terça-feira, 26 de março de 2024

A INDÚSTRIA 4.0

   O termo "indústria 4.0" originou-se de um projeto de alta tecnologia do governo alemão com o objetivo de associar a automação industrial ao uso de máquinas conectadas para a fabricação de produtos cada vez mais personalizados e baseados em análises de grande quantidade de dados. Em 2013, o grupo de trabalho da Indústria 4.0, liderado pelo físico Henning Kagermann, publicou o relatório Recommendations for implementing the strategic iniative Industrie 4.0, sob o patrocínio do Ministério da Educação e Pesquisa da Alemanha. Desde então, esse conceito, que engloba as principais inovações tecnológicas dos campos de automação e tecnologia da informação (TI), vem sendo amplamente utilizado nas empresas pioneiras em alta tecnologia.

Figurinha mostrando a evolução da indústria

  O grupo de trabalho do projeto alemão caracterizou a indústria 4.0 considerando seis princípios:

1. Tempo real: capacidade de coletar e tratar dados de forma instantânea, permitindo reagir aos acontecimentos em tempo real.

2. Interoperabilidade: capacidade dos sistemas de se conectarem com outros sistemas. Quanto maior a conectividade entre os sistemas, maior a capacidade de coleta de dados e a capacidade de tomada de decisões em tempo real. A integração entre os dados coletados na indústria e sistemas de outros setores, como marketing, operações e financeiro, permite decisões rápidas e integradas.

3. Virtualização: tecnologias de realidade virtual e realidade aumentada, muito conhecidas nos jogos eletrônicos e no cinema, têm um enorme potencial para a indústria, trazendo a representação de uma cópia virtual das fábricas inteligentes, permitindo que os profissionais visualizem produtos e comportamentos de equipamentos. Com a virtualização é possível ainda rastrear e monitorar remotamente todos os seus processos.

4. Descentralização: princípio que estabelece que cada pessoa (ou máquina) é capaz de implementar melhorias na produção com base nos dados que recebe. Sem a indústria 4.0, um grande sistema central lida com cada mínima decisão envolvendo as mais diversas áreas da indústria, o que toma mais tempo.

5. Modularidade: o século XXI trouxe um grande aumento na busca por personalização de produtos. Com a coleta de um grande número de dados de produção e consumo, a produção direciona-se para a personalização, com seus componentes sendo baseados em módulos capazes de permitir o acoplamento ou desacoplamento de recursos, segundo a demanda da fábrica. Isso permite flexibilidade na alteração de tarefas em comparação com o modelo anterior. Um bom exemplo de entendimento da modularidade é a indústria automobilística, que utiliza o conceito há alguns anos. Um único modelo de carro permite que a indústria venda tipos diversos de acessórios modulares complementares.

6. Orientação a serviços: princípio de que os softwares  são orientados a disponibilizar soluções como serviços, conectados com toda a indústria. Assim, a conexão entre trabalhadores e máquinas torna-se vital para a realização de determinadas tarefas.

Princípios da Indústria 4.0

  A indústria 4.0 é resultante, portanto, de uma linha contínua de inovação e integração de diversas tecnologias. Ela vem sendo tratada por muitos como a Quarta Revolução Industrial por ter em comum o objetivo de tornar as máquinas mais inteligentes, integrando sistemas físico-cibernéticos, o que implica um grau de complexidade bem mais elevado do que as Revoluções Industriais anteriores.

  Quando falamos em revolução na indústria, não tratamos de uma novidade que impacte localmente o processo de alguns fabricantes. Para ser tratado como uma revolução, o impacto da produção deve acontecer em escala mundial e multissetorial. Assim, a tendência tecnológica que observamos aqui se dá pela combinação de novos conceitos e novas tecnologias.

Esquema mostrando como funciona da Indústria 4.0

Internet das coisas e sistemas integrados da indústria 4.0

  A aplicação da internet das coisas na indústria 4.0 é encontrada, por exemplo, em fábricas integradas por sensores que capturam grandes quantidades de dados por toda a empresa e permitem a gestão de dispositivos de forma remota. Dessa forma, um dos primeiros impactos da internet das coisas sobre a produção industrial está em sua otimização, sem que, muitas vezes, haja a necessidade de intervenção humana.

