domingo, 11 de novembro de 2012

AS SOCIEDADES HUMANAS E A ÁGUA

  Há milênios, as atividades humanas interferem diretamente no ciclo da água do planeta. O controle sobre os cursos e a vazão dos rios foi fundamental para muitas das civilizações da Antiguidade.
  A construção de barragens para aumentar as reservas de água e evitar o escoamento, por exemplo, começou no Rio Nilo há mais de cinco mil anos, quando a primeira represa foi erguida para reter uma parte das águas que abundavam durante as cheias. Foi o início de uma longa história de intervenções, que culminou com a construção e as sucessivas ampliações da barragem de Assuã, que deu origem ao imenso lago Nasser, na fronteira entre o Egito e o Sudão. A capacidade de retenção dessa barragem é tal que, na direção da foz, um dos maiores rios do mundo se transforma em pouco mais do que um canal.
Barragem de Assuã, no Egito
  Na era industrial, a prática de regularização dos cursos fluviais, por meio da construção de barragens, represas e canais, disseminou-se a tal ponto que, no mundo inteiro, são raros os sistemas de drenagem que mantêm intactas suas características naturais.
  Nas áreas urbanizadas, o ciclo hidrológico é profundamente alterado pelas atividades humanas. Com a quase total retirada da cobertura vegetal, o processo de transpiração diminui sensivelmente. O ar perde umidade e ocorre o aumento da drenagem superficial, acentuada pela grande quantidade de superfícies impermeáveis (concreto, asfalto, telhados), que impedem a infiltração e a percolação. Apesar da complexa estrutura de canais artificiais de drenagem, esse conjunto de alterações aumenta exponencialmente o risco de inundações nas grandes cidades.
A impermeabilização do solo associada à falta de cobertura vegetal é a principal causa dos alagamentos nas zonas urbanas
  Por outro lado, o aumento acelerado do consumo de água e a poluição dos mananciais por esgotos domésticos e efluentes industriais tornam o sistema de abastecimento urbano cada vez mais caro, dado a distância cada vez maior entre a cidade e os mananciais não poluídos. As cidades do sul da Califórnia (EUA), por exemplo, são abastecidas por um complexo sistema organizado em torno do imenso aqueduto da Califórnia, que atravessa montanhas e desertos e se ramifica nos aquedutos menores que suprem os reservatórios.
Aqueduto da Califórnia em Central Valley - EUA
  No mundo inteiro, mais de 1 bilhão e meio de pessoas, a maior parte delas vivendo no meio urbano, depende principalmente da água subterrânea para suprir as suas necessidades básicas. Aproximadamente, metade das cidades europeias já explora os depósitos subterrâneos acima da capacidade de reposição natural e, portanto, não tem garantido o sistema de abastecimento futuro. O excesso de poços de bombeamento dessa água causa novas alterações no ciclo hidrológico. Grande parte dos rios depende do lençol subterrâneo para manter os seus cursos e o bombeamento em excesso causa a queda da vazão fluvial.
Ciclo hidrológico
  Além disso, a retirada da água subterrânea pode ter como consequência um efeito de subsidência (extração e consequente rebaixamento do nível da água subterrânea), já que a rocha que serve de substrato possui volume menor quando desidrata. Bancoc, capital da Tailândia, é um bom exemplo desse processo: algumas das regiões da cidade têm sofrido um "abaixamento" que chega a 14 centímetros por ano, aumentando o teor de sal do lençol subterrâneo progressivamente. Em regiões costeiras, o lugar antes ocupado pela água subterrânea pode ser preenchido pela água do mar. A água que seria utilizada para as atividades urbanas se torna salina. Na Indonésia, as águas oceânicas avançaram para o subterrâneo por 15 quilômetros continente adentro devido à exploração excessiva dos aquíferos.
Fatores que provocam a poluição da água subterrânea
  Na Cidade do México, onde cerca de 72% de toda a água consumida é extraída do subsolo, o efeito de subsidência é bastante pronunciado nas áreas centrais, chegando a comprometer a estrutura das construções e dos monumentos históricos. Em Bangladesh, dezenas de poços de água contaminados por arsênicos, gerado por reações químicas derivadas do rebaixamento do nível da água subterrânea, já causaram a intoxicação de mais de um milhão de pessoas.
