terça-feira, 23 de agosto de 2022

DIREITO À MORADIA E SEGREGAÇÃO URBANA

  No campo das ciências humanas, segregação espacial é a dignidade de grupos sociais ou étnicos dentro de um determinado retilíneo. Pode ocorrer em diferentes escalas, entre elas a infraestrutura urbana, a urbana regional ou nacional. Pode ser favorecida e legitimada socialmente, levando à formação de áreas segregadas, desiguais. A segregação pode obedecer a critérios de etnia, nacionalidade ou classe social e seu caráter espacial é fundamental.

  Historicamente e em particular do século XVIII ao século XIX, a segregação foi considerada como instrumento de regulação social e de gestão urbana nas cidades da Europa.

  A ausência de segregação política não exclui a segregação espacial. Nas metrópoles brasileiras, predomina a segregação por classe social. Quanto maiores as diferenças de renda entre grupos e classes sociais, maiores as desigualdades das condições de moradia e de acesso a serviços públicos. A segregação pode ser reforçada pelo próprio poder público, quando prioriza investimentos nas áreas ocupadas pela população de renda mais elevada, negligenciando ou simplesmente ignorando a parte ocupada pelos mais pobres. O Estado pode promover a qualificação das áreas mais carentes - através de investimentos em habitação e infraestrutura, transportes, segurança, educação, saúde, lazer e cultura - atenuando a segregação espacial.

  A criação de condomínios fechados é o exemplo mais frequente de segregação no espaço urbano. Impulsionada pelo medo da violência e pela busca de segurança e tranquilidade, esse fenômeno resulta em redução dos espaços públicos, ao restringir o acesso a determinadas áreas da cidade.

No primeiro plano temos a Avenida Nossa Senhora do Carmo; ao fundo, a favela Morro do Papagaio, em Belo Horizonte - MG

Segregação socioespacial: o histórico da discussão

  O conceito "segregação espacial" começou a ser utilizado pela Escola de Chicago, nos Estados Unidos, entre os anos 1930 e 1940, para analisar como diferentes populações se distribuíam pelas cidades estadunidenses. Apesar de reconhecer que existia uma diferença perceptível nos espaços ocupados por cada grupo.

  Algumas décadas depois, a partir dos anos 1960 e 1970, os estudiosos da Escola de Sociologia Urbana Francesa trouxeram uma ótica marxista para o conceito. Mais do que apenas constatar o local das residências, essa linha de pensamento reconhecia o papel crucial dos processos capitalistas na segregação socioespacial. A estratificação urbana, também seria uma expressão da estratificação social e da luta de classes.

  A partir dessa linha de pensamento, muitos novos autores realizaram estudos sobre o tema da segregação socioespacial, reconhecendo os diversos fatores envolvidos.

Panorama da Favela da Rocinha, Rio de Janeiro - RJ

O direito à moradia

   Após a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, ao término da Segunda Guerra Mundial, a moradia foi incluída como um direito humano, isto é, um direito imprescindível a todas as pessoas. Com esse importante documento, diversos outros tratados conduzidos pela ONU, igualmente, incluíram a questão da moradia digna como uma das questões centrais da humanidade a ser resolvida. A Constituição brasileira (1988) reconhece esse direito em seu artigo 6º, que diz:

  "São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição".

  Todas as pessoas devem ter uma moradia digna para viver com acesso aos meios de sobrevivência, como consta na Constituição brasileira de 1988 e em outros documentos internacionais dos quais o Brasil é signatário. É um direito humano que as pessoas tenham uma habitação adequada.

  No entanto, por diferentes razões, esse direito não vem sendo respeitado e muitas pessoas não têm acesso a moradias adequadas.

  É função do poder público desenvolver políticas para que esse direito seja implementado. Cabe ao Estado promover ações voltadas à superação das desigualdades sociais que agravam a questão da moradia, da opressão e da violação dos direitos humanos por meio de políticas públicas sólidas.

Favela de Paraisópolis, em São Paulo - SP

  A questão da moradia digna no Brasil perpassou por vários governos e o desafio continua atualmente e longe de uma solução. Estima-se no Brasil um déficit da ordem de 8 milhões de moradias e esse número vem crescendo.

  A Constituição Federal (artigo 23, parágrafo IX, 1988) prevê uma política habitacional que contemple a carência de moradias no Brasil, estabelecendo, neste sentido, o dever do Estado: "[...] é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios promover programas de construção de moradias e melhorias das condições habitacionais [...]".

  Esse direito assegurado constitucionalmente vêm no âmbito de outros similares, como direito à educação, à saúde, ao trabalho, à segurança, ao lazer, dentre outros, mas que muitas vezes não são efetivados. Com a moradia não é diferente. O problema é mais explícito nos centros urbanos onde as condições de moradia e acesso a serviços básicos são insatisfatórias, atingindo as camadas mais pobres da sociedade brasileira.

  Esse problema não é exclusivo do Brasil: em muitos países, o déficit habitacional é um fato. Motivo por isso, a ONU organiza há quase meio século a Cúpula Internacional Habitat, que tem por missão lançar diretrizes e buscar medidas efetivas para o combate a essa realidade. A primeira foi realizada em 1976 em Vancouver, Canadá, a segunda em Istambul, Turquia, em 1996 e a terceira em Quito, Equador, em 2016 e no intervalo desses grandes eventos, outros encontros sobre o tema ocorreram. O governo brasileiro participou ativamente desses encontros que servem como parâmetro e orientação na busca de políticas dignas de moradia.