  O monitoramento do desempenho da produção praticamente em tempo real pode ser feito desde a obtenção da matéria-prima até a embalagem e a distribuição dos produtos. A análise desses dados proporciona rapidez nas respostas, ajustando operações e identificando pontos de melhoria nos processos, com ganhos potenciais em custos e segurança.

Tecnologias da indústria 4.0

  A internet das coisas e os sistemas integrados permitem ainda o controle de estoques por meio da identificação por radiofrequência (RFID), um tipo de etiqueta que captura dados. É a mesma tecnologia dotada em cancelas de pedágio  e estacionamentos ou no monitoramento do desempenho de maratonistas em corrida. Ao receberem um número de série único, cada etiqueta identifica o produto por meio de um microchip. A partir daí, o controle do produto no estoque é muito mais eficiente. A etiqueta faz a identificação automática do produto e de todas as informações dele no sistema da empresa, prevenindo assim o roubo e as trocas de mercadoria e ainda reduzindo os erros de armazenamento. A inteligência artificial pode, em combinação com essa tecnologia, solicitar a reposição de determinado produto em estoque quando este atinge um nível crítico, por exemplo.

  A internet das coisas na indústria 4.0 também é pensada para possibilitar a melhoria da segurança e da proteção individual: câmeras e sensores capturam dados que são processados por sistemas especializados e informam atitudes inadequadas ou perigosas, disparando automaticamente ações de proteção e prevenção, ou induzem ao autodesligamento de máquinas com mau funcionamento, de forma a evitar acidentes, e informam a necessidade de manutenção.

  Com o controle integrado e automatizado e a disponibilidade de grandes volumes de dados em tempo real, problemas de qualidade do produto são corrigidos quase que instantaneamente, liberando ao mercado lotes de produtos mais bem acabados do que os do estágio anterior da industrialização, que dependiam da verificação humana para os padrões de qualidade.

Com bilhões de dispositivos que funcionam à base de sensores inteligentes, a internet das coisas pode ser utilizado nos campos mais diversos

REFERÊNCIA:

CSACOMANO, J. B.; SÁTYRO, W. C. Indústria 4.0: conceitos fundamentais. São Paulo: Blusher, 2018.

terça-feira, 19 de março de 2024

A INDEPENDÊNCIA DOS ESTADOS UNIDOS

   O poder absolutista europeu se fortaleceu em paralelo à expansão marítima e à formação de colônias ao redor do mundo. Contudo, à medida que a estrutura colonial passou a emitir sinais de colapso, diante do desejo dos colonos em traçar caminhos próprios e efetivar um rompimento definitivo com as metrópoles, o absolutismo começou a ruir.

  O primeiro sinal do conflito que se delineava no período viria de um dos elos mais frágeis do mundo colonial: as Treze Colônias Inglesas da América do Norte. Elas protagonizariam o primeiro processo de independência na América.

Mapa destacando as Treze Colônias da América Inglesa

  Em toda a América, as principais e mais prósperas colônias europeias foram construídas por portugueses e espanhóis, com a transferência de grandes recursos: capital, tecnologia, equipamentos e, sobretudo, pessoas das mais diferentes origens, etnias e condições sociais.

  Esses esforços resultaram em inúmeros e bem sucedidos núcleos populacionais, muitos deles marcados por sólidos centros urbanos, intenso comércio, riquezas e até mesmo universidades.

  Grande parte dos colonos que seguia para esses locais desejava uma rápida permanência, contando com riqueza imediata, mas acabaram encontrando inúmeras dificuldades para retornar, sobretudo com a demora em fazer fortuna. Permaneciam, assim, na colônia por longo tempo, sob o rígido controle da metrópole.

Mapa da América Colonial

  No caso de muitas das colônias inglesas da América do Norte, os caminhos foram diferentes. No início das Grandes Navegações, a Inglaterra era um reino de importância diminuta na Europa. Seu projeto colonial tinha uma estrutura bem menor que aquela demonstrada por portugueses e espanhóis. Iniciado cerca de um século depois do ibérico, quase sem apoio do governo, foi protagonizado por muitos súditos em fuga dos conflitos religiosos.

  O resultado foi um desenvolvimento colonial lento e precário, com poucas interferências da metrópole no cotidiano dos colonos. Na costa leste da América do Norte, iriam assim se consolidando as treze colônias autônomas e com profundas diferenças entre si.