Cidade do México - megacidade que já sofre com o problema da falta de água
  O esgoto também é um problema grave, em especial nas cidades dos países pobres, que não dispõem de redes completas de coleta e de estações adequadas de tratamento. Na maioria delas, a água usada nas indústrias e residências é despejada diretamente nos rios e córregos ou em poços, dos quais os poluentes contaminam o lençol freático. As estimativas da Organização Mundial de Saúde, divulgados em 2007, indicam que pelo menos 1,8 milhão de crianças morrem anualmente por causa de doenças como diarreia e cólera, provocadas pela ingestão de água contaminada por esgotos domésticos. No conjunto do mundo subdesenvolvido, cerca de 90% de todas as doenças infecciosas são transmitidas por meio da água. No Brasil, em 2004, 89% das pessoas hospitalizadas não possuíam acesso a água potável.
O crescimento desordenado, a falta de uma política habitacional e do saneamento básico, contribuem para a escassez de água potável nas áreas urbanas
  Além do consumo elevado de água nas áreas urbanas e industriais, a situação hídrica nas atividades agrícolas também é preocupante. Em áreas dependentes da agricultura de regadio (que utiliza dois recursos fundamentais, o solo e a água), como nas planícies dos rios Indo e Ganges, na Ásia, ou nas planícies do norte da China e da América do Norte, também ocorre consumo excessivo de água.
  Nos países em desenvolvimento, a agricultura absorve mais de 80% da água consumida no país. Dados da ONU (Relatório do desenvolvimento humano 2006) indicam ser necessário cerca de 70% mais de água para produzir alimentos do que para abastecer e suprir as necessidades domésticas de uma família.
  Estima-se que 15% das terras cultivadas no mundo sejam irrigadas. Muitos países, como a China, Israel e o Paquistão, dependem da agricultura irrigada para produzir a maior parte dos seus alimentos. As principais áreas de fruticultura do mundo, como o vale central da Califórnia, também dependem da irrigação.
Produção de cítricos na Galileia - Israel
  A irrigação em grande parte dos países, apresenta altas taxas de desperdício, pois se baseia em técnicas pouco eficazes. Por exemplo, quando se utiliza irrigação por gravidade, a maior parte da água (mais de 50%) evapora.
A CRISE DA ÁGUA
  As alterações no ciclo hidrológico não implicam a diminuição do estoque total dos recursos hídricos. A crise da água diz respeito à escassez de água potável, sobretudo em razão da ampliação do consumo e da poluição dos mananciais disponíveis.
  O consumo mundial de água dobrou nos últimos 50 anos, em grande parte devido ao crescimento da população e à urbanização acelerada. Por ano, são consumidos no planeta cerca de 4.500 km³ de água doce, o que corresponde à metade da disponibilidade anual efetiva de todos os recursos hídricos acessíveis, incluindo rios, lagos, aquíferos subterrâneos e águas do degelo sazonal. A Ásia, com sua enorme população, é responsável por cerca de metade do consumo global e, no continente, o uso agrícola abrane cerca de 85% do consumo total de água.
Gráfico do consumo mundial de água
  Nos países desenvolvidos, o principal uso da água é industrial. Mas, globalmente, há intenso predomínio de uso agrícola, principalmente por causa de irrigação. Estima-se que 15% das terras cultivadas no mundo seja irrigadas, e que nessa parcela sejam produzidos 40% do volume global de alimentos. Muitos países, como China, Israel, Paquistão e Líbia, produzem a maior parte dos seus alimentos em terras irrigadas, e as principais áreas de fruticultura do mundo - como o vale central da Califórnia - também dependem essencialmente das técnicas de irrigação.
Mapa da distribuição de água no mundo
  Devido à irrigação, diversas áreas agrícolas também sofrem as consequências da superexploração dos lençóis freáticos: no nordeste da China, o lençol freático vem diminuindo à razão de cerca de um metro por ano, e algo similar ocorre em um quarto das terras de cultivo irrigado dos Estados Unidos.
  Entre os diversos usos da água, a irrigaçãoé a que apresenta as maiores taxas de desperdício. A irrigação, na maior parte do mundo, baseia-se em técnicas pouco eficazes e de baixo rendimento. O método de irrigação por gravidade, o mais difundido, apresenta altas taxas de evaporação e sua eficiência (parcela da água colocada à disposição das plantas), é inferior a 50%.
Irrigação por asperção - uma das formas de maior perda de água
  A irrigação extensiva já produz alguns efeitos desastrosos. O aquífero de Ogallala, em Nebraska, nas Grandes Planícies dos Estados Unidos, já perdeu o equivalente a 18 volumes do Rio Colorado e está sob ameaça de desaparecimento. No Egito, as águas do Rio Nilo se destinam basicamente à agricultura e não há fontes para a demanda crescente dos usos domésticos e industriais. Na Líbia, a situação é ainda mais grave, pois os projetos de irrigação extensiva exigiram a extração excessiva da água do subsolo por meio de poços artesianos. As reservas de águas subterrâneas se renovam em velocidade menor que a retirada, causando a secagem dos poços e obrigando a novas perfurações. Em maior ou menor grau, esse problema é detectado em toda a África do Norte e no Oriente Médio.