III Cúpula Internacional Habitat, em 2016, Quito - Equador

Políticas públicas de moradia

  Estudos apontam que o agravamento da questão habitacional no país coincide com o momento em que o Brasil deixa de ser um país agroexportador para se converter em urbano-industrial, ou seja, na metade do século XX. Assiste-se, a partir daí, ao imenso êxodo rural que caracterizou a nação com milhões de pessoas saindo do campo e chegando aos centros urbanos despreparados para receber tamanha massa populacional. Com a falta de planejamento, verificou-se o crescimento desordenado das cidades e, consequentemente, agravou-se a questão da moradia nos centros urbanos.

  É no primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945) que surgem as primeiras iniciativas de políticas públicas para a moradia popular. Na década de 1940, o primeiro órgão de habitação no Brasil foi a Fundação Casa Popular (FCP), quando o Estado passa a responsabilizar-se pelo problema habitacional no país. A FCP, criada para o desenvolvimento habitacional e urbano, pretendia financiar obras de infraestrutura, serviço social, indústria de materiais de construção, apoiar estudos sobre tendências regionais de habitação, entre outras atividades. Ela foi extinta em 1964, durante o regime militar. Nesse período é criado o Banco Nacional de Habitação (BNH), que viabilizou a construção de inúmeros e famosos conjuntos habitacionais dispersos pelo país. Porém, insuficiente para suprir a demanda, que só aumentava. Foi criado um modelo de financiamento da casa própria, que alimentava o crescimento do setor imobiliário e supria, parcialmente, a demanda por meio do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) e que era incentivado por outra iniciativa governamental que caminhava paralelamente à essa iniciativa pública, os recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), existente até os dias atuais.

Bairro Guadalupe - localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, foi criado como um dos projetos da antiga Fundação Casa Popular (FCP)

  Apesar de efetivamente oferecer acesso à habitação a uma parte dos despossuídos de moradias, a política do BNH sofreu duras críticas dos urbanistas por não se preocupar com a mínima qualidade estética, ambiental e arquitetônica das construções e, principalmente, por esses conjuntos serem construídos  nas franjas periféricas das cidades, sempre muito distantes dos locais de trabalho dos moradores em potencial dessas moradias: o trabalhador que penava com os longos deslocamentos. Isso, igualmente, promoveu um ônus orçamentário ao Estado, pois entre o local de construção dessas moradias e o centro, formou-se um hiato desprovido de serviços e infraestruturas urbanas, criando corredores descontínuos e ociosos que exigiram posteriormente elevados investimentos para reparação do equívoco urbano.

  No mesmo período de vigência do BNH, outra iniciativa popular que foi considerada a maior política pública habitacional do regime militar, porém restrita ao estado de São Paulo, foram as COHABs, Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo, exitoso programa de moradia popular. Na zona leste da cidade de São Paulo, por exemplo, foi construído nos anos 1980 o maior complexo de moradia popular da América Latina.

Cohab Cidade Tiradentes, na periferia da Zona Leste de São Paulo (SP) - o maior conjunto de moradia popular da América Latina

  Mais recentemente duas políticas públicas de moradia foram implementadas: em 2004, o Plano Nacional de Habitação (PlanHab) e em 2009 o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) um programa de moradia voltado a classes de renda mais baixa de até três salários mínimos. Recentemente, o PMCMV foi substituído pelo Programa Casa Verde Amarela (PCVA).

  Apesar da grande popularidade, o PMCMV também foi criticado por urbanistas que entendiam que esse programa ofuscou outro programa mais fidedigno e sustentável à moradia digna, que era o PlanHab. Este programa estabeleceu metas de médio prazo para a efetiva resolução do déficit de moradia do país ao acionar os três níveis de governo no combate ao problema: governo federal, estadual e municipal, que participariam conjuntamente dessa política pública de moradia.

  A maior crítica ao PMCMV é que quem definia a compra dos terrenos era a incorporadora terceirizada pelo governo, que sempre buscava os terrenos mais baratos possíveis para a construção das moradias, beneficiando-se com vultosos aportes disponibilizados pela Caixa  Econômica Federal, outra entidade voltada ao financiamento da casa própria, e maximizando os ganhos por unidades habitacionais.

Conjunto Cidade das Rosas, localizado no município de São Gonçalo do Amarante (RN). Um dos conjuntos criados pelo PlanHab

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Presidência da República. Casa Civil. Disponível em: http://planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 22/08/2022.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp, 2000.

COELHO, Marcos de Amorim; TERRA, Lygia. Geografia do Brasil, 5ª ed. São Paulo: Moderna, 2002.

FERREIRA, R. F. C. Políticas públicas e direito à cidade: política habitacional e o direito à moradia digna. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2012.

LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2010.

MARCATO, E. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis: Vozes, 2008.

VENÂNCIO, S. R.; COSTA, B. S. A função social da cidade e o direito à moradia digna como pressupostos do desenvolvimento sustentável. Revista Direito Ambiental e Sociedade. V. 6, n. 2. Petrópolis, 2016.

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