  Com o passar do tempo, a situação do reino inglês, até então secundário no cenário europeu, mudou. A burguesia inglesa se consolidou como classe dominante, e a promoção de mudanças no plano econômico empreendida por ela deu à Inglaterra uma posição de destaque na Europa.

  Diante disso, segundo o historiador Leandro Karnal, é possível encontrar a razão para o início do processo de independência das Treze Colônias americanas observando os rumos tomados pela sociedade inglesa. A falta de um projeto de colonização sistemático fez consolidar entre os colonos ingleses um espírito de autonomia que se manifesta fortemente quando o governo inglês buscou estabelecer vínculos coloniais tradicionais, com o objetivo de tornar as posses americanas rentáveis para os negociantes da metrópole.

As possessões coloniais europeias na América do Norte em meados do século XVIII, com as Treze Colônias no leste (vermelho claro) na América Britânica

O caminho da intolerância

  Os séculos XVII e XVIII, na Europa, foram marcados por inúmeros conflitos, envolvendo reinos como Inglaterra, França e Espanha. As casas dinásticas disputavam o poder, a hegemonia no continente e a posse de territórios fora do continente. Essa conjuntura provocou, na América do Norte, frequentes alterações nas fronteiras coloniais.

  No caso dos ingleses, quando os conflitos se estendiam pela América, era comum o envolvimento dos colonos e mesmo dos povos nativos, com a mobilização de combatentes e recursos. A constância dessas batalhas, porém, levou os colonos a perceber que seus propósitos eram completamente inversos aos da metrópole - cada qual desejando caminho distinto para a sociedade. A situação provocou o progressivo distanciamento entre as duas partes.

  Os conflitos com o inimigo externo ajudaram a consolidar também entre os habitantes das Treze Colônias, uma espécie de identidade embrionária. Tornaram, por fim, rotineira a mobilização e a formação de exércitos entre os colonos.

  A Guerra dos Sete Anos (1756-1763) - que envolveu vários países e reinos europeus e opôs França e Inglaterra - teve importância fundamental nos processos que estavam prestes a acontecer. Ao marcar a saída definitiva dos franceses dos territórios da América do Norte, os colonos ingleses se perceberam  menos necessitados da proteção e dos vínculos com a metrópole, ao mesmo tempo que passaram a sentir maior interesse dos britânicos nos negócios coloniais.

Operações da Guerra dos Sete Anos em 1756

  A interferência do governo tinha múltiplos objetivos, como obter recursos para arcar com as despesas das guerras e garantir, de um lado, maior fornecimento de matéria-prima para as fábricas da Revolução Industrial (entre elas o algodão utilizado no setor têxtil) e, de outro, consumidores para os produtos dessas mesmas fábricas.

  As ingerências do governo inglês na América aumentaram significativamente, passando a intervir na regulação dos negócios e no aumento dos impostos. Acendia-se assim um barril de pólvora que inflamava o desejo por autonomia dos colonos.

  A busca por essa autonomia surgiria, primeiro, nas colônias do norte, menos dependentes dos negócios com a metrópole. Essas colônias haviam consolidado um intenso comércio com outras áreas coloniais do Caribe, com a África e mesmo com as colônias ibéricas do sul. Com o interesse do governo inglês em interferir nas colônias da América, todo esse dinamismo ficava ameaçado.

Formação dos estados norte-americanos desde 1750 até os dias atuais

No (antigo) espírito mercantilista

  O governo inglês, para sustentar seus anseios políticos e econômicos, buscou intensificar seus vínculos coloniais. Na América, isso se traduziu em normas e impostos, como a chamada Lei do Açúcar (Sugar Act), de 1764, que interferia na organização do comércio realizado nas colônias, sobretudo aquelas do norte.

  A medida reduzia os impostos sobre o melaço vindo do estrangeiro e aumentava as taxas sobre produtos como açúcar, artigos de luxo e vinhos. Intensificava também o rigor na fiscalização e no combate ao contrabando. O objetivo era intensificar os negócios com as colônias inglesas das Antilhas e, ao mesmo tempo, dificultar os negócios dos colonos no Caribe, em especial a compra do açúcar usado para fabricar rum, produto que trazia grandes lucros em negócios realizados na África.

  A reação dos colonos foi intensa. Começaram a questionar se o Parlamento inglês teria o direito de aumentar os tributos na América sem a representação dos colonos naquele órgão. Recorria-se, para isso, a uma antiga tradição inglesa, consolidada nos tempos medievais com a Magna Carta: o aumento do tributo só era possível com a concordância dos súditos representados no Parlamento. Os colonos, na época, não tinham direito a essa representação.

