domingo, 29 de abril de 2012

POTENCIALIDADES PAISAGÍSTICAS BRASILEIRAS

  "Todos os que se iniciam no conhecimento das ciências da natureza, mais cedo ou mais tarde, por um caminho ou por outro, atinge a ideia de que a paisagem é sempre uma herança. Na verdade, ela é uma herança em todo o sentido da palavra: herança de processos fisiográficos e biológicos, e patrimônio coletivo dos povos que historicamente as herdaram como território de atuação de suas comunidades.
  Num primeiro nível de abordagem, pode-se-ia dizer que as paisagens têm sempre o caráter de heranças de processos de atuação antiga, remodelados e modificados por processos de atuação recente. Em muitos lugares - como é o caso dos velhos planaltos e compartimentos de planaltos do Brasil -, os processos antigos foram responsáveis sobretudo pela compartimentação geral da topografia. Nessa tarefa, as forças naturais gastaram de milhões a dezenas de milhões de anos. Por sua vez, os processos remodeladores são relativamente modernos e, mesmo recentes, restringindo-se basicamente ao período Quaternário, medem-se por uma escala de atuação de processos interferentes, cuja duração gira em torno de alguns milhares, até dezenas ou, quando muito, centenas de milhares de anos.
Barra de Tabatinga - RN - exemplo de paisagem do período Quaternário
  Os primeiros agrupamentos humanos assistiram às variações climáticas e ecológicas desse flutuante 'universo' paisagístico e hidrológico dos tempos quaternários e foram profundamente influenciados por elas. Entrementes, dentro da escala dos tempos históricos - nos últimos cinco a sete mil anos -, a despeito de algumas modificações locais ou regionais dignas de registro, tem dominado um esquema global de paisagens zonais e azonais, muito próximo daquele quadro que ainda hoje se pode reconhecer na estrutura paisagística da superfície terrestre.
Pintura rupestre no sítio Xique-Xique, em Carnaúba dos Dantas - RN, que retratam o cotidiano da vida dos moradores da região ha milhares de anos
  Num segundo plano de abordagem, é indispensável ressaltar que as nações herdaram fatias - maiores ou menores - daqueles mesmos conjuntos paisagísticos de longa e complicada elaboração fisiográfica e ecológica. Mais do que simples espaços territoriais, os povos herdaram paisagens e ecologias, pelas quais certamente são responsáveis, ou deveriam ser responsáveis. Desde os mais altos escalões do governo e da administração até o mais simples cidadão, todos têm uma parcela de responsabilidade permanente, no sentido da utilização não predatória dessa herança única que é a paisagem terrestre. Para tanto, há que conhecer melhor as limitações de uso específicas de cada tipo de espaço e de paisagem. Há que procurar obter indicações mais racionais, para preservação do equilíbrio fisiográfico e ecológico. E, acima de tudo, há que permanecer equidistante de um ecologismo utópico e de um economismo suicida (Walter Góes, 1973). Já se pode prever entre os padrões para o reconhecimento do nível de desenvolvimento de um país devam figurar a capacidade do seu povo em termos de preservação de recursos, o nível de exigência e o respeito ao zoneamento de atividades, assim como a própria busca de modelos para uma valorização e renovação correta dos recursos naturais.
  Evidentemente, para os que não têm consciência do significado das heranças paisagísticas e ecológicas, os esforços dos cientistas que pretendem responsabilizar todos e cada um pela boa conservação e pelo uso racional da paisagem e dos recursos da natureza somente podem ser tomados como motivos de irritação, quando não de ameça, a curto prazo, à economicidade das forças de produção econômica.
OS GRANDES DOMÍNIOS PAISAGÍSTICOS BRASILEIROS
  O território brasileiro, devido a sua magnitude espacial, comporta um mostruário bastante completo das principais paisagens e ecologias do mundo tropical. Pode-se afirmar que um pesquisador ativo, entre nós, em poucos anos de investigação, poderia percorrer e analisar a maior parte das grandes paisagens que compõem o mosaico paisagístico e ecológico do país. Trata-se de uma vantagem que se acrescenta a outras, no incentivo dos estudos sobre as potencialidades paisagísticas regionais brasileiras. Essa possibilidade de 'trânsito livre' difere muito, por exemplo, daquela que diz respeito ao território tropical africano, onde existem sucessivas fronteiras separando parcelas dos espaços tropicais e dificultando o desenvolvimento de pesquisas mais amplas e comparativas.