Mapa do esgotamento de água subterrânea em milímetros por ano
  A crise das águas afeta o mundo inteiro, ainda que em proporção e intensidade diferentes. Parcelas crescentes da população mundial não têm garantido o acesso à água doce em quantidade e qualidade suficientes para atender às suas necessidades básicas. A agricultura, a indústria e a produção de energia também apresentam demanda crescente pela água. Os recursos hídricos existentes precisam ser compartilhados entre os diversos tipos de usuários, muitas vezes situados em países diferentes. Os ecossistemas que garantem a reciclagem da água doce precisam ser protegidos da contaminação. Além disso, as espécies animais e vegetais também necessitam de água para sobreviver e se multiplicar.
  Por sua vez, uma parcela cada vez maior da água doce que circula pelo planeta está contaminada, seja por resíduos de processos industriais, por esgotos domésticos ou, ainda, por fertilizantes e pesticidas químicos utilizados na agricultura.
Os resíduos sólidos são um dos maiores causadores da poluição das águas, principalmente nas grandes cidades
  De acordo com as estimativas da ONU, cada litro de água residual que retorna ao ciclo, ou seja, que é lançado sem tratamento em rios e lagos ou atinge os depósitos subterrâneos, contamina oito litros de água doce. A quantidade de água contaminada que existe no mundo hoje - cerca de 120 mil km³ - já é maior do que o volume total das dez maiores bacias hidrográficas do planeta. Milhões de pessoas em todo o mundo utilizam essa água poluída para suprir as suas necessidades básicas: estima-se que cerca de 35% da população mundial não tenha acesso a água potável e 43% não conte com serviços adequados de saneamento básico. Grande parte da água que circula pelo planeta está contaminada.
Águas poluídas do Rio Tietê em Bom Jesus do Pirapora - SP
  Somam-se a esses problemas o aumento do consumo e a limitação de muitos países para criar uma infraestrutura de armazenamento e proteger suas bacias hidrográficas.
  Segundo dados da ONU de 2006, a necessidade de água de uma pessoa, para atender às necessidades em termos de agricultura, indústria, energia e meio ambiente, é de 1.700 m³ por ano. Uma disponibilidade inferior a 1.000 m³ anuais representa escassez e abaixo de 500 m³ anuais, escassez absoluta. Cerca de 700 milhões de pessoas oriundas de 43 países vivem abaixo do limiar mínimo que define a situação de falta de água. O Oriente Médio é a região do mundo mais atingida pela ameaça de falta da água.
  No que diz respeito ao sistema de abastecimento, as desigualdades entre os países e continentes são dramáticas. No conjunto do continente africano, 53% da população urbana não conta com serviço de abastecimento de água, enquanto na Europa esse número cai para 0,5%.
Mapa da disponibilidade de água per capita por ano
  Se é certo que a água não vai acabar, é certo também que as reservas disponíveis são limitadas e encontram-se mal distribuídas, variando no tempo (estações de chuvas curtas, monções) e no espaço. Por exemplo, a maior parte da Ásia recebe quase 90% de sua precipitação anual em menos de 100 horas, o que pode dar origem a cheias nesses períodos e a secas prolongadas em outros, com riscos de escassez.
Inundações na Índia provocada pelas chuvas de monções
  Como acontece com os demais recursos naturais, quanto maior a escassez de água potável, maior é a sua valorização. Porém, a água é um recurso vital para a vida humana. A valorização das reservas de água doce e a necessidade de sistemas de captação cada vez mais sofisticados podem se traduzir em preços cada vez maiores para o consumidor. Quando os custos de água se tornam proibitivos para parcelas da população devido ao preço, está em jogo não apenas a qualidade da vida dessas populações, mas a própria vida. É por isso que muita gente defende a ideia de que a água potável é um direito básico de todos os habitantes do planeta, que deveriam ter assegurado uma cota mínima para o consumo, independentemente dos custos sociais de produção desse recurso.
FONTE: Terra, Lygia. Conexões: estudos de geografia geral e do Brasil / Lygia Terra, Regina Araújo, Raul Borges Guimarães. 1 -- ed. São Paulo: Moderna, 2010.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ilustração real de futuro próximo,se politicas publicas de conscientização, não forem adotadas imediatas. E seguidas, cobradas por governantes que usem de transparência,alertando para os efeitos, danosos da poluição ambiental.Giovanni

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