  Outras leis restritivas seriam ainda decretadas pela metrópole, como a proibição da emissão de papel de crédito na América. Além disso, tornava-se ainda obrigatório aos colonos a hospedagem e o fornecimento de alimentos aos soldados ingleses na América. Com isso, o governo pretendia economizar nos custos de manutenção das tropas na colônia, que tinham a função de reprimir os colonos.

  Mas a goda d'água que fez explodir as tensões foi a Lei do Selo, de 1765. A medida exigia que os contratos, jornais, cartazes e quaisquer documentos oficiais fossem taxados: o símbolo do cumprimento da lei, nesse caso, era a aplicação de um selo. As manifestações contrárias foram intensas, inclusive com o boicote à compra dos produtos ingleses - o que fez os rendimentos britânicos decaírem na América. Foi organizado ainda o Congresso da Lei do Selo, que resultou na Declaração dos Direitos e Reivindicações.

Um jornal de 1765 falando sobre a Lei do Selo

  O documento reforçava a lealdade dos colonos ao governo inglês. Porém, reafirmava as reivindicações pela igualdade de direitos no reino, sobretudo no que se referia à representação no Parlamento. Pressionado, o governo acabou por revogar a medida, o que não significou recuo nas intenções da metrópole. Nos meses seguintes viriam novos impostos e mais leis restritivas.

  As tensões se multiplicavam diante das imposições da metrópole. Em Boston, no ano de 1770, manifestações contrárias ao governo inglês resultaram na morte de cinco colonos e outros tantos feridos. Esse episódio ficou conhecido como O massacre de Boston.

O massacre de Boston

  Com o aumento da tensão nas colônias, o governo inglês outorgou à Companhia das Índias Orientais, então com graves problemas financeiros, o monopólio do comércio do chá nas colônias inglesas. Isso provocou o aumento do preço do produto, levando os colonos a boicotar sua compra.

  A liderança das mulheres foi fundamental para o sucesso do boicote. Organizadas em diversas associações, elas também passaram a a incentivar a troca de produtos ingleses por objetos feitos em casa. A manifestação mais marcante, porém, seria no porto de Boston, em que 150 colonos, disfarçados de indígenas invadiram um barco que transportava chá e jogaram o produto no mar.

  A reação do Parlamento inglês foi dura, com a promulgação das chamadas Leis Intoleráveis. Entre outras limitações aos colonos, essas leis restringiam o direito de reunião e exigiam o imediato pagamento dos prejuízos à Companhia, com o porto devendo permanecer fechado até a quitação.

Litografia de 1846 por Nathaniel Currier chamada A Destruição do Chá no Porto de Boston

Enfim, autonomia

  A década de 1770, na Europa, foi marcada pela contestação ao absolutismo. As ideias iluministas se expandiram por diferentes locais, chegaram à América e influenciaram grupos de colonos ingleses que se opunham à política da metrópole.

  A princípio, esses grupos defendiam a formação de uma espécie de contrato social, entre os colonos e o governo inglês, que garantissem direitos como a participação na elaboração das leis que se referiam às colônias ou que afetavam a vida dos colonos.

  Na América inglesa, inclusive, à semelhança da Europa iluminista, existiam várias associações secretas, como os Filhos da Liberdade, empenhados em discutir e elaborar estratégias contra a tirania do governo.

  O sentimento de oposição ao arbítrio real seria, inclusive, o principal ponto a unir os habitantes das Treze Colônias em torno de um projeto de independência, em especial na região norte.

  Contudo, o desejo de autonomia não era compartilhado por todos. Diversos grupos temiam que a luta contra a tirania e por liberdade resultasse em um dilacerante conflito, insuflando até os grupos mais pobres, sobretudo os escravizados, a brigar pelos mesmos princípios.

A marcha para o vale Forger, por William B. T. Trego

  Nesse clima de contestação, em 1774, realizou-se o Congresso Continental da Filadélfia, que reuniu representantes de doze das Treze Colônias inglesas. O documento final reafirmava a lealdade dos colonos aos ingleses, mas pedia o fim das leis restritivas e condições para o desenvolvimento local. O governo inglês se mostrou receptivo, mas aumentou o efetivo militar na América.