Paisagem na Floresta Amazônica
  Durante muito tempo, houve a pecha de monotoneidade e extensividade das condições paisagísticas para o conjunto do espaço geográfico brasileiro. Observadores alienígenas, habituados às fortes diferenças de paisagens existentes - a curto espaço - no território europeu, não tiveram muita sensibilidade para perceber as sutis variações nos padrões de paisagens e ecologias de nosso território intertropical e subtropical. Operando em áreas reduzidas, situadas no interior mesmo de um só domínio morfoclimático e fitogeográfico, os investigadores que visitaram o nosso país na primeira metade do século XX somente tiveram olhos para o 'ar de família' - para eles totalmente exótico e aparentemente diferenciado - das paisagens tropicais úmidas da fachada atlântica oriental do país. Nesse sentido houve um certo retrocesso em relação ao estoque de conhecimentos acumulados no decorrer do século XX, mormente no que concerne às contribuições pioneiras dos viajantes naturalistas. Foi preciso que se instalasse as primeiras universidades - merecedoras desse nome - para que se tornasse possível uma infraestrutura capaz de garantir uma nova era de pequisas mais consistentes e objetivas. Gastaram-se anos para que aquelas formas de avaliação simplistas e genéricas pudessem mudar. E isso só veio a ocorrer a partir da década de 1940, e sobretudo na de 1950, graças aos esforços de pesquisadores brasileiros e europeus, sobretudo franceses.
  Diga-se, de passagem, que a despeito de a maior parte das paisagens do país estar sob a complexa situação de duas organizações opostas e interferentes - ou seja, a da natureza e a dos homens - ainda existiam possibilidades razoáveis para uma caracterização dos espaços naturais, numa tentativa mais objetiva de reconstrução da estruturação espacial primárias das mesmas (Ab'Saber, 1973). De modo geral, o homem pré-histórico brasileiro pouca coisa parece ter feito como elemento perturbador da estrutura primária das paisagens e ecologias intertropicais e subtropicais brasileiras. Certamente, no espaço geográfico natural do Brasil, aconteceu o contrário do que se passou com o continente africano, onde ocorre maior variedade de paisagens intertropicais e onde agrupamentos humanos com uma pré-história superior a quinhentos mil anos puderam imprimir modificações mais incisivas e extensivas em algumas áreas paisagísticas tropicais e subtropicais regionais.
Caatinga - ecossistema exclusivamente brasileiro
  No presente trabalho, entendemos por domínio morfoclimático e fitogeográfico um conjunto espacial de certa ordem de grandeza territorial - de centena de milhares a milhões de quilômetros quadrados de área - onde haja um esquema coerente de feições de relevo, tipos de solos, formas de vegetação e condições climático-hidrológicas. Tais domínios espaciais, de feições paisagísticas e ecológicas integradas, ocorrem em uma espécie de área principal, de certa dimensão e arranjo, em que as condições fisiogeográficas e biogeográficas formam um complexo relativamente homogêneo e extensivo. A essa área mais típica e contínua - via de regra, de arranjo poligonal - aplicamos o nome de area core, logo traduzida para área nuclear - termos indiferentemente empregados, segundo os gostos e as preferências de cada pesquisador.
  Entre o corpo espacial nuclear de um domínio paisagístico e ecológico e as áreas nucleares de outros domínios vizinhos - totalmentes diversos - existe sempre um interespaço de transição e de contato, que afeta de modo mais sensível os componentes da vegetação, os tipos de solo e sua forma de distribuição e, até certo ponto, as próprias feições de detalhe do relevo regional. Cada setor das alongadas faixas de transição e de contato apresenta um combinação diferente de vegetação, solos e formas de relevo. Num mapa em que sejam delimitadas as area core, os interespaços transicionais restantes entre os mesmos aparecem como se fossem um sistema anastomosado de corredores, dotados de larguras variáveis. Na verdade, cada setor dessas alongadas faixas representa uma combinação sub-regional distinta de fatos fisiográficos e ecológicos, que podem se repetir ou não em áreas vizinhas e que, na maioria das vezes, não se repetem em quadrantes mais distantes.
