à América e influenciaram grupos de colonos ingleses que se opunham à política da metrópole.

  A princípio, esses grupos defendiam a formação de uma espécie de contrato social, entre os colonos e o governo inglês, que garantissem direitos como a participação na elaboração das leis que se referiam às colônias ou que afetavam a vida dos colonos.

  Na América inglesa, inclusive, à semelhança da Europa iluminista, existiam várias associações secretas, como os Filhos da Liberdade, empenhados em discutir e elaborar estratégias contra a tirania do governo.

  O sentimento de oposição ao arbítrio real seria, inclusive, o principal ponto a unir os habitantes das Treze Colônias em torno de um projeto de independência, em especial na região norte.

  Contudo, o desejo de autonomia não era compartilhado por todos. Diversos grupos temiam que a luta contra a tirania e por liberdade resultasse em um dilacerante conflito, insuflando até os grupos mais pobres, sobretudo os escravizados, a brigar pelos mesmos princípios.

A marcha para o vale Forger, por William B. T. Trego

  Nesse clima de contestação, em 1774, realizou-se o Congresso Continental da Filadélfia, que reuniu representantes de doze das Treze Colônias inglesas. O documento final reafirmava a lealdade dos colonos aos ingleses, mas pedia o fim das leis restritivas e condições para o desenvolvimento local. O governo inglês se mostrou receptivo, mas aumentou o efetivo militar na América.

  O aumento do contingente militar ampliou os choques armados entre os soldados ingleses e as tropas ligadas aos colonos. As tensões aumentaram e, em 1775, foi convocado o Segundo Congresso da Filadélfia, agora com a participação das Treze Colônias. Entre os representantes, muitos se entusiasmavam com a ideia da separação, vendo na quebra dos vínculos coloniais a solução para todos os problemas, enquanto outros viam o ato com muitas reticências. O governo real, diante dessa situação, declarou as colônias em estado de rebeldia.

  Em 1776, os congressistas da Filadélfia decidiram pela autonomia, com a divulgação, em 4 de julho de 1776, da Declaração de Independência: nasciam os Estados Unidos da América. Mais do que isso, pela primeira vez rompiam-se os vínculos coloniais e buscava-se colocar em prática os princípios iluministas. A população, constituída de ex-colonos, aceitou com entusiasmo a formação da nova república.

Declaração de Independência dos Estados Unidos

Construir o país

  Para combater o movimento pela independência, o poderoso governo inglês enviou à América um numeroso exército apoiado pela marinha e por soldados mercenários, a que se somaram inúmeros grupos de colonos contrários à separação.

  Para combater esse poderio, os rebelados estadunidenses formaram o Exército Continental sob a liderança de George Washington (1732-1799). Por todo o novo país, surgiram também inúmeras milícias, formadas por pequenos grupos de populares.

  Os conflitos entre os dois lados foram intensos, com batalhas violentas e cruéis. A princípio, o poderio bélico da metrópole só conseguiu ser contido graças ao uso de táticas semelhantes às de guerrilha, nas quais os ex-colonos exploraram o fato de conhecer bem as características locais. No decorrer dos combates, os rebelados receberam  apoio da França e da Espanha, reinos interessados na derrota inglesa.

Tropas britânicas marchando em Concord, na colônia de Massachussetts, em abril de 1775

  Esse apoio estrangeiro foi decisivo e a última grande batalha ocorreu em 1781, no atual estado da Virgínia. O reconhecimento internacional da independência veio em 1783, quando o governo inglês assinou um tratado que previa indenização aos franceses e espanhóis. Apesar da vitória, era preciso ainda dar formato ao novo país e consolidar a união entre as treze antigas colônias.

  Seguindo os princípios iluministas, foi elaborada uma constituição. Os debates foram intensos, começando pela discussão da estrutura do novo Estado: se deveria existir um governo central fortalecido ou se seria garantida a plena autonomia das antigas colônias. Aprovado em 1790, o texto era inovador, transformando os Estados Unidos em uma república federativa, com ampla autonomia para os estados e com o poder dividido em três instâncias (executivo, legislativo, judiciário), cabendo o comando do país a um presidente.

Declaração de Independência, por John Trumbull, 1817-1819

  Garantia-se ainda a representatividade dos cidadãos, sobretudo dos grupos que haviam liderado aquele processo, em especial os grandes comerciantes, os latifundiários e os intelectuais urbanos.

  No entanto, se por um lado, grande parte dos habitantes do país foi excluída da participação política, como os pobres, as mulheres e pessoas escravizadas, por outro, o texto garantia outras liberdades: religiosa, de imprensa, de reunião e associação, de contestar o governo, de portar armas para defesa, de ter um julgamento justo. Por seu caráter sintético, generalista e abrangente, a Constituição mantém-se até os dias atuais.

A primeira página da Constituição dos Estados Unidos. Lê-se acima a frase We, the People (Nós, o povo)

Reflexos

  A independência estadunidense obteve grande repercussão na Europa e na América. No Velho Continente, a quebra do vínculo colonial colaborou para acentuar a crise do absolutismo, reforçando a ideia de liberdade, a soberania popular e a luta contra a tirania. Para as colônias de toda a América, o processo serviu como parâmetro para diversos movimentos de independência, sobretudo na porção espanhola.

  A independência intensificou ainda o movimento de expansão territorial dos antigos colonos ingleses, sobretudo na direção oeste do país recém-formado, onde predominavam os povos indígenas. O movimento deixou em aberto ainda diversos conflitos, como as profundas diferenças entre o norte e o sul do país, que se estenderiam ao longo do século XIX - alguns deles levando a grandes conflitos, como a Guerra de Secessão.

Washington cruzando o rio Delaware em 25 de dezembro de 1776, de Emanuel Leutze, 1851. George Washington foi o primeiro presidente dos Estados Unidos

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FERNANDES, Luiz Estevam de Oliveira; FERREIRA, João Paulo Mesquita Hidalgo. Formação da América Inglesa. In: Nova História Integrada - Ensino Médio - volume único. Campinas: Companhia da Escola, 2005.

KARNAL, Leandro (org.). História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: contexto, 2008.

LIMA, Lizânias de Souza; PEDRO, Antônio. Rebeliões e revoluções na América. In: História da civilização ocidental. São Paulo: FTD, 2005.

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