  O aumento do contingente militar ampliou os choques armados entre os soldados ingleses e as tropas ligadas aos colonos. As tensões aumentaram e, em 1775, foi convocado o Segundo Congresso da Filadélfia, agora com a participação das Treze Colônias. Entre os representantes, muitos se entusiasmavam com a ideia da separação, vendo na quebra dos vínculos coloniais a solução para todos os problemas, enquanto outros viam o ato com muitas reticências. O governo real, diante dessa situação, declarou as colônias em estado de rebeldia.

  Em 1776, os congressistas da Filadélfia decidiram pela autonomia, com a divulgação, em 4 de julho de 1776, da Declaração de Independência: nasciam os Estados Unidos da América. Mais do que isso, pela primeira vez rompiam-se os vínculos coloniais e buscava-se colocar em prática os princípios iluministas. A população, constituída de ex-colonos, aceitou com entusiasmo a formação da nova república.

Declaração de Independência dos Estados Unidos

Construir o país

  Para combater o movimento pela independência, o poderoso governo inglês enviou à América um numeroso exército apoiado pela marinha e por soldados mercenários, a que se somaram inúmeros grupos de colonos contrários à separação.

  Para combater esse poderio, os rebelados estadunidenses formaram o Exército Continental sob a liderança de George Washington (1732-1799). Por todo o novo país, surgiram também inúmeras milícias, formadas por pequenos grupos de populares.

  Os conflitos entre os dois lados foram intensos, com batalhas violentas e cruéis. A princípio, o poderio bélico da metrópole só conseguiu ser contido graças ao uso de táticas semelhantes às de guerrilha, nas quais os ex-colonos exploraram o fato de conhecer bem as características locais. No decorrer dos combates, os rebelados receberam  apoio da França e da Espanha, reinos interessados na derrota inglesa.

Tropas britânicas marchando em Concord, na colônia de Massachussetts, em abril de 1775

  Esse apoio estrangeiro foi decisivo e a última grande batalha ocorreu em 1781, no atual estado da Virgínia. O reconhecimento internacional da independência veio em 1783, quando o governo inglês assinou um tratado que previa indenização aos franceses e espanhóis. Apesar da vitória, era preciso ainda dar formato ao novo país e consolidar a união entre as treze antigas colônias.

  Seguindo os princípios iluministas, foi elaborada uma constituição. Os debates foram intensos, começando pela discussão da estrutura do novo Estado: se deveria existir um governo central fortalecido ou se seria garantida a plena autonomia das antigas colônias. Aprovado em 1790, o texto era inovador, transformando os Estados Unidos em uma república federativa, com ampla autonomia para os estados e com o poder dividido em três instâncias (executivo, legislativo, judiciário), cabendo o comando do país a um presidente.

Declaração de Independência, por John Trumbull, 1817-1819

  Garantia-se ainda a representatividade dos cidadãos, sobretudo dos grupos que haviam liderado aquele processo, em especial os grandes comerciantes, os latifundiários e os intelectuais urbanos.

  No entanto, se por um lado, grande parte dos habitantes do país foi excluída da participação política, como os pobres, as mulheres e pessoas escravizadas, por outro, o texto garantia outras liberdades: religiosa, de imprensa, de reunião e associação, de contestar o governo, de portar armas para defesa, de ter um julgamento justo. Por seu caráter sintético, generalista e abrangente, a Constituição mantém-se até os dias atuais.

A primeira página da Constituição dos Estados Unidos. Lê-se acima a frase We, the People (Nós, o povo)

Reflexos

  A independência estadunidense obteve grande repercussão na Europa e na América. No Velho Continente, a quebra do vínculo colonial colaborou para acentuar a crise do absolutismo, reforçando a ideia de liberdade, a soberania popular e a luta contra a tirania. Para as colônias de toda a América, o processo serviu como parâmetro para diversos movimentos de independência, sobretudo na porção espanhola.

  A independência intensificou ainda o movimento de expansão territorial dos antigos colonos ingleses, sobretudo na direção oeste do país recém-formado, onde predominavam os povos indígenas. O movimento deixou em aberto ainda diversos conflitos, como as profundas diferenças entre o norte e o sul do país, que se estenderiam ao longo do século XIX - alguns deles levando a grandes conflitos, como a Guerra de Secessão.

Washington cruzando o rio Delaware em 25 de dezembro de 1776, de Emanuel Leutze, 1851. George Washington foi o primeiro presidente dos Estados Unidos

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FERNANDES, Luiz Estevam de Oliveira; FERREIRA, João Paulo Mesquita Hidalgo. Formação da América Inglesa. In: Nova História Integrada - Ensino Médio - volume único. Campinas: Companhia da Escola, 2005.

KARNAL, Leandro (org.). História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: contexto, 2008.

LIMA, Lizânias de Souza; PEDRO, Antônio. Rebeliões e revoluções na América. In: História da civilização ocidental. São Paulo: FTD, 2005.

segunda-feira, 11 de março de 2024

A CRUCIFICAÇÃO E O CIRCO ROMANO

  No mundo Ocidental, as execuções públicas são antigas e os maiores exemplos disso são do tempo do Império Romano, que durou mais de 500 anos. O caso que se tornou mais emblemático foi o de Jesus Cristo. Segundo relato dos Evangelhos, ele foi sentenciado à morte como agitador na província romana da Judeia, após o governador ser pressionado pelos fariseus, que então dirigiam o templo hebreu. Jesus foi condenado por aclamação da multidão, quando Pilatos colocou em votação quem ele deveria libertar, Jesus ou Barrabás, um criminoso comum. Jesus foi açoitado, humilhado, obrigado a carregar a pesada cruz pelas ruas de Jerusalém até o monte Gólgota, sendo insultado de todas as maneiras no percurso. Uns e outros se apiedaram, mas a maioria apoiou com entusiasmo a Via Crucis e depois assistiu à crucificação.

Monte Gólgota, a leste de Jerusalém. Lugar onde, segundo a Bíblia, Jesus foi crucificado

  Os Evangelhos podem ser lidos do ponto de vista religioso, mas também podem ser tomados como fontes históricas. Eles contêm relatos específicos sobre um tipo de execução largamente praticado no Império Romano contra ladrões, assassinos e rebeldes. Na época, prevalecia a ideia de que criminosos deviam ser escravizados ou executados com crueldade diante de todos.

  A morte cruel era tão valorizada no Império Romano que foram construídas arenas, locais reservados ao combate de gladiadores, em geral escravizados por agentes comerciais para lutar no circo romano, espaço de entretenimento a céu aberto. Por vezes, combatentes em condições desiguais eram postos, propositalmente, para lutar uns contra os outros. Quando um gladiador submetia outro, aguardava o veredito do imperador, que decidia pela vida ou pela morte do vencido com base nas manifestações da multidão.

Coliseu de Roma, anfiteatro localizado no centro da capital italiana, foi construído entre 72-80 d.C., era utilizado para combate entre gladiadores e espetáculos públicos

  Nessas arenas, havia também batalhas entre leões e elefantes, que acabavam em muito sangue e mortes. Na maioria das vezes, cobrava-se ingresso dos espectadores, mas havia ocasiões em que a entrada era gratuita. A gratuidade desse tipo de espetáculo levou à consagração da ideia de que o Império Romano promovia uma política de panem et circenses, ou seja, de "pão e circo". Segundo essa ideia, tendo pão e diversão, o povo ficaria quieto e satisfeito.

O destino de um gladiador derrotado era decidido pelo público

  No tempo do imperador Nero, que governou de 54 d.C. a 68 d.C., as primeiras comunidades cristãs de Roma foram perseguidas e executadas. Pedro, fundador da Igreja cristã por designação de Jesus, foi crucificado. A maioria dos cristãos, porém, foi levada ao circo romano, em grupos de vinte e trinta pessoas, para se defrontar com leões e tigres famintos. A crônica da época registra que muitos corriam das feras até serem alcançados e devorados. Outros ficavam quietos, rezando, certos de que morreriam como mártires e teriam uma vida melhor no paraíso celeste. Em resumo: no Império Romano, a crueldade e a morte atroz eram parte de um espetáculo bastante popular.

"A última prece dos mártires cristãos", por Jean-Léon Gérôme (1883)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

JÚNIOR, Jason José Guedes; CÂNDIDO, Maria Regina. Gladiadores e o Império: os poderes nas arenas romanas (séculos I e II). Nearco: revista eletrônica de antiguidade, vol. 1, ano VIII, n. 1, 2015.

GARRAFFONI, Renata Senna. Gladiadores na Roma Antiga. São Paulo: Annablume, FAPESP, 2005.