Mata dos Cocais - faixa de transição entre os domínios Amazônico, Cerrado e Caatinga
  Poderia parecer lógico que entre o domínio A e o domínio B pudessem ocorrer transições ou contatos em mosaico de A + B. No entanto, a experiência demonstrou que podem registrar-se combinações de A + B passando a C, ou de A + B passando a D; ou, ainda, de A + B, incluindo um tampão Z. Constatou-se, ainda, que em alguns raros casos de áreas de transição e contato, uma forma grosso modo triangular, situadas entre domínios A, B e C, podem ser multiplicadas as combinações fisiográficas e ecológicas, que comportam contatos em mosaico e subtransições locais. Reconhecimentos feitos em algumas áreas territoriais, consideradas chaves para o entendimento do problema - especificamente, estados da Bahia e do Maranhão - revelaram complexas combinações de componentes fisiográficos e ecológicos dos domínios envolventes, assim como a presença de paisagens-tampão, mais ou menos individualizadas, colocadas em certos setores centrais dessas faixas de transição. Dessa forma, além de representações de elementos morfoclimáticos e fitogeográficos aparentados com fatos de A, B e C, puderam ser detectados subnúcleos paisagísticos e faixas de vegetação concentrada, muito diferentes das paisagens e ecologias predominantes em A, B ou C.
Pantanal Matogrossense
  Trata-se, sobretudo de floras que se aproveitaram da instabilidade das condições ecológicas das faixas de transição e contato, passando a dominar localmente o espaço, em subáreas onde as condições climáticas e ecológicas eram relativamente desfavoráveis para a fixação de padrões de paisagens diretamente filiados aos domínios paisagísticos contíguos (A, B e C; ou B, C e D; ou ainda A, C e F, entre outras combinações espaciais de domínios vis-à vis) e, pelo oposto, eram favoráveis ao adensamento e à expansão de determinadas floras (cocais, mata de cipó, matas secas).
Mata de igapó - trecho da Floresta Amazônica constantemente alagado
  Até o momento foram reconhecidos seis grandes domínios paisagísticos e macroecológicos em nosso país. Quatro deles são intertropicais, cobrindo uma área pouco superior a sete milhões de quilômetros quadrados. Os dois outros são subtropicais, constituindo aproximadamente 500 mil quilômetros quadrados em território brasileiro, posto que extravasando para áreas vizinhas dos países platinos. O somatório das faixas de transição e contato equivale mais ou menos um milhão de quilômetros, em avaliação especial grosseira e provisória. Pelo menos cinco dos domínios paisagísticos brasileiros têm arranjo em geral poligonal, considerando-se suas areas core: 1. o domínio das terras baixas florestadas da Amazônia; 2. o domínio dos chapadões centrais recobertos por cerrados, cerradões e campestres; 3. o domínio das depressões interplanálticas semiáridas do Nordeste; 4. o domínio dos 'mares de morro' florestados; 5. o domínio dos planaltos de araucárias. Rios negros nos componentes autóctones da drenagem (bacias de igarapés; intra-amazônicos), drenagens extensivamente perenes, porém suscetíveis de 'cortes' nas áreas de desmatamento extensivo em planaltos sedimentares, de solos porosos. Enclaves de cerradões, cerrados e matas secas em áreas de solos pobres ou margens da area core."
Biomas brasileiros
AB'SABER
  Aziz Nacib Ab'Saber, nasceu no dia 24 de outubro de 1924 em São Luís do Paraitinga - SP, e faleceu em 16 de março de 2012 na cidade de Cotia - SP. 
  Foi um geógrafo e professor universitário brasileiro, considerado uma referência em assuntos relacionados ao meio ambiente e a impactos ambientais decorrentes das atividades humanas. Foi um cientista polivalente, laureado com as mais altas honrarias científicas em arqueologia, geologia e ecologia.
  Membro Honorário da Sociedade de Arqueologia Brasileira, Grã-Cruz em Ciências da Terra pela Ordem Nacional do Mérito Científico, Prêmio Internacional de Ecologia de 1998 e Prêmio Unesco para Ciência e Meio Ambiente. Era Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), Professor Honorário do Instituto de Estudos Avançados da USP e ex-presidente e Presidente de Honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
  Embora aposentado compulsoriamente no final do século XX, manteve-se em atividade até o fim da vida. Na véspera de sua morte, entregou à SBPC os arquivos de sua obra completa, em DVD, com a seguinte dedicatória: "Tenho o grande prazer de enviar para os amigos e colegas da Universidade o presente DVD que contém um conjunto de trabalhos geográficos e de planejamento elaborados entre 1946-2010. Tratando-se de estudos predominantemente geográficos, eu gostaria que tal DVD seja levado ao conhecimento dos especialistas em geografia física e humana da universidade".
FONTE: AB'SABER, Aziz Nacib. Os domínios da natureza do Brasil: potencialidades paisagísticas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. p. 9-